Jornal Cultura

A FORÇA DAS PALAVRAS

- PEDRO ÂNGELO

O cacimbo já acabou há muito. O tempo das chuvas já tem meses de actividade e no planalto vai chovendo como convém.

Mas aqui em Luanda teima não chover e eu tenho saudades da chuva.

Como tenho saudades da chuva e como não sei quando irá chover, apesar de hoje de manhã ter cacimbado forte, apetece-me convocá-la. É para isso que servem as palavras conforme, magistralm­ente, nos ensina Bernardo Soares:

“Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As lores, se forem descritas com frases que as de inam no ar da imaginação, terão cores de uma permanênci­a que a vida celular não permite. Não há nada de real na vida que o não seja porque se escreveu bem.” […]”

Então vou recordar, presenti icar, o dia 4 de Dezembro de 2009: “Ontem, sexta-feira, choveu. Eu estava a sair do restaurant­e onde almoço habitualme­nte, depois de ter, em três rápidos sorvos, bebido o café morno que me foi servido naquelas chavenazin­has que usam nos bares, quando fui surpreendi­do pela chuva. A princípio a chuva parecia pouco convicta, parecia daquela chuva que quase nos pede desculpa de se precipitar sobre nós mas que num instante passa. Mas não passou, engrossou e quando cheguei a minha casa estava todo molhado.

Despi-me, sequei-me, vesti roupa seca e voltei para o meu gabinete depois de ter esperado um longo tempo até a chuva parar.

No sábado, como era de se prever, as ruas não asfaltadas, estavam grávidas da água que tinha caído no dia anterior e que as tinham fruti icado dando origem a, nalguns casos, verdadeira­s lagoas e noutros, grandes lamaçais.

Circulava pois com todos os cuidados que a situação, nestes casos, exige, quando vejo no meio do lamaçal uma daquelas motorizada­s de três rodas bem carregada, uma verdadeira kupapata, parada e sem ninguém encima dela. Ao lado da estrada, em local seco estava o seu motorista, com ar desesperad­o a olhar para ela. Parei e pergunteil­he se era o dono da kupapata:

– Colou – disse-me ele num misto de esperança e de angústia. «CO-LOU». Colou. Já viram bem a força da palavra: COLOU.

Reparem: A majestosa língua portuguesa em registo não literário utilizaria a palavra «atascou», «enterrou», « icou presa na lama». Mas não, nada disso: «a motorizada COLOU».

Colou é uma forma verbal de colar que, segundo José Pedro Machado é uma palavra que resultou da verbalizaç­ão do nome, cola, com o signi icado de grude, que entrou na língua portuguesa pelo francês, colle, que por sua vez vem do latim, colla, que veio do grego, kolla. A palavra colar signi ica literalmen­te unir mas em expressão Caboverdia­na podemos ajuntar-lhe o sentido de brincar, festejar. COLOU! – disse ele simplesmen­te. Já viram a riqueza de sentidos que se ligam a esta palavra e que levam a que cada um recrie um universo particular onde entram em luta várias forças, é a força da inércia resultante da velocida- de a que a motorizada se deslocava e que lutava para a manter em movimento, a força da rotação da biela que accionada pelo motor teimava em fazer girar as rodas de modo a que a deslocação para a frente se mantivesse, a força elástica da terra argilosa fruti icada pela água da chuva que a tornou lama e que procurava atrair para si o corpo fugitivo da motorizada… E esta, a kupapata… COLOU. Sucumbiu a um jogo tremendo que a tornou inerte e subjugada pelo mundo prenhe e revolto de água da chuva, terra argilosa, ruídos e explosões zangadas do motor que, envergonha­do por não cumprir o seu papel que é de tornar móvel a motorizada, se rendeu a ele, a esse jogo: CO-LOU. Que palavra! Lembro-me como se fosse hoje que passada quase uma semana, essa palavra continuava a fruti icar no meu espírito porque ela não é um morfema lexical inerte e com um signi icado registado em dicionário, ela é o signi icante vi- vo que se soltou daquele quadro protagoniz­ado pela estrada lamacenta, pela kupapata atascada, pelo seu motorista e por mim. Ela, ainda agora, vem em ondas até ao meu espírito e cumpre suavemente, sem anúncios ruidosos, dum modo quase envergonha­do o seu papel recriando no receptor a possibilid­ade de se sentir envolvido nesse mundo intransiti­vo a que nos remete o texto literário. Perguntarã­o os meus leitores: – E o que aconteceu? Ajudei a desatascar a motorizada até que ela, sentindo-se livre, continuou, com o seu motorista, a sua vida.

Uma mamã passava perto, veio ter comigo e, falando baixinho disse-me:

– Fizeste bem.”

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Kupapata
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