Jornal Cultura

PALAVRAR O FERRO

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA |

Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala. A Obra feita é Ferro suado a contundir-se no próprio suor do Mago Ferreiro, Hildebrand­o, alienígena desembarca­ndo em pleno coração de Luanda ovos míticos rectangula­res de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art.

Durante dois anos e meio, Hildebrand­o de Melo (HM) veio viajando na nave espacial da Memória, a palavrar o Ferro, conferindo-lhe outra dignidade que não a de mero marcador da História da Humanidade. Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala. A Obra feita é Ferro suado a contundir- se no próprio suor do Mago Ferreiro, alienígena desembarca­ndo em pleno coração de Luanda ovos míticos rectangula­res de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art, fecundada desde António Ole, e Viteix, e desde a poesia de Ruy Duarte de Carvalho: [Olha-me a noite herdada, nestes olhos/ de um povo condenado a amassar- te o pão./ Olha- me amor, atenta podes ver/ uma história de pedra a construir-se/ sobre uma história morta a esboroar-se/ em chagas de salitre. (1976, in A Decisão da Idade)].

Esculturas de ferro integrado soldado sob o prisma de uma linearidad­e rectilínea, auge de uma idealizaçã­o de duas décadas, “a minha tia, quando eu me portava mal, mandava- me para uma fundição trabalhar, na Cruz Martins & Wall, em Vila Nova de Famalicão”, mal sabia a tia de HM que estava a formar um futuro ferreiro.

A ferrugem, o zarcão e a laca preta bem polida sobrepõem-se às excreções digitais na chapa do Tempo quase subterrâne­o ao Poder aracnídeo de vigia aos corpos da História.

O tecido hexagonal da visão da Aranha exterior sugere uma África suspensa do seu próprio esquecimen­to daquilo que foi o começo (begining), estruturas de interacção, o disforme pescoço da civilizaçã­o (neck), escalada imprevista ou o fragmento de um voo. A imanente imobilidad­e da Aranha interior observa o Eco imanente dos objectos nomeados: arma (gun), sonho roubado (stolen), fome, morte embalsamad­a…

Agora, ali vagueando na efémera eternidade do Ferro, a Voz de cada objecto escultural nos escuta o formular subjectivo do seu Design endémico e impressivo, buscando no Eco nocturno do ferro forjado uma luz romântica que nos fragmenta: que geometria há-de con igurar o futuro do Homem e a sua consciênci­a?

Entre uma igura e outra, há uma solução de consanguin­idade anti-metálica, vermes de oxidação que a Natureza Negra das iguras lacadas devora em absoluta negação: brilho de premeditad­a preservaçã­o, versus ferrugem enternecid­a de resignação, há essa inconformi­dade geométrica por exclusão do círculo.

Aranha ou Alien, passageiro devorador da Solidão, HM é um construtor de memória dura, Palavra de Ferro lavrada. A voar. A Ser e Não-Ser. Fonema Único. A Poesia é perfeita testemunha desta catarse: emergem das chapas contíguas olfactos de tétano corrosivo, lores muito antigas que lagelam a um deus de ferro citadino as coisas mais ín imas e inenarráve­is da origem do próprio Ferreiro. De cada um de Nós. A haver um novo território para formar Nações, chamar-seia Metamorfos­es do Ferro, ásperas arestas limadas até à rectilínea imanência do átomo, metáforas do voo em linha, da fala, do olhar, da devoração do Insulto Histórico ou da combustão intrínseca do Desejo, fausta revelação da permanênci­a do Negro na suspensa bigorna anti-natural do aracnídeo. Silício ecuménico do Homo Metalicus nas arestas da (de)composição liberal do século XXI.

Se a História é um Objecto, desejo e técnica transfundi­dos em metálica estilizaçã­o da Criação, esse Objecto é Dor, é Nada, Comunhão, Soldadura Inamovível de Vozes. À imagem e semelhança de HM. [Exposição inaugurada dia 24 de Novembro de 2016, no Camões/ Centro Cultural Português, em Luanda]

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