PALAVRAR O FERRO
Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala. A Obra feita é Ferro suado a contundir-se no próprio suor do Mago Ferreiro, Hildebrando, alienígena desembarcando em pleno coração de Luanda ovos míticos rectangulares de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art.
Durante dois anos e meio, Hildebrando de Melo (HM) veio viajando na nave espacial da Memória, a palavrar o Ferro, conferindo-lhe outra dignidade que não a de mero marcador da História da Humanidade. Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala. A Obra feita é Ferro suado a contundir- se no próprio suor do Mago Ferreiro, alienígena desembarcando em pleno coração de Luanda ovos míticos rectangulares de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art, fecundada desde António Ole, e Viteix, e desde a poesia de Ruy Duarte de Carvalho: [Olha-me a noite herdada, nestes olhos/ de um povo condenado a amassar- te o pão./ Olha- me amor, atenta podes ver/ uma história de pedra a construir-se/ sobre uma história morta a esboroar-se/ em chagas de salitre. (1976, in A Decisão da Idade)].
Esculturas de ferro integrado soldado sob o prisma de uma linearidade rectilínea, auge de uma idealização de duas décadas, “a minha tia, quando eu me portava mal, mandava- me para uma fundição trabalhar, na Cruz Martins & Wall, em Vila Nova de Famalicão”, mal sabia a tia de HM que estava a formar um futuro ferreiro.
A ferrugem, o zarcão e a laca preta bem polida sobrepõem-se às excreções digitais na chapa do Tempo quase subterrâneo ao Poder aracnídeo de vigia aos corpos da História.
O tecido hexagonal da visão da Aranha exterior sugere uma África suspensa do seu próprio esquecimento daquilo que foi o começo (begining), estruturas de interacção, o disforme pescoço da civilização (neck), escalada imprevista ou o fragmento de um voo. A imanente imobilidade da Aranha interior observa o Eco imanente dos objectos nomeados: arma (gun), sonho roubado (stolen), fome, morte embalsamada…
Agora, ali vagueando na efémera eternidade do Ferro, a Voz de cada objecto escultural nos escuta o formular subjectivo do seu Design endémico e impressivo, buscando no Eco nocturno do ferro forjado uma luz romântica que nos fragmenta: que geometria há-de con igurar o futuro do Homem e a sua consciência?
Entre uma igura e outra, há uma solução de consanguinidade anti-metálica, vermes de oxidação que a Natureza Negra das iguras lacadas devora em absoluta negação: brilho de premeditada preservação, versus ferrugem enternecida de resignação, há essa inconformidade geométrica por exclusão do círculo.
Aranha ou Alien, passageiro devorador da Solidão, HM é um construtor de memória dura, Palavra de Ferro lavrada. A voar. A Ser e Não-Ser. Fonema Único. A Poesia é perfeita testemunha desta catarse: emergem das chapas contíguas olfactos de tétano corrosivo, lores muito antigas que lagelam a um deus de ferro citadino as coisas mais ín imas e inenarráveis da origem do próprio Ferreiro. De cada um de Nós. A haver um novo território para formar Nações, chamar-seia Metamorfoses do Ferro, ásperas arestas limadas até à rectilínea imanência do átomo, metáforas do voo em linha, da fala, do olhar, da devoração do Insulto Histórico ou da combustão intrínseca do Desejo, fausta revelação da permanência do Negro na suspensa bigorna anti-natural do aracnídeo. Silício ecuménico do Homo Metalicus nas arestas da (de)composição liberal do século XXI.
Se a História é um Objecto, desejo e técnica transfundidos em metálica estilização da Criação, esse Objecto é Dor, é Nada, Comunhão, Soldadura Inamovível de Vozes. À imagem e semelhança de HM. [Exposição inaugurada dia 24 de Novembro de 2016, no Camões/ Centro Cultural Português, em Luanda]