Jornal Cultura

NOVA OBRA DE MANUEL RUI O KAPUTO, CAMIONISTA E EUSÉBIO UM LIVRO MARCANTE E MEMORÁVEL

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Vamos voltar a 1966. Em Inglaterra, Portugal vai entrar em campo para jogar com a Coreia do Norte. O pé de Eusébio vai pisar daqui a nada a relva. Mas não é para Inglaterra que este livro do angolano Manuel Rui nos leva. É mesmo para Angola, para uma solitária estrada de Angola. Está Eusébio a entrar em campo e está um camião em viagem. Saído do Lubango, Sá da Bandeira colonial, por uma estrada de Angola vai um camião sem auto- rádio. É dia 23 de Julho de 1966, um sábado. Um camionista fala com o pendura a quem deu boleia. Fala de Eusébio, do que espera de Eusébio, da forma como mitifica Eusébio. E falando de Eusébio, fala dos seus preconceit­os, dos seus medos, da estranheza das outras raças. Em Inglaterra, Eusébio está em campo e Portugal joga contra a Coreia do Norte. O camionista acelera, quer saber o resultado na primeira tasca de estrada que apanhe. Vai num alvoroço patriótico. Quer a glória desportiva. E, no entanto, espera- o um resultado desencanta­do. Para ele, kaputo camionista, um resultado humilhante. Poderá o mito de Eusébio resistir ao choque?

Tó-Tó gastou o dinheiro que o pai lhe mandou para o bilhete, por isso agora tem de fazer a viagem para casa à boleia de um camionista. O ano é 1966 e o dia o do mítico Portugal - Coreia do Norte. Quanto à viagem, o plano é fazê-la entre boa conversa e uma paragem para ouvir um pouco do relato. Pelo caminho, fala-se de tudo: da vida, do futebol, da raça e de como o governo de então pretende mudar as coisas. Da guerra, também. E do Eusébio, claro, esperança maior do Botijas para uma vitória devastador­a. Até à tal paragem... e ao desânimo que se lhe segue. Mas nada é certo antes do im do jogo. E, se o desânimo pode despertar revoltas, o que dizer quando tudo se inverte?

Pouco mais de cem páginas, incluindo, para além do conto que dá título ao livro, um conjunto de textos sobre o mesmo e sobre o tempo a que se refere. E, contudo, tanto haveria a dizer sobre esta história se grande parte não estivesse já lá. É que as re lexões que o conto desperta - sobre a paixão futebolíst­ica, sobre a forma como as diferentes personagen­s vivem a questão da raça, sobre a importânci­a de Eusébio para a sua geração e para as futuras - surgem também nos tais textos que acompanham o conto. E, assim, não vale a pena alongar-me quanto a isso. Tudo o que importa está no livro.

Mas, claro, além dos temas, há a escrita e essa é também ela uma grande surpresa. É cativante, sim, mas isso já era expectável. A surpresa vem da forma como, aos poucos, numa voz aparenteme­nte tão simples, os tais temas complexos emergem de forma natural. Como se fôssemos também à boleia, a ouvir a conversa entre o Tó-Tó e o Botijas e a ponderar no tanto que eles têm para dizer. É fascinante como em tão poucas páginas se consegue dizer tanto - sem loreados, sem elaboraçõe­s desnecessá­rias, indo directamen­te ao essencial e sem que isso pareça tornar a história demasiado apressada. Simples, completo e muito bem construído: assim se faz a essência desse conto.

E depois há o aspecto visual, e o laranja vivo que parece ele próprio dar outra vida ao livro, destacando o conto, que é a alma essencial do todo, e rodeando-o dos tais textos que, falando de uma história que se basta a si mesma, acrescenta­m, ainda assim, novas perspectiv­as, o que torna a leitura mais completa.

Às vezes, um livro não precisa de ser grande para ser um grande livro. É o caso deste O Kaputo Camionista e Eusébio, que, em poucas, mas muito relevantes páginas, conjuga toda a matéria de que são feitas as boas histórias. Breve, simples, mas vastíssimo em conteúdo e muito belo na voz, um livro marcante e memorável. Que não posso deixar de recomendar. (asleituras­docorvo.blogspot.com)

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