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“A ESCOLA NÃO PODE SUBSTITUIR A PASTORÍCIA” ADVERTE O ESCRITOR MOÇAMBICAN­O CARLOS DOS SANTOS

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- dos problemas! A generalida­de dos gestores de hoje vive em estado de negação. Até baniram a palavra “problema”, e passaram a chamar-lhes desa ios! Não é útil pretender substituir as circunstân­cias vigentes por proclamaçõ­es teóricas de intenções e desejos. Ora, nas condições de sobrevivên­cia em que a maioria das pessoas vive, em que não há acumulação de excedentes que permitam sustentar pessoas que não produzam o seu quinhão, fazer condenaçõe­s morais das consequênc­ias visíveis dessa pobreza material, apenas proclamand­o aquilo que seria ideal, é fútil. Não muda nada.

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Você diz que “Fazer condenaçõe­s morais das consequênc­ias visíveis dessa pobreza material, (…), é fútil. Que caminho se deve seguir?

Há que identi icar e agir sobre as causas dessas consequênc­ias. É preciso ir à procura das causas dos problemas e promover processos que produzam as mudanças pretendida­s nelas, com carácter permanente. Não é com distribuiç­ões pontuais de bens de consumo, que dão grandes reportagen­s no acto da entrega, mas se esgotam logo a seguir, que se muda alguma coisa. Ao contrário, dar-lhe peixe, mantém o pobre. Há é que ensiná-lo a pescar!

E processos sustentáve­is, com impacto permanente, nunca vêm de fora. A mudança nunca é uma substituiç­ão de elementos, é, sim, a sua transforma­ção. E isso só vem de dentro. É do ventre dos elementos negativos que deverão brotar os positivos. Não é uma questão de gostarmos ou não, de desejarmos ou não que seja assim. São as leis objectivas do desenvolvi­mento social. O que está mal combate-se com acções concretas, não com apelos e com mera retórica.

- Em jeito de conclusão, a escola não pode do nada substituir o garante do sustento da família?

Depende da qualidade e do volume das fontes de rendimento da família. No contexto da maior parte deste país rural, a escola não pode substituir a pastorícia (no caso da história) lá onde ela é a base do sustento das famílias. O acesso à aprendizag­em tem de ser feito em simultâneo – e só esse acesso, depois, assegurará condições diferentes no futuro, produzidas por essas crianças de hoje para os seus ilhos. Neste panorama é preciso encontrar soluções que vão ter com as crianças e não adoptar opções que afastam as crianças de algo que para elas não é uma escolha, que para as famílias é uma inevitabil­idade corrente. É, em parte, por se estar a fazer isso dessa maneira que há níveis tão elevados de absentismo, de desistênci­as e de reprovaçõe­s como aqueles que se veri icam. Não é porque os pais (agora) não prestam ou porque as crian- ças (agora) são preguiçosa­s, é porque a opção (agora) é inadequada e os conteúdos abstractos. O objectivo não é discutível. Mas a maneira de o alcançar, essa, é- o! Aliás, o direito proclamado das crianças é à educação, não é ao acesso a um espaço designado escola (mas onde tantas vezes não ocorre educação alguma).

- O trabalho de pasto que o menino Zua e companhia exercem parece demasiado grande. Que mensagem pretende deixar, ao não condenar esta “exploração do trabalho infantil”?

Já disse que é fútil condenar verbalment­e aquilo que está errado. Tem de alterar-se as suas causas. Propor-se soluções. É o que esta história faz. A proposta de encontrar caminhos alternativ­os à escola formal, para garantir o acesso à capacidade de ler e escrever a estas crianças que não podem deixar de pastorear, é a mais veemente de todas as condenaçõe­s que pode ser feita – pelo potencial que isso tem para eliminar essa circunstân­cia lamentável que é a privação do direito à educação do tipo escolar a tantos milhares de crianças, sem acesso à escola, umas, mas também que frequentam escolas, inúmeras outras. Fazer condenaçõe­s verbais sem propor caminhos para a alteração da situação é que é, na verdade, não condenar, e é, ao contrário e de forma disfarçada, procurar manter o status quo, de forma (cinicament­e) politicame­nte correcta. Não se condenam as coisas em si; tem, isso sim, de condenar as coisas ao fracasso – através das medidas que se sugerem ou que se aplicam.

- Para resolver muitos problemas, no local de pasto, Zua vê a escola como um celeiro de conhecimen­tos. Isso não parece óbvio? Ou está- se a ignorar o real valor da escola?

As coisas não têm valor absoluto. A escola só tem valor enquanto, e na medida em que consiga transforma­r as pessoas (os seus valores, a sua maneira de pensar, a sua capacidade de fazer, o seu comportame­nto) e, por via de cada um, transforma­r a vida social. Se não o izer, ou se o izer para o pior, ela não tem valor só porque tem a designação de “escola”. As pessoas perseguem aquilo que sentem que lhes faz falta. E fogem daquilo que lhes é inútil ou nefasto. Um comportame­nto que se veri ique em algumas pessoas apenas, é coisa de índole individual. Mas um comportame­nto massivo, como o são as taxas de absentismo, abandono e de reprovação (e a falta de aprendizag­em daqueles que, ainda assim, permanecem na escola) revela lacunas do sistema. Revela que os destinatár­ios, massivamen­te, não lhe sentem o valor. É culpa deles? Ou será que o objecto perdeu o valor que um dia teve?

- “(…) querer ter razão, que é coisa que ninguém gosta de perder”, pág. 15. No livro, há lutas para se afastar das culpas e não perder a razão. Este é mais um dos estereótip­os…

Uma história tem de conter mensagens subliminar­es, visto que parte fundamenta­l da nossa aprendizag­em de-

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