Jornal Cultura

A ALMA DO POVO E A CULTURA VEGETAL

TULIVASA MUHUKA (ATÉ AMANHÃ)

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA (REPORTAGEM E FOTOS)

Quem sai de Luanda em direcção ao Sumbe, encontra sempre, depois da ponte do rio Keve, três ou quatro artesãos a vender os seus bancos de bimba, ou mulheres exibindo luandos de quipungo, que é uma espécie de planta de talo comprido que cresce abundante nas margens do rio. A nossa viagem não foi de negócios, mas sim cultural. E a beleza dos caminhos por onde passámos é um fresco natural pintado pelas mãos da Vida. Mas o mais interessan­te foi procurar nas comunidade­s mais remotas do Lubango, Namibe e Malanje, resquícios da tradição bantu e outros elementos que formatam as relações e certas actividade­s locais.

Tulivasa muhuka (até amanhã). Com esta frase na língua do povo Nyaneka, nos despedimos da província da Fenda da Tundavala, numa terça-feira, dia 14 de Março, no começo de um périplo cultural pelas províncias do Lubango, Namibe e Malanje, fotografan­do na berma das estradas o fresco natural pintado pelas mãos da Vida. Mas o mais interessan­te foi procurar nas comunidade­s mais remotas resquícios da tradição bantu e outros elementos que formatam as relações e certas actividade­s locais.

Quem sai de Luanda em direcção ao Sumbe, encontra sempre, depois da ponte do rio Keve, três ou quatro artesãos a vender os seus bancos de bimba, ou mulheres exibindo luandos de quipungo, uma planta de talo comprido que cresce abundante nas margens do rio.

Do Sumbe até Benguela, são mais seis horas de estrada, devido aos troços carcomidos pela erosão natural e o rolar dos pneus. E também porque eu e a minha companheir­a de viagem, a jornalista sueca e também directora da ONG “O Futuro nas nossas Mãos”, uma mulher com muita vivência de África e sobretudo de Angola, sempre jovial e activa, ao ponto de ser também detentora de uma editora, a “Panta Rei” que já publicou autores angolanos traduzidos pela própria, não fomos até aos con ins de Angola para correr a alta velocidade, como o faziam os viajantes com quem cruzámos.

Benguela serviu apenas de ponto de trânsito. Na manhã do dia 10 de Março, partimos para o Lubango, onde arribámos no começo da tarde. Quem vai ao Lubango e não vê a Fenda da Tundavala não viu a maior torre de pedra que a Natureza esculpiu em Angola. Havia nevoeiro. Nas pedras, intemerári­as cabras repousavam. Os pássaros eram os donos da vertigem da fenda. À entrada, depois da estrada recentemen­te reconstruí­da e empedrara, podia ler-se a lápide: “FENDA DA TNDAVALA, Lubango, Huíla, paisagem natural e cultural classi icada. Por Decreto Executivo nº 5/GAB/MINCULT/12, de 09 de Agosto de 2012.”

Dia 11, Sábado, pisámos o solo húmido de chuva de Palanca II e Tchangalal­a, com os nossos an itriões da ADRA – Agência para o Desenvolvi­mento Rural e Ambiente. Roséria Wandy Lucas é uma jovem de 30 anos de idade, que tem dado o seu contributo em prol do desenvolvi­mento rural na província da Huíla. É ela que, no seu sorriso permanente, nos fala da associação de camponeses que congrega 40 membros, 25 mulheres e 15 homens, cada um deles com a sua lavra e aos quais a ADRA está ensinar um método de produzir alimentos a partir da batata-doce (bolinhos) e da abóbora.

Inserida na ADRA desde 2 de Março de 2014 como técnica de desenvolvi­mento comunitári­o, é ela a responsáve­l do projecto Direito da Mulher à Terra, que aborda várias temáticas tais como: as questão justiça e equidade de género, o uso e a posse de terras por mulheres, o potenciame­nto económico das famílias, dirigido às mulheres, alfabetiza­ção, apoio na obtenção de documentos pessoas, etc. O projecto Direito da Mulher à Terra está a ser implementa­do em dois municípios da Província da Huíla (Humpata com 11 aldeias e Gambos com 4 aldeias fazendo assim um total de 15 aldeias).

Roséria Wandy abordou connosco aspectos culturais ligados à vida das mulheres:

E ico (festa que se celebra quando a rapariga entra para a fase da puberdade);

Coi – adultério ou poliandria (prática a que as mulheres são submetidas para enriquecer o marido)

Sobre os aspectos culturais que mais preocupam e di icultam o desenvolvi­mento da mulher na província, Roséria destacou:

O Coi – por ser uma pratica que expõe a mulher ao grande risco de contrair o VHI/SIDA, DTS e ITS, isto porque o esposo não se importa com o número de homens com os quais ela vai se envolvendo, o importante é que ele os apanhe para pedir multa (bois). Normalment­e tem sido uma combina entre o casal.

O não direito à herança por parte dos ilhos e esposa quando o marido ou pai morre (na tradição Mwila, quando o marido morre, a esposa e os ilhos são cobertos no rosto e a família do falecido retira todos os bens, deixando assim a viúva e os órfãos na rua e sem nada), o herdeiro legitimo tem que ser o sobrinho da parte da irmã. Os ilhos que não herdam nada do pai, muitas das vezes vão à cidade à procura de novas oportunida­des e os rapazes acabam por ser delinquent­es e as meninas prostituas. Desta forma, as comunidade­s rurais vão icando mais fracas porque a maior parte da população é constituíd­a por velhos.

A não cedência de parcelas de terras às mulheres faz com que elas se submetam a maus tratos e, se o marido morrer, ela volta para a casa dos pais.

FESTAS DO MAR

Dia 12, Domingo, acordou soalheiro e fomos ao Namibe. O mais belo nesta viagem começa na descida da Serra da Leba, deixando o carro ser enrolado pela serpente de asfalto com as suas 56 curvas, cujo nome icou da engenheira que fez parte da equipa de construção rodoviária, Maria Alice Leba.

Meio caminho andado, nasce à nos- sa frente o deserto, areia e mais areia, até se chegar à cidade do peixe e do caranguejo grande, o Namibe.

Ali observámos a feira integrada nas Festas do Mar, evento anual da cidade portuária e pesqueira. Nessa feira, encontrámo­s artesanato diverso, livros expostos e dois criadores de poesia. O primeiro, com obra já publicada é o jovem Hélder Caculo, que ali estava a promover a sua obra O Sorriso da Dor. O outro era João Artes, também artesão de sandálias, que nos recitou de cor o seu poema “Me Aceita como eu Sou”.

De regresso, agora a subir a Serra da Leba, fomos colhidos pela chuva. A meio da montanha, a neblina surpreende­u a nossa marcha. Ligadas as luzes intermiten­tes e os faróis do carro, lá subimos lentamente, cruzando com os veículos que deixavam o Lubango.

SOSOYO, SOYO

A terceira etapa foi a província de Malanje. A viagem foi tranquila, com uma breve paragem à entrada de Ndalatando, para um almoço frugal, depois de uma semana na capital.

Foi numa Quinta-feira, dia 23 de Março que, dirigidos pela ADRA, nos sentámos à sombra de uma mangueira na aldeia chamada Mbanzi do Sati, município de Cangandala.

António Correia, de 78 anos, António Muquixe, 56, Francisco Venda, 65, e Armando Kitumba, 50, foram os nossos an itriões no Sati. Nesta aldeia, à

noitinha, o rio, o coelho, a lebre e outros personagen­s de misoso (estórias do povo) sentam-se à roda do fogareiro, na sala das casas onde se reúne a família, e ali se reconstroe­m narrativas que o tempo nunca apaga.

- Sosoyo, soyo - , diz o mais-velho António Correia. – O Coelho fez um pedido ao Leão: “Tenho óbito na minha casa. Empresta-me um boi.”

Quando acabou o óbito do Coelho, o Leão foi cobrar a dívida. Respondeul­he o Coelho: “Avô Leão, você ica ainda calmo. Eu vou procurar, quando achar o boi, vou to entregar.”

O Coelho convida todos os animais da mata, dizendo-lhes: “Amanhã, na minha casa, tem festa.” De seguida, vai dar o alarme ao Leão: “Leão, amanhã, vai ter à minha casa, para te pagar a tua dívida.”

Assim que os animais chegaram, juntou-os todos num quintal fechado e deu-lhes bebida. Entretanto, o Leão chega. Diz o Coelho: “Avô Leão, aqui está o que te devo. Apanha os animais que guardei para ti no meu quintal. Assim, saldo a minha dívida para contigo.”

No Sati, diz-nos Correia, já não existem batuques, todas as festas são animadas com aparelhage­m. Mesmo assim, os jisabu (provérbios) ainda são transmitid­os aos mais novos:

“Kangulo ka tutunda kia vulu, sanga ni kimbungu.” (o porco que passeia muito, acaba por se encontrar com um animal feroz).

“Quando o rio está cheio, você não tenta atravessá-lo, te apanham no jacaré.” (o que é do outro não se pode mexer, se mexer é crime).

António Muquixe fala das curas segundo a tradição. O kimbanda tem um papel relevante na cura de determinad­os males. Quando uma criança nasce torta, deve-se chamar o kimbanda. Se vier com a cabeça grande, também tem o seu remédio, enquanto é recém nascida. Quando saem jingongo ( gémeos), o kimbanda faz uma pequena cerimónia festiva. Chega com uma máscara com rosto humano e dá a kijila, sobre como é que se deve educar os gémeos até crescerem. A kijila: o primeiro a receber o alimento é aquele cuja cabeça saiu primeiro. O vestuário tem de ser igual para os dois.

Conceição Luciano, mais conhecida por Sany, tem 17 anos e é mãe de um bebé, Kika, de dois anos. Canta uma canção de embalar: “A nené que chora/ na minha varanda/ vai chamar a mãe dela/ pra lhe dar chupeta (bis). Nené, cala mbora/ nossa casa é de capim/ no dia que vai sair/ vamos mbora na mamã.”

MARIMBEIRO­S DA KATEPA

Sexta-feira à tarde, 24 de Março, encontrámo­s Pedro Balanga, 39 anos, à nossa espera no bairro da Katepa. Ele e a grande marimba de 20 cabaças nos convidando para uma festa. Um conjunto artístico de quatro tocadores e quatro dançarinas. Integrante­s do grupo Baixa de Cassange, fundado em 1986, pelos pais deles. Dos pais, aprenderam a arte de tocar e também a de tecer marimbas: - As cabaças de várias dimensões - A base que varia de 18 a 20 teclas ou tábuas, e

- Os “jundanji”, as baquetas para percussão, duas por tocador.

O grupo já esteve um dia na Guiné Equatorial, por ocasião do CAN. Cantam as canções do antigament­e, sempre em kimbundo. E assim cantaram para o jornal Cultura, no quintal, com uma imensa mole de vizinhos curiosos, vestidos com a indumentár­ia de marca. Pedro Balanga, o chefe da orquestra, Fernando Teixeira e Adão Teixeira, os três na percussão, entoaram três canções, enquanto Maria João Banzela, de 40 anos, e Del ina Victor, de 34, faziam o gosto ao pé e às ancas envoltas em muxiques, ou panos almofadado­s que cobriam as saias.

A nossa viagem de regresso à redacção do jornal, começou no Sábado, dia 25, com passagem por Kalandula, pois ir Malanje e não apreciar a espuma das quedas, é como ir a Roma e não ver o Papa.

No Kwanza-Norte fomos colhidos pela majestade das montanhas, o canto rumorejant­e dos rios sob as pontes e as aldeias perdidas nas encostas, unidas à terra e ao verde das lorestas. Depois, foi um trajecto calmo até Luanda, que nos viu chegar quase pelo im da tarde, a tempo de guardar os troféus da viagem, mandioca, carne de cabrito, um galo que nos ofereceram em Mbanzi do Sati, um pé de rosa de porcelana e duas múcuas fechadas no seu bojo de casca esverdeada que Gunilla Wimberg levaria para a Suécia, ela que gosta bué dos embondeiro­s, mas não lhes conhecia o fruto.

 ??  ?? Paisagem rural de Palanca II
Paisagem rural de Palanca II
 ??  ?? Casal de camponeses Nyaneka de Tchangalal­a.
Casal de camponeses Nyaneka de Tchangalal­a.
 ??  ?? Poeta João Artes
Poeta João Artes
 ??  ?? Est átua da Peixeira do Namibe
Est átua da Peixeira do Namibe
 ??  ?? Roséria Wendy, da ADRA
Roséria Wendy, da ADRA
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 ??  ?? Dançarinas de marimba.
Dançarinas de marimba.
 ??  ?? Com os camponeses de Malanje
Com os camponeses de Malanje
 ??  ?? Bairro de Banzi do Sati, em Malanje
Bairro de Banzi do Sati, em Malanje
 ??  ?? Marimbeiro­s da Katepa do grupo Baixa de Cassanje
Marimbeiro­s da Katepa do grupo Baixa de Cassanje
 ??  ?? Tanque de guerra destruído, à saída de Ndalatando
Tanque de guerra destruído, à saída de Ndalatando
 ??  ?? Gunilla e o repó rter junto  às quedas de Kalandula
Gunilla e o repó rter junto às quedas de Kalandula
 ??  ?? Sany com seu filho Kika
Sany com seu filho Kika

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