Jornal Cultura

SOBRE AS ÁGUAS DA VIDA O SILÊNCIO DÓI (XI)

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As cascatas deslizam numa sonoridade linda, os peixes mergulham e saltam como se a vida fosse brincar o dia inteiro, os tiros como resmas escritas numa dor ali recriada, as feridas da alma nascem em cada silêncio percorrido nesta azáfama para nunca esquecer.

Não tenho como me recolher, ali tudo é exposto e gritos dos feridos pelo corredor ensurdecem, não icamos indiferent­es nem sequer ausentes, sentimos a incompetên­cia em nós todos os dias, percorrer léguas de mato e nada apenas feridos e mortos, estiolados e desmembrad­os camaradas fuzilados, inocentes nesta campanha que só a poucos serve e nós carne para canhão neste tão distante das nossas vidas e família e de tudo o mais, tudo parece um inverno permanente que se esbate a cada gesto, tudo é um clima azedo, nada saboreamos e seguimos como nos obrigam a fazer, tudo é triste, feio, frio, medos e raiva.

O mapa para nada serve, guiamonos pelo medo, sorvemos o sangue perdido e culpa sem culpa nenhuma, teres de matar para não morrer é ingrato, agente sente apenas o dilúvio das fardas quentes e as máscaras no rosto fazendo-nos disfarçado­s de loresta e folhagem. As vozes dos nossos são permanente­s, insistem em estar juntos a nós sabendo que a distância é real, a minha mãe velhinha ainda espera pelo meu regresso, a minha ilha crescendo e tu Deolinda, escre- ves-me pela noite fora como se o amor estivesse no meu quarto de tenda a afagar-me de tantos ruídos disparados de não sei onde, eu a ingir estar bem para te acalmar com esta ausência tão fria e feia, não vejo a minha ilha mas sinto-a como se no meu colo estivesse, - hoje levo-a ao infantário amor! mas tudo são delírios, uma febre enfadonha cobre o corpo e a testa arde como se a morte me viesse a visitar!

Visitar o desconheci­do é di ícil, tudo vai sendo cada vez mais estranho, estudamos os mapas e nada de verdade, leio e estudo os desenhos, onde atacar ou onde se aloja o inimigo, todos os cantos são um possível esconderij­o, nós descoberto­s nessa estranha caminhada, revoltados também, obrigados a fazer tudo isto, tanta a revolta em todos, dos soldados ao médico de campanha desabafos a cada passo, ninguém larga as memórias, ninguém vive sem se recordar do que alguma na vida se havia sido, de tudo um pouco e o soldado quase analfabeto nas trincheira­s nem percebe por quê esconder-se, apenas do medo sabe e sente, gritam e disfarçam, noção de que a cobardia os invadirá serem heróis ao menos os contentará.

Na parada preparamos a estratégia. O oficial de dia lê as ordens e determinaç­ões do comandante. Ouvimos de soslaio esse aviso e sempre repetido, - que voltem todos vivos! raios o partam!, tropa como nós, o icial e nós segmentos de ordens, somos apenas soldados e sem estudos,

- sempre fui camponês meu comandante!

ainda a matança do porco na aldeia, a imagem da Aldina tatuada num braço e no peito amo-te mãe, lágrimas de sangue jorram, o coração destroçado e que força, os cães ladram atrás das caravanas e seguimos, as nativas pelo caminho acenam, as aldeias vivem um conforto natural e fogueiras para nos receberem, assados e bebida num conforto raro, quem somos nós?, amigos garantidam­ente obrigados a este percurso que na vida só deixará marcas, nem todas más, áfrica é um continente interessan­te, por quê esta guerra contra os meus irmãos de cor diferente?, recordo vila real sem mim, quem se recordará de mim?, parti para uma missão de lágrimas, sim, e que destino para o meu regresso?

Num cais qualquer de lisboa, o navio atracar onde centenas, gente que nos espera e quem nos espera?, regressado­s da guerra do ultramar, trajados a rigor onde que vómitos, o enjoo na viagem, Don Afonso Henriques velho e cansado traz-nos de regresso onde caixões e solidão nos preenche de vazio e dor, onde que traumas a nossa alma, - sonhei todos os dias com isto! sussurrava um soldado isolado, o cais do Sodré ao lado e nada, um bar sorver sedes e saudades, marinheiro­s e prostituta­s a vida é curta, - sobrevivi meu amor! outro, - cumpri com toda a sagacidade da pátria!

ninguém a não ser o vento do tejo a repousar um frio sobre que boinas e barba, - esperas por mim? o soldado de trás os montes sem rumo, quem o viera buscar?, coisa nenhuma, perdemos o rumo e três anos de campanha, venci o mato e perdi a honra de cidadão na minha pátria.

Ainda no norte de angola eu e tantos, onde ainda comissões, para quando o im disto tudo, para quando o im de que Salazar a cansar-me demais, para quando o teu beijo, abraço, leio as cartas e só saudades e dor a aumentarem, - voltarei amor! murmurava na tenda onde nada era vida.

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