Jornal Cultura

O TEMPO-ESPAÇO ANGOLANO EM INÁCIO REBELO DE ANDRADE

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Falando de um escritor angolano que exprimiu o ser através da linguagem literária, nunca virá ao caso a lorar recorrênci­as cosmológic­as reportando Newton ou Einstein... Todavia, nem por isso o autor telúrico, agrónomo de formação e mister académico, que foi Inácio Rebelo de Andrade, deixará de ser, a meu ver, um verdadeiro “case study”, pelo que nele, pela memória e linguagem descritas numa obra copiosa, que abarca quase todos os géneros literários, se insere nas Con issões de Santo Agostinho, segundo as quais “pensar o tempo signi ica a obrigação de pensar na linguagem que o diz e nele se diz.”

Quem leu os numerosos livros representa­dos por romances, contos, memórias e poemas que ele escreveu, todos centrados num tema único – o Huambo e as suas gentes – não deixará de considerar que, nele, o tempo foi medido pelo espaço em que decorreram as coisas, produzindo uma interiorid­ade psíquica que, no pensamento agostinian­o, “abriu um novo campo de reflexão: o da temporalid­ade da nossa condição específica de seres que não só nascem e morrem ‘ no’tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têm consciênci­a dessa sua condição temporal e mortal.” Para Santo Agostinho, tal como para Inácio, que era um crente confesso, eternidade, só a de Deus... E ele tinha consciênci­a dessa relativida­de. Como confessa num breve poema do livro O que Disparo em Verso: “Ao fim de tantos anos, / não sei se tudo aquilo que escrevi/ valeu então a pena; / se mereceu o tempo de leitura/ ou foi coisa pequena/e má literatura.”

Se for verdade, como escreveu Eduardo Lourenço, que“A literatura modi icou desde o início a relação dos homens consigo mesmos. Antes: criou-lhes uma imagem sem a qual se pode dizer que não tinham imagem”, no escritor Inácio Rebelo de Andrade essa criação deu-se com a assunção da imagem de um Huambo feito alma, pátria ou mátria de quem se a irma pela memória e saudade de um paraíso perdido, ou porventura adiado, a crer nas últimas palavras de Lamento de um Exilado: “Quando recordo a minha terra, cheia de luz, de cores, de sons, de cheiros e de sabores, quando a evoco e lhe recupero pela memória a dimensão in indável – toma-me cá o peito um abatimento tão grande, que eu só quero é acabar de vez com este exílio e voltar para lá!”

Mas não voltou... Saído com a família da cidade então chamada Nova Lisboa, nos meados de 1975, quando localmente a guerra civil tornou, para ele e outros ilhos do Huambo, a vida insuportáv­el, sob uma constante ameaça que não distinguia os bons e os maus ilhos da terra-mater, a ponte aérea estabeleci­da in extremis fez de Lisboa o “porto de abrigo” que ele só pensou aproveitar como recurso até ao termo da guerra fraticida que devassara a sua terra natal. Entretanto, algo mais, e também chocante, aconteceu: a caminho do Centro de Saúde que fundara nos arredores da cidade para servir o povo, o “médico dos pobres” David Bernardino é assassinad­o pelos guerrilhei­ros da UNITA; na mesma altura, outros amigos próximos, também conotados com o MPLA, são igualmente vítimas do mesmo inimigo; mais tarde ainda, em 1977, o amigo, colega agrónomo e companheir­o nas lides editoriais da “Colecção Bailundo”, o jornalista, cronista e poeta Ernesto Lara (Filho), morre em plena cidade já destruída num acidente de viação. Enterrado quase anonimamen­te em campa rasa, acabara de escrever um poema trágico, mas ainda esperanços­o, intitulado simplesmen­te “Huambo”, que termina assim:

Em teu chão regado pelo sangue dos que tombaram, onde apodrecem cadáveres, hão- de lorir dálias roxas como as que colhi ontem

no meu quintal (…) Durante a metade da sua vida que o ixou a Portugal, nomeadamen­te no Monte Estoril, com períodos de ausência em função do seu mister de professor universitá­rio, na França, Brasil e Macau, Inácio escreveu até falecer, com 82 anos, de doença prolongada, na manhã de 14 de Maio de 2017 (como se esperasse pelo termo das festividad­es de Fátima, para não ferir os devotos…), tudo quanto era possível escrever, em História e Sociologia, sobre o Huambo e a cidade que se chamou Nova Lisboa. Inclusivam­ente, ele mantinha um blog signi icativamen­te intitulado “Mukandas do Monte Estoril” e o e- mail “irdeadohua­mbo”. E sempre ixado numa Saudade que não cedeu às visões pessimista­s de outros conterrâne­os notáveis, de nascimento, como o grande radialista Sebastião Coelho, e de circunstân­cia ( pela adolescênc­ia e primeira exposição no Andulo) o não menos grande pintor e poeta Albano Neves e Sousa, exilado o primeiro em Buenos Aires e o segundo em Salvador da Bahia – todos podendo dizer o mesmo que disseram Sebastião e Albano num encontro programado no Brasil: ”Já que não posso estar em Angola, Angola está em mim.”

No fundo, todos eles admitindo que depois de um tempo outros tempos viriam, a Saudade do passado vivido, pensado e trabalhado com amor ia vencendo o Presente que em 1998 ainda o poeta David Mestre revertia num prefácio ao livro de Inácio Quando o Huambo era Nova Lisboa:

Nova Atlântida, perdão, Nova Lisboa submergiu deste modo, tragicamen­te insepulta, na História. (…) Nada restou de pé, eu próprio assisti na televisão de Luanda ao pânico da população civil fugindo pelas ruas e tombando sob a metralha com os parcos haveres à cabeça, mulheres e crianças correndo para lado nenhum, para o capim, para o mato, grávidas parindo no caminho, gente desfalecen­do à míngua, à sede, à morte anunciada pelo voo paciente e circular dos abutres.

Em 2001, Inácio con ia-me um posfácio às suas Revisitaçõ­es no Exílio, em que concluo:

En im, conhecido, hoje, o inal da “história”, não falta quem chame Utopia aos “sonhos” e “esperanças” que mobilizara­m o autor e muitos portuguese­s, angolanos e luso- angolanos, por palavras e actos não necessaria­mente revolucion­ários, no “combate contra algumas iniquidade­s”. Não eram utopistas: tinham “os pés incados na terra” e a convicção irme de que, extirpadas as ervas ruins e impedindo os predadores, havia todas as hipóteses de alcançar uma colheita excelente. E, assim, o “ inal” da história seria outro.

Quisessem os deuses.

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