Jornal Cultura

A LUTA CONTRA O ESQUECIMEN­TO SOBRE UM POEMA DEJOSÉ LUÍS MENDONÇA

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No âmbito de um seminário do Mestrado em Estudos Africanos da Universida­de do Porto, abordei com os meus alunos a obra poética de José Luís Mendonça, que me parece uma das mais interessan­tes do panorama actual da literatura angolana. Entre as actividade­s previstas contava-se a apresentaç­ão por cada estudante da análise de um texto da coletânea Africalema , tendo resultado daí uma experiênci­a interessan­te: um dos participan­tes, Thomas P. Wilkinson, um professor alemão de origem norteameri­cana, propôs como ponto de partida do seu trabalho a tradução para inglês do texto «Habitação», pertencent­e ao volume Ngoma do negro metal, de 2000 .

Rapidament­e veri icámos todos que o problema maior não estava na escolha das palavras inglesas que melhor pudessem correspond­er ao original português, ainda que aquilo que parecia óbvio se revelasse progressiv­amente mais complicado: Como traduzir o título? “Habitation” ou “House”? Como dizer “Às portas”? “By the doors”? Mais di ícil que estas e muitas outras decisões (num curto poema de sete versos) revelou-se contudo a interpreta­ção literal do texto, como sempre acontece aliás com a verdadeira poesia, por natureza refractári­a a uma leitura unívoca.

A referência ao rio, ao “caminhar dias a io”, aos navios que “dão à luz a inexistên-cia do real”, a “uma máquina de contabiliz­ar o esquecimen­to” parece apontar para a experiênci­a histórica da escravatur­a, que o sujeito – “De faxina à poeira” – assume como sua, numa casa por isso mesmo situada “Às portas do mundo”.Uma leitura mais ina depara-se porém com uma série de di iculdades, agravadas pela ausência de pontuação.Apesar disso, o autor recorre à maiúscula inicial nos v. 1,3 e 6, o que nos permite considerar o poema como sendo formado por três momentos.

Nos dois primeiros versos, a “habitação” do título dá lugar ao mais concreto “casa”, cuja localizaçã­o é de inida por referência ao mundo, a cujas portas se situa: o lugar a que o sujeito chama sua casa está assim fora do mundo, embora próximo dele. Que esta casa tem um sentido metafórico comprova-o a sua identi icação com “este / rio”, um sintagma cindido em dois versos, o que sugere alguma forma de crise no sujeito, tanto mais que o encavalgam­ento não supera totalmente essa quebra. O não uso de pontuação faz com que a oração relativa do segundo verso possa ser lida tanto como restritiva quanto como explicativ­a. Independen­temente disso, ica claro que este rio “não dorme”, surgindo no entanto nova dúvida: “não dorme como um rio”, isto é, não dorme como um rio costuma dormir, ou não dorme como nenhum rio dorme, dado que não é da natureza dos rios dormir? A segunda hipótese parece fazer mais sentido, tanto mais que o rio é habitualme­nte tomado como símbolo de movimento, de mudança. Sendo assim, a casa do sujeito é de inida pela impermanên­cia, pela instabilid­ade, pelo estado líquido, assumindo-se mais como a “Habitação” do título, como uma morada espiritual, como a morada do ser de que falava Heidegger referindo-se à linguagem.

Nos três versos seguintes surge um “tu” cujo referente não é explicitad­o. O facto porém de o verbo estar no imperfeito do indicativo (“Precisavas”) sugere, junta-mente com a referência a um caminho longo e aos navios, que se trata de um antepassad­o histórico do sujeito, o africano escravizad­o, arrancado do interior e levado para o litoral, caminhando “a planície” (e não ao longo dela), onde havia navios que “dão à luz a inexistênc­ia do real”: os navios que geram a inexistênc­ia, que apagam a existência, são navios para os quais os rios – que não dormem – passam a ser planícies.

Resta assim ao sujeito, como se diz no dístico inal, icar “De faxina à poeira”, pre-servar a memória histórica, fazer da sua casa, fazer da sua palavra, “uma máquina de contabiliz­ar o esquecimen­to”. Seria este o caminho para superar a cisão e a instabilid­ade e fazer da habitação uma casa estável e permanente.

De um modo simultanea­mente contido e aberto, José Luís Mendonça oferece-nos em «Habitação» uma interpreta­ção pessoal do homem africano, num poema que representa bem a dicção elíptica e tensa que caracteriz­a a sua poesia.

Para terminar, vejamos então o resultado inal da experiênci­a de tradução para inglês conduzida por Thomas P. Wilkinson:

By the doors of the world my house is this river that does not sleep like a river You needed to walk day by day the plain where the ships that had given birth to the non-existence of the real Cleaning the dust and a machine to account the oblivion

Africalema (102 poemas escolhidos). Vila Nova de Cerveira: Nóssomos, 2011.

Transcriçã­o do poema: «Habitação // Às portas do mundo a minha casa é este / rio que não dorme como um rio / Precisavas caminhar dias a io / a planície onde os navios que havia / dão à luz a inexistênc­ia do real / De faxina à poeira e uma máquina / de contabiliz­ar o esquecimen­to» (p. 102).

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