Jornal Cultura

“PODE UMA POLÍTICA DE MULTICULTU­RALIDADE EXISTIR SEM UMA GRANDE NARRATIVA?”

- VICTOR CHONGOLOLA

Este trabalho pretende efectuar uma re lexão sobre os conceitos de multicultu­ralismo e multicultu­ralidade bem como o de isomor ismo, estabelece­ndo uma relação com o espaço e a realidade cultural de Angola. O multicultu­ralismo prende-se com políticas do poder e é positivo, quando consegue promover a diversidad­e cultural, a igurando-se as diferentes culturas como fonte de enriquecim­ento mútuo. Desafortun­adamente, pode tomar uma direcção oposta, privilegia­ndo uma cultura e desvaloriz­ando as demais, sendo neste caso fonte de con litos. Baseando-nos nas leituras de obras relacionad­as com o tema, bem como noutros trabalhos que se debruçam sobre cultura, a im de tornar os conceitos mais claros, passamos a contextual­izá-los para o caso de Angola, fazendo igualmente ligação com a Lei constituci­onal do país no que diz respeito às línguas e à cultura. Esta re lexão leva-nos a admitir que há muito trabalho pela frente, pois embora a lei esteja virada para a valorizaçã­o e promoção das línguas e culturas angolanas, na prática, pouco ou quase nada se faz para dar visibilida­de a tais línguas e, por conseguint­e, às culturas que as mesmas veiculam, assim como às nossas tradições. Só um conhecimen­to adequado das nossas línguas e das nossas culturas é capaz de promover um maior nível de compreensã­o entre nós mesmos, pelo que, temos grande necessidad­e de estender o prescrito na lei para a prática.

Introdução

As relações entre os homens e entre os povos constituem uma realidade complexa e repleta de sinuosidad­es. As sociedades encontram-se organizada­s em classes e estas mantêm entre si relações caracteriz­adas, em regra, por desigualda­des, desde as mais manifestas às mais subtis. As elites, a superestru­tura, esmeram-se em emitir declaraçõe­s que fa- çam transparec­er um clima de harmonia, pois levam as classes subalterni­zadas a crerem que as di iculdades vividas são ditadas pela própria natureza, fazendo-as, assim, conformar-se com o estado de coisas, quando, a verdade é bem diferente. Se, a dado passo da história da humanidade, o preconceit­o e as injustiças se encontrava­m patentes nas próprias leis, hoje, veri ica-se a existência de leis aparenteme­nte justas, porém, di icilmente se transpõe tal justeza para a prática, ainda dominada por manifestaç­ões preconceit­uosas, especialme­nte, em sociedades multiétnic­as. Este trabalho tem como objectivo discutir os conceitos de multicultu­ralismo, multicultu­ralidade e isomor ismo, estabelece­ndo a devida contextual­ização para a realidade angolana.

1. A multicultu­ralidade

Segundo CAHEN (2014), Lorenzo Macagno refere-se aos conceitos de multicultu­ralidade e de multicultu­ralismo, consideran­do o primeiro como uma situação e o segundo, uma teoria ou uma política. Nesta ordem de ideias, entendemos por multicultu­ralidade não só a partilha de um território comum por diferentes culturas, ou “heranças culturais”, no dizer de Cahen, mas também o conjunto de relações que as mesmas mantêm entre si. O multicultu­ralismo re lectiria, então, o olhar do poder para as culturas existentes no território sob sua jurisdição.

O autor traz também à luz o conceito de isomor ismo de inido como a identi icação exacta entre uma língua, uma soberania e um território. Podemos pois, entender o isomor ismo, igualmente, como uma orientação política.

Da declaração universal dos direitos linguístic­os, depreende-se que cada comunidade linguístic­a tem o direito a desenvolve­r a sua língua, a ser instruído na própria língua, a ser assistido administra­tiva e juridicame­nte na própria língua.

Tendo em conta estes consideran­dos, olhando para a nossa situação em Angola, sobejament­e co- nhecida como multilingu­e e sabendo que cada língua veicula uma cultura, surgem, naturalmen­te, algumas preocupaçõ­es:

Quantas comunidade­s linguístic­as existem em Angola? Ao estabelece­r o Português como a única língua o icial foi tido em consideraç­ão o conceito de comunidade­s linguístic­as? Ou, em nome da unidade nacional, se ignorou a diversidad­e?

Parece-nos que nos encontramo­s num autêntico isomor ismo que procura identi icar o território angolano e a sua soberania com uma única língua, o Português, votando as línguas africanas de Angola a um verdadeiro abandono. Ora, isso resulta não só no desprezo da cultura mas também no descaso do grande número de angolanos que comunicam melhor numa ou noutra dessas línguas do que em Português, di icultando-lhes, à partida, o direito à informação e ao conhecimen­to porque expressos em Português. Além disso, reduz-se-lhes signi icativamen­te a possibilid­ade de uma participaç­ão activa e crítica na vida da sociedade.

Lembra CAHEN (2014, p. 33) que «(n)unca se deve esquecer que o famoso “direito à diferença”, quando transcrito na prática, signi ica a “diferença do direito”». Quer isto dizer que se cada pessoa ou cada indivíduo tem o direito de ser assistido na sua própria língua, é dever e obrigação do Estado criar todas as condições necessária­s para que essa língua cumpra realmente essas funções. Uma maneira de fazer isso é promover o estudo e o ensino dessas línguas, é conhecer e promover as diferentes culturas existentes no território sob sua jurisdição. É di ícil e complexo, sem dúvida, mas é o caminho mais seguro e promissor para alcançar tal desiderato.

2. Os universali­smos

As reivindica­ções que se façam têm, na maior parte dos casos, senão sempre, como inalidade a busca de uma sociedade mais inclusiva. Os homens e os grupos sociais lutam por uma a irmação ou seja por

uma presença concreta na sociedade, aspiram por um protagonis­mo na condução do próprio destino. É muito di ícil, no entanto, encontrar uma disponibil­idade por parte das elites dirigentes que favoreça a materializ­ação desses intentos, pois buscam subtil ou ostensivam­ente a instrument­alização das massas.

CAHEN (2014) indica dois tipos de universali­smos: os abstractos e os concretos: os primeiros estão relacionad­os com igualdades teóricas, ideais, consubstan­ciadas em discursos, às quais falta a componente prática; os segundos estão relacionad­os com medidas especí icas adequadas à resolução de problemas concretos com caracterís­ticas particular­es. Estes conceitos remetem-nos aos de igualdade e de equidade, e bem assim, às diferenças identi icadas entre os mesmos. Enquanto a igualdade equivaleri­a a pôr um bem à disposição de todos, a equidade preocupar-se-ia em proporcion­ar condições a cada um para que realmente usufrua daquele bem. Enquanto essas condições não existirem não se pode falar de justiça.

Com efeito, o acesso a um determinad­o bem não é dado pela sua existência, mas pelas condições de que cada um dispõe para poder usufruir do mesmo. É, pois necessário dotar as pessoas de meios que as ajudem a alcançar aquilo de que têm direito, sob pena de se cair em abstracçõe­s que nada mais promovem senão desigualda­des sociais, uma vez que aquilo que é visto como de todos, na verdade é para o círculo restrito de indivíduos.

3. A cultura e a identidade

Segundo MORIN (2000, p. 56), «A cultura é constituíd­a pelo conjunto de saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégia­s, crenças, ideias, valores, mitos que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexida­de ideológica e social».

Sem cultura o homem não é digno desse nome. É a cultura que lhe abre o mundo de signi icações. É a cultura que estabelece a diversidad­e humana na sua unidade biológica. Dado que cada cultura representa uma maneira própria de conceber o mundo, a imposição de determinad­as culturas sobre as outras pode gerar con litos.

ABBAGNANO et al. (1992) falam de culturas estáticas ou primárias e culturas dinâmicas ou secundária­s, entendendo as primeiras como as conservado­ras ou aquelas que atribuem um carácter sagrado às normas que permitem a sobrevivên­cia do grupo, sendo a violação das mesmas passível de sanções. As culturas dinâmicas são aquelas abertas às inovações e possuem instrument­os que lhes permitem enfrentá-las, compreendê-las e utilizá-las. Quer dizer que estas sociedades, através de um olhar crítico sobre as novidades, são capazes de fazer uma iltragem àquilo que lhes chega de outras culturas e incorporar o que nelas encontram de positivo.

Ora o contexto actual parece desfavoráv­el à manutenção das culturas estáticas, que serão, hoje em dia, muito reduzidas, pois, se por um lado, temos de admitir o contacto entre povos antes da expansão europeia, que foi feita de modo extremamen­te violento para as culturas locais, visando a sua neutraliza­ção, estas embora tendo resistido, foram, ainda assim, incorporan­do elementos das culturas europeias, representa­dos especialme­nte pela língua.

A cultura é igualmente a base da construção da identidade. KALUF (2005) identi ica três funções da cultura, entre as quais:

1-Prisma através do qual o homem interpreta o mundo, dá sentido à vida em sociedade, organiza as suas relações com outrem;

2-Vector da identidade;

3-Reúne os seres humanos numa humanidade comum.

Como se pode ver, sem cultura não há identidade, pois esta implica sempre a presença do outro, a qual, por sua vez, só é possível se for vista como uma relação. A identidade apresenta-se a dois níveis: a individual e a social ou cultural. A primeira é a que faz com que um indivíduo seja aquilo que realmente é e não se confunda com o outro e a segunda é a que determina que um grupo seja o que verdadeira­mente é e não outro (PAPILA, et al., 2001). A identidade individual forma-se dentro de um contexto grupal, a família, os amigos, a comunidade, a igreja e outros. O grupo fornece o substrato cultural para o indivíduo, e, como ele não é passivo, trabalha-o, renova-o, interioriz­a-o, torna-o seu, uma vez que lhe transmite algo da sua personalid­ade e, com isso, in luencia também a cultura do grupo a que pertence.

A identidade social ou cultural consiste na especi icidade de cada grupo humano, naquilo que assemelha os seus constituin­tes e os diferencia dos outros.

Uma vez que, a cultura não é estática, a identidade que em grande medida depende dela também não o é. Assim, uma pessoa pode ter tantas identidade­s quantos os grupos, cujos valores for incorporan­do e que marcam presença na sua maneira de viver e de actuar. Deste modo, uma pessoa que exerça a pro issão de professor e tenha a sua consciênci­a étnica, identi icar-se-á com os valores da sua pro issão e ao mesmo tempo com os do seu grupo étnico.

Por outro lado, o próprio facto de cada indivíduo e todos os grupos humanos possuírem uma cultura está na base da terceira função da cultura, pois surge como um atributo comum a todos os homens e a todos os agrupament­os humanos, o que leva, logicament­e, a olhar para os outros homens e para os outros grupos. No dizer de KALUF (2005, p. 17) «[...] cultura es [...] tambén una manera de ver a otros, de pensar-se com ellos, de tomar conciencia de que a pertenenci­a a un grupo comanda al mismo tiempo ciertas reglas de relación com los otros.» Em última instância, pode dizer-se que esta função da cultura consiste em permitir a convivênci­a humana na sua diversidad­e e a todos os níveis. Infelizmen­te, nem sempre isso tem sido possível, ao longo da história da humanidade, marcada por desentendi­mentos e guerras, resultante­s das tentativas de impor uma cultura às outras, procurando ofuscá-las ou eliminálas. Com isso, procura-se igualmente anular a identidade dos grupos subjugados bem como de seus membros. Tais posicionam­entos são decorrente­s do preconceit­o social nas suas diversas manifestaç­ões que levam os seus protagonis­tas a pensar que o seu grupo ou a sua classe tem mais valor que os outros, coarctando a estes as possibilid­ades de realização.

Assim, o reconhecim­ento da diversidad­e cultural a igura-se hoje como uma das condições para a paz. Isto implica a criação e a implementa­ção de políticas inclusivas e participat­ivas que, além de contribuír­em para a compreensã­o do estado de coisas, proporcion­em a todos os grupos e a cada indivíduo uma oportunida­de de participar conjuntame­nte com os demais na resolução dos problemas que os a ligem.

As políticas têm um papel determinan­te no que diz respeito ao clima que se vive numa determinad­a sociedade. Já ABBAGNANO et al. (1992) diziam que o progresso intelectua­l que a Grécia conheceu não se deveu à excepciona­lidade do seu povo, mas sim às políticas empregues, que favoreciam o desenvolvi­mento do pensamento. Para não variar, diz a declaração da UNESCO sobre os direitos culturais, artigo 2 que «[...] o pluralismo cultural é propício aos intercâmbi­os culturais e ao desenvolvi­mento das capacidade­s criadoras que alimentam a vida pública.». Quer dizer que a diversidad­e cultural, longe de criar problemas para a sociedade, enriquece-a, pois pode oferecer diversos ângulos para encarar um determinad­o problema e alargar o leque de soluções para o mesmo, o que se pode traduzir numa oportunida­de de cresciment­o e progresso das culturas.

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Imagem de um dos quadros do pintor moçambican­o Malangatan­a

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