“PODE UMA POLÍTICA DE MULTICULTURALIDADE EXISTIR SEM UMA GRANDE NARRATIVA?”
Este trabalho pretende efectuar uma re lexão sobre os conceitos de multiculturalismo e multiculturalidade bem como o de isomor ismo, estabelecendo uma relação com o espaço e a realidade cultural de Angola. O multiculturalismo prende-se com políticas do poder e é positivo, quando consegue promover a diversidade cultural, a igurando-se as diferentes culturas como fonte de enriquecimento mútuo. Desafortunadamente, pode tomar uma direcção oposta, privilegiando uma cultura e desvalorizando as demais, sendo neste caso fonte de con litos. Baseando-nos nas leituras de obras relacionadas com o tema, bem como noutros trabalhos que se debruçam sobre cultura, a im de tornar os conceitos mais claros, passamos a contextualizá-los para o caso de Angola, fazendo igualmente ligação com a Lei constitucional do país no que diz respeito às línguas e à cultura. Esta re lexão leva-nos a admitir que há muito trabalho pela frente, pois embora a lei esteja virada para a valorização e promoção das línguas e culturas angolanas, na prática, pouco ou quase nada se faz para dar visibilidade a tais línguas e, por conseguinte, às culturas que as mesmas veiculam, assim como às nossas tradições. Só um conhecimento adequado das nossas línguas e das nossas culturas é capaz de promover um maior nível de compreensão entre nós mesmos, pelo que, temos grande necessidade de estender o prescrito na lei para a prática.
Introdução
As relações entre os homens e entre os povos constituem uma realidade complexa e repleta de sinuosidades. As sociedades encontram-se organizadas em classes e estas mantêm entre si relações caracterizadas, em regra, por desigualdades, desde as mais manifestas às mais subtis. As elites, a superestrutura, esmeram-se em emitir declarações que fa- çam transparecer um clima de harmonia, pois levam as classes subalternizadas a crerem que as di iculdades vividas são ditadas pela própria natureza, fazendo-as, assim, conformar-se com o estado de coisas, quando, a verdade é bem diferente. Se, a dado passo da história da humanidade, o preconceito e as injustiças se encontravam patentes nas próprias leis, hoje, veri ica-se a existência de leis aparentemente justas, porém, di icilmente se transpõe tal justeza para a prática, ainda dominada por manifestações preconceituosas, especialmente, em sociedades multiétnicas. Este trabalho tem como objectivo discutir os conceitos de multiculturalismo, multiculturalidade e isomor ismo, estabelecendo a devida contextualização para a realidade angolana.
1. A multiculturalidade
Segundo CAHEN (2014), Lorenzo Macagno refere-se aos conceitos de multiculturalidade e de multiculturalismo, considerando o primeiro como uma situação e o segundo, uma teoria ou uma política. Nesta ordem de ideias, entendemos por multiculturalidade não só a partilha de um território comum por diferentes culturas, ou “heranças culturais”, no dizer de Cahen, mas também o conjunto de relações que as mesmas mantêm entre si. O multiculturalismo re lectiria, então, o olhar do poder para as culturas existentes no território sob sua jurisdição.
O autor traz também à luz o conceito de isomor ismo de inido como a identi icação exacta entre uma língua, uma soberania e um território. Podemos pois, entender o isomor ismo, igualmente, como uma orientação política.
Da declaração universal dos direitos linguísticos, depreende-se que cada comunidade linguística tem o direito a desenvolver a sua língua, a ser instruído na própria língua, a ser assistido administrativa e juridicamente na própria língua.
Tendo em conta estes considerandos, olhando para a nossa situação em Angola, sobejamente co- nhecida como multilingue e sabendo que cada língua veicula uma cultura, surgem, naturalmente, algumas preocupações:
Quantas comunidades linguísticas existem em Angola? Ao estabelecer o Português como a única língua o icial foi tido em consideração o conceito de comunidades linguísticas? Ou, em nome da unidade nacional, se ignorou a diversidade?
Parece-nos que nos encontramos num autêntico isomor ismo que procura identi icar o território angolano e a sua soberania com uma única língua, o Português, votando as línguas africanas de Angola a um verdadeiro abandono. Ora, isso resulta não só no desprezo da cultura mas também no descaso do grande número de angolanos que comunicam melhor numa ou noutra dessas línguas do que em Português, di icultando-lhes, à partida, o direito à informação e ao conhecimento porque expressos em Português. Além disso, reduz-se-lhes signi icativamente a possibilidade de uma participação activa e crítica na vida da sociedade.
Lembra CAHEN (2014, p. 33) que «(n)unca se deve esquecer que o famoso “direito à diferença”, quando transcrito na prática, signi ica a “diferença do direito”». Quer isto dizer que se cada pessoa ou cada indivíduo tem o direito de ser assistido na sua própria língua, é dever e obrigação do Estado criar todas as condições necessárias para que essa língua cumpra realmente essas funções. Uma maneira de fazer isso é promover o estudo e o ensino dessas línguas, é conhecer e promover as diferentes culturas existentes no território sob sua jurisdição. É di ícil e complexo, sem dúvida, mas é o caminho mais seguro e promissor para alcançar tal desiderato.
2. Os universalismos
As reivindicações que se façam têm, na maior parte dos casos, senão sempre, como inalidade a busca de uma sociedade mais inclusiva. Os homens e os grupos sociais lutam por uma a irmação ou seja por
uma presença concreta na sociedade, aspiram por um protagonismo na condução do próprio destino. É muito di ícil, no entanto, encontrar uma disponibilidade por parte das elites dirigentes que favoreça a materialização desses intentos, pois buscam subtil ou ostensivamente a instrumentalização das massas.
CAHEN (2014) indica dois tipos de universalismos: os abstractos e os concretos: os primeiros estão relacionados com igualdades teóricas, ideais, consubstanciadas em discursos, às quais falta a componente prática; os segundos estão relacionados com medidas especí icas adequadas à resolução de problemas concretos com características particulares. Estes conceitos remetem-nos aos de igualdade e de equidade, e bem assim, às diferenças identi icadas entre os mesmos. Enquanto a igualdade equivaleria a pôr um bem à disposição de todos, a equidade preocupar-se-ia em proporcionar condições a cada um para que realmente usufrua daquele bem. Enquanto essas condições não existirem não se pode falar de justiça.
Com efeito, o acesso a um determinado bem não é dado pela sua existência, mas pelas condições de que cada um dispõe para poder usufruir do mesmo. É, pois necessário dotar as pessoas de meios que as ajudem a alcançar aquilo de que têm direito, sob pena de se cair em abstracções que nada mais promovem senão desigualdades sociais, uma vez que aquilo que é visto como de todos, na verdade é para o círculo restrito de indivíduos.
3. A cultura e a identidade
Segundo MORIN (2000, p. 56), «A cultura é constituída pelo conjunto de saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade ideológica e social».
Sem cultura o homem não é digno desse nome. É a cultura que lhe abre o mundo de signi icações. É a cultura que estabelece a diversidade humana na sua unidade biológica. Dado que cada cultura representa uma maneira própria de conceber o mundo, a imposição de determinadas culturas sobre as outras pode gerar con litos.
ABBAGNANO et al. (1992) falam de culturas estáticas ou primárias e culturas dinâmicas ou secundárias, entendendo as primeiras como as conservadoras ou aquelas que atribuem um carácter sagrado às normas que permitem a sobrevivência do grupo, sendo a violação das mesmas passível de sanções. As culturas dinâmicas são aquelas abertas às inovações e possuem instrumentos que lhes permitem enfrentá-las, compreendê-las e utilizá-las. Quer dizer que estas sociedades, através de um olhar crítico sobre as novidades, são capazes de fazer uma iltragem àquilo que lhes chega de outras culturas e incorporar o que nelas encontram de positivo.
Ora o contexto actual parece desfavorável à manutenção das culturas estáticas, que serão, hoje em dia, muito reduzidas, pois, se por um lado, temos de admitir o contacto entre povos antes da expansão europeia, que foi feita de modo extremamente violento para as culturas locais, visando a sua neutralização, estas embora tendo resistido, foram, ainda assim, incorporando elementos das culturas europeias, representados especialmente pela língua.
A cultura é igualmente a base da construção da identidade. KALUF (2005) identi ica três funções da cultura, entre as quais:
1-Prisma através do qual o homem interpreta o mundo, dá sentido à vida em sociedade, organiza as suas relações com outrem;
2-Vector da identidade;
3-Reúne os seres humanos numa humanidade comum.
Como se pode ver, sem cultura não há identidade, pois esta implica sempre a presença do outro, a qual, por sua vez, só é possível se for vista como uma relação. A identidade apresenta-se a dois níveis: a individual e a social ou cultural. A primeira é a que faz com que um indivíduo seja aquilo que realmente é e não se confunda com o outro e a segunda é a que determina que um grupo seja o que verdadeiramente é e não outro (PAPILA, et al., 2001). A identidade individual forma-se dentro de um contexto grupal, a família, os amigos, a comunidade, a igreja e outros. O grupo fornece o substrato cultural para o indivíduo, e, como ele não é passivo, trabalha-o, renova-o, interioriza-o, torna-o seu, uma vez que lhe transmite algo da sua personalidade e, com isso, in luencia também a cultura do grupo a que pertence.
A identidade social ou cultural consiste na especi icidade de cada grupo humano, naquilo que assemelha os seus constituintes e os diferencia dos outros.
Uma vez que, a cultura não é estática, a identidade que em grande medida depende dela também não o é. Assim, uma pessoa pode ter tantas identidades quantos os grupos, cujos valores for incorporando e que marcam presença na sua maneira de viver e de actuar. Deste modo, uma pessoa que exerça a pro issão de professor e tenha a sua consciência étnica, identi icar-se-á com os valores da sua pro issão e ao mesmo tempo com os do seu grupo étnico.
Por outro lado, o próprio facto de cada indivíduo e todos os grupos humanos possuírem uma cultura está na base da terceira função da cultura, pois surge como um atributo comum a todos os homens e a todos os agrupamentos humanos, o que leva, logicamente, a olhar para os outros homens e para os outros grupos. No dizer de KALUF (2005, p. 17) «[...] cultura es [...] tambén una manera de ver a otros, de pensar-se com ellos, de tomar conciencia de que a pertenencia a un grupo comanda al mismo tiempo ciertas reglas de relación com los otros.» Em última instância, pode dizer-se que esta função da cultura consiste em permitir a convivência humana na sua diversidade e a todos os níveis. Infelizmente, nem sempre isso tem sido possível, ao longo da história da humanidade, marcada por desentendimentos e guerras, resultantes das tentativas de impor uma cultura às outras, procurando ofuscá-las ou eliminálas. Com isso, procura-se igualmente anular a identidade dos grupos subjugados bem como de seus membros. Tais posicionamentos são decorrentes do preconceito social nas suas diversas manifestações que levam os seus protagonistas a pensar que o seu grupo ou a sua classe tem mais valor que os outros, coarctando a estes as possibilidades de realização.
Assim, o reconhecimento da diversidade cultural a igura-se hoje como uma das condições para a paz. Isto implica a criação e a implementação de políticas inclusivas e participativas que, além de contribuírem para a compreensão do estado de coisas, proporcionem a todos os grupos e a cada indivíduo uma oportunidade de participar conjuntamente com os demais na resolução dos problemas que os a ligem.
As políticas têm um papel determinante no que diz respeito ao clima que se vive numa determinada sociedade. Já ABBAGNANO et al. (1992) diziam que o progresso intelectual que a Grécia conheceu não se deveu à excepcionalidade do seu povo, mas sim às políticas empregues, que favoreciam o desenvolvimento do pensamento. Para não variar, diz a declaração da UNESCO sobre os direitos culturais, artigo 2 que «[...] o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.». Quer dizer que a diversidade cultural, longe de criar problemas para a sociedade, enriquece-a, pois pode oferecer diversos ângulos para encarar um determinado problema e alargar o leque de soluções para o mesmo, o que se pode traduzir numa oportunidade de crescimento e progresso das culturas.