Jornal Cultura

KIANDA, O MONSTRO DÁGUA, E A DEUSA GREGA

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transformo­u deuses em ricos mendigos. – Retorquiu o Corvo, o mesmo homem que parecia ver o país a partir do céu!

Verdade seja dita, o coelho estava com toda a razão. A República afogava-se no mar da crise. Deuses-cobras, mordendo as próprias caudas. Ricos mendigos… como dizia, o Corvo, o coelho. Pedia-se dinheiro em tudo quanto é canto. Pessoas e cães morriam de doenças. Uma estranha epidemia que não media o extracto social alastrava-se com o vento; as pessoas, com toda a in lação do mercado, conseguiam comprar comida, mas os cães morriam de fome. Os cães eram a maioria e sabíamos que deus já escolhera um conjunto de pessoas que herdariam o seu reino. Bastava-lhes um papel com fotogra ia e estrelas celestiais com manchas solares. Deus não se importava com os cães. Mas seguiu mendigando pelo universo fora.

Mas o que todos temiam foi o que acontecera. Avisava-se-lhes para que controlass­em melhor os homens habituados a ambientes hostis. Homens do mato com armas no ombro. Homens habituados a beber sangue. Não se pode dizer que eram totalmente culpados. Eles não sabiam outra coisa, senão guerrear. Precisavam de novos inimigos. Todo aquele que vivesse na zona fronteiriç­a entre o rural e o urbano era o inimigo. Pessoas viveram toda uma vida nesses lugares de sangue. Desterrava­m-se camponeses. Todos olhavam impávidos. Os políticos a iavam as línguas nos debates e resmungava­m nos cantos. Os militares criavam organizaçõ­es clandestin­as. Acendiam fogueiras, e os políticos chamavam-nos para apagar. Certo dia, a chama alastrou-se até ao palácio real. Os militares criaram raízes em suas bases. Os telefones emudeceram. Não se via nenhuma ave de ferro a voar sobre o rugoso e putri icado chão da pátria que pariu. Vergonhoso. Ajoelharam-se deuses diante de homens decididos, pequenos davids partindo estátuas Golias. Rasgavam-se meio século de ideologias, em pan letos. Nada pior que um bando de idólatras a negar ex. deuses com violência. Ouviam-se cânticos de guerrilhei­ros. Pareciam eram os salvadores da República, mas empurraram a República para um precipício sem im. Bancos faliram, mas ainda assim todos trabalhava­m. Quem teria testículos para fazer greve? Quem? A inal os outros, ainda que utópica, nos davam alguma liberdade.

O medo instala o maior dos silêncios. As ruas faziam lembrar ilmes de terror com ruas desabitada­s e monstros surgindo de todos os lugares e de lugar nenhum. O rosto da República nas mãos da junta militar icou negro, roxo e fedorento. Todas as formas de caos se instalaram. Diante da impotência humana, como um vulto, como um raio do cacimbo, como a voz de Deus, de súbito, eis que das águas do rio Cunene, ergueu-se uma Kianda Macho.

Enquanto esse evento ocorria, Namibe fervia num dilúvio. O general governador mandou foder categorica­mente as «Festas do Mar». Calemas ergueram-se à altura do desrespeit­o à tradição e inundaram toda a cidade. Surreal é saber que nem todos morreram. Todos os poucos honestos vivem com pequenas Kiandas na cidade dilúvio sem as arcas de Noé.

O general-governador-de-Cunene foi às europas da vida e trouxe uma carta na manga. Arrogantou-se: – Se políticos caíram, um monstrinho de água é que me vai derrotar? O general provocava. Mandou desviar o rio para outro lugar e o rio voltou. Derramou petróleo bruto sobre o rio para intoxicar Kianda. Morreram peixes em centenas de milhares. O povo passava fome e Kianda gerou outros peixes para alimentar o povo.

Não entendera que o povo de Cunene foi o último a resistir contra o colono. Que as europas e américas das áfricas não haviam corrompido aquele povo. Kianda não castiga inocentes. Foi então que Kianda se fez monstro de água, levantou do rio e dirigiu-se ao palácio real. Eis que da janela o aguardava uma bela mulher. Uma deusa grega a proteger um grego. Era mesmo uma deusa. Com uma beleza de deixar cair um reino ou provocar outras lutas entre gregos e troianos. A deusa enfeitiçav­a o monstro de água com toda a sua beleza. Saiu da janela voandando. Com os pés beijou o chão e, a cada passo, Kianda recuava. Recuava e o povo perdia a esperança. Quando chegaram à foz do rio, eis que o poder da bruxa desfez-se e Kianda a levou nas profundeza­s do rio. Naquele lugar oculto onde repousam seres de água. Quando todos acreditava­m que Kianda não mais regressari­a, eis que de rompante, saiu dágua e num segundo passou pelo palácio arrastando toda aquela fortaleza.

O povo começou a acreditar e os militares eram familiares do povo. Os militares depuseram os generais e entregaram o poder aos civis.

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DESENHO DE MALANGATAN­A
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