Jornal Cultura

A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

- AGOSTINHO GONÇALVES

Naquelas bandas de Canjinji, apareceu misteriosa­mente a verdadeira poesia carnal: rosto deusificad­o, olhos multicolor­es, cabelos negros de Kianda e um corpo todo esponjoso. Era a Kayeye, um fogo de mulher, uma criatura perfeita aos olhos humanos. Mas como a perfeição não é coisa do ser humano, faltava- lhe uma voz, uma voz que ficou presa nas garras do silêncio, desde que veio ao feroz mundo. Mas a mudez não anulava a sua abundante beleza, pois simplesmen­te com o seu olhar virginal hipnotizav­a uma infinidade de homens, cujo desejo maior era comer a maçã da reincarnad­a Eva.

Em sua benevolent­e alma, Kayeye carregava uma maldita maldição que lhe rasgava o desejo excitante da vida. De tão bela que era, de tão sensual que era, de tão afável que era; ninguém lhe podia proferir palavras ofensivas, imundas ou desrespeit­osas, se não a maldição erguer- se- ia e estender-se-ia para todos os que ali viviam.

Um dia desses em que a lua decidiu não aparecer, Kayeye saíu em passos camaleónic­os, transborda­ndo a beleza do seu maragnífic­o corpo por toda aquela região. Numa esquina chamada "Cinquintin­ha", passou por um grupinho de jovens curtindo um banzelo e a mandarem umas cucas pro peito. Um deles chamado Kwangwangw­a, masturbado num simples olhar, resolveu chamála e fê- lo de todas as formas possíveis, mas Kayeye continuou sua trajectóri­a que não tinha começo nem fim. Kwangwanga por sua vez, irritado por ser ignorado diante dos kambas, já consumido pelo que consumia gritou em alta voz: - Hum, tipo num caga! Puta de merda! De repente tudo parou, o céu escureceu- se e o silêncio reinou. Nesse instante Kayeye desaparece­u e com ela todas as vozes. Todos perderam a fala e começaram a comunicar-se através de gestos.

Na noite deste mesmo tenebroso dia, Kayeye apareceu no centro de Canjinji sob a forma de uma gigante pedra de cristal, cravada com a seguinte mensagem: « Quem não fala também comunica » .

Em seguida, reapareceu a Kwangwangw­a, enquanto este estendia as bolas no seu quartinho de chapa, tentando buscar as vozes que se tinham evaporado com a misteriosa beleza de Kayeye. Desta vez sob forma de uma pena de galinha, Kayeye pincelou no teto, onde justamente olhava Kwangwangw­a, deixando mais uma mensagem: «A salvação está em tuas mãos».

Kwangwangw­a levantou- se assustado, já com uma faca na mão, procurava a misteriosa pena, mas encontrou apenas um nada, um vazio que o engolia. Desesperad­o, arrojou- se no chão e logo lembrou- se da mensagem que Kayeye o deixou. Rapidament­e abriu as mãos, onde encontrou mais uma mensagem: «Vai agora ao cemitério, desenterra a cova de um daqueles que andou a estigar os que não falam e queime o seu esqueleto. Aproveita o pó, joga- o ao cair da madrugada com o cantar do galo e tudo se restituirá».

Então, mesmo vibrando de medo, Kwangwangw­a saíu e fez tudo o que Kayeye lhe tinha orientado. Mas nenhum galo cantou, pois o silêncio encarregou-se de levar consigo tudo o que era som. Portanto, a maldição do silêncio ali se instalou e tudo virou um vazio, restando apenas Kayeye sob a forma daquela gigante pedra de cristal com a sua pedagógica mensagem: « Quem não fala também comunica».

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