O TERRÍVEL ANO DO MACACO VERMELHO (II)
Aliás , histórias de casos idênticos eram muito comuns, como por exemplo, a da Nkengue, que o velho, famoso e grande Ngungudiungo resgatara das profundezas das matas, lá para as bandas do Kinzau e a quem em troca fora pedido um enorme porco, cujos dentes já tinham conseguido cavar as profundas raízes de luenze. E assim aconteceu: andando o grande e poderoso papá Kiame Kiame visitando as suas enormes plantações onde trabalhavam centenas, senão milhares de maiombolas e que mesmo sem chuva não deixavam de produzir tudo o que fosse plantado, no desvio que dava para a vila aceitou parar quando uma jovem lhe acenava e fazia sinal pedindo boleia. Era de uma beleza estonteante. Trajava panos do Kongo e o seu penteado eram tranças de linha, originais, como reza a tradição. O homem abrandou a marcha do seu reluzente jipe, parou, baixou o vidro e ofereceu a boleia. Destino: a vila. Pelo caminho meteu conversa. Prometeu casa, carro, estudos, viagens e tudo o que de melhor existe neste mundo se aceitasse icar com ele. A rapariga disse-lhe que podia pensar no assunto. Ao passar pelo hospital, decidiu-se por um passeio à boca do rio pois, como dizia à rapariga, o fresco ajuda a pensar. Ali estaria também mais distante de casa e de olhares indiscretos àquela hora em que o dia morria e a noite se anunciava.
Sentaram-se à beira-rio, no lugar em que fora a jangada do Velho Lende. Kiame Kiame perguntou então: – O que achas da minha proposta? – Tu, com essas unhas, é que vou icar contigo? – Arranca-as. E a jovem arrancou-lhe as unhas das mãos e dos pés. – E agora? – Tu, com esses pêlos? – Arranca-os. E a jovem arrancou-lhe todos os pêlos. – Tu, com esses olhos? – Arranca-os. E a jovem arrancou-lhe um dos olhos. – E agora? – Tu, com essa barriga? E quando a jovem lhe ia a abrir o ventre e era quase certo que assim o teria para o entregar como maiombola em seu lugar, de repente ouviu-se um enorme ruído vindo das águas. Quando Kiame Kiame se virou, com o seu único olho viu a rapariga transformar-se numa seixa que corria veloz perseguida por um leopardo e, quando percebeu o que se passava, estava ele na boca de um jacaré que mostrava a sua presa a um público invisível e depois o carregou para o fundo do rio. A notícia correu veloz. Um grupo de tocadores de batuque foi mobilizado para a beira-rio e ali icou a tocar os seus tambores, como forma de manter Kiame Kiame ligado à terra. Enquanto isso, partiu um emissário a buscar a famosa Velha Nsenga. Quando esta chegou, estendeu o pano sobre o mangal. Era um pano azul-escuro, com cruzes brancas. Sobre ele colocou a pequena kinda em que trazia os seus instrumentos e adereços. Retirou a pemba, o ucusso, a takula, o jindungo do kongo, o jipepe, algumas ervas e um pequeno espelho. Com a pemba fez uma cruz na sua testa e pintou as bochechas de branco. Com a mesma fez cruzes nos braços e nas pernas. Fez igualmente uma cruz nas costas e outra no peito. Cingiu o pano untado de takula e sobre ele uma pele de que pendiam duas machadinhas. Estava assim preparada para encarar Ndele, o alvo espírito das águas desde o começo da humanidade. Velha Nsenga preparou-se a rigor para enfrentar Ndele. Mastigou o jindungo do kongo e untou-se toda de uma pasta de pemba, misturada com óleo de palma, icando assim com a cor branca de Ndele. Poderia assim fechar-lhe os caminhos para que não viesse importunar as pessoas. Terminado o ritual de preparação, ainda passou um bocado de pemba sobre as pálpebras para aumentar a visão. No seu espelho de adivinhação localizou as coordenadas para onde Kyame Kyame fora levado. Colocou-se hirta à beira-rio e de um só golpe perfurou as águas até ao lugar que lera no espelho. Aí foi encontrar o homem amarrado por grossas correntes aos pilares de um enorme casarão. À sua frente passavam maiombolas, em longas ilas, que depositavam bilhas de diamantes num dos armazéns guardados por um homem calvo, de longas barbas, que exibia na mão um chicote de grossas argolas de ferro. Outros depositavam cachos de dendém, de banana, sacos de ginguba, de milho, de café, de mandioca e de tudo um pouco. Velha Nsenga, confundida com um espírito igual a ele, passou pelo sítio em que se encontrava Ndele, dirigiu-se ao guardião e deu-lhe ordem para que libertasse o prisioneiro. Carregou-o sobre o dorso, e num instante, estava em terra irme. Velha Nsenga, uma vez mais, tinha resolvido exemplarmente a parte espiritual da questão, a que lhe competia. Restava pois a parte ísica da mesma.
Ali, sobre o mangal, jazia ensanguentado Kyame Kyame. Estava sem um olho, tinha as unhas das mãos e dos pés arrancadas e o peito e as costas perfuradas pelos dentes do jacaré. Uma tipóia rapidamente foi improvisada: dois ramos de árvores foram cortados e sobre ele estendido um pano que foi dobrado. Sobre ela foi cuidadosamente colocado o homem. Oito tocadores de batuque foram necessários para levantá-la, tal era o peso e iniciaram a marcha. Atrás seguiam os restantes tocadores rufando os seus tambores. Três horas depois chegavam ao destino. Inclinada sobre o muro de blocos sobrepostos cercando o recinto, lá para as bandas do Bairro Uíge, uma carcomida placa de contraplacado pintada a cinzento, em letras brancas de grande dimensão, anunciava:
“Centro de Tratamento Tradicional Papá Anselmo – Tratamos qualquer doença – resultado garantido ou o teu dinheiro é devolvido a dobrar. Tratamos velhice, hérnia interna e externa, himoroide, não faz ilho, maluquice, força sexual, makulu, harmadilha, hepatite, dor de costela, dor de bexiga, dor de coluna, doença degóta, trombose, tensão alta e baixa, dor de estómago, tosseconvulsa, reumatismo, maralha, bilharjósa, paludismo, diarreiadesangue, seiosgrande, mau olhado, mausonho, sulusu, infeções, lukika giba, doença de sono, briosa, asma, tuberclose, apendecite, prostate, quisto, tifóide, malária, bichas, escandamento. Tira-se bicho de dente. Resolve-se-tudo; medicamento da loresta de Cabinda”.
Contíguo ao muro do lado direito, podia ver-se uma construção improvisada, coberta de chapas de zinco que resistiam aos ventos graças a duas velhas jantes e uma cambota de um defunto camião, que sobre elas pousavam. Ao lado da porta do estabelecimento uma placa anunciava:
“Vende-se Lenções de qualidade. Cobertores.
Vende-se Gelo fresco em cubo em barra. Da-se sopa petisco mufete e almoço. Cabrité e makayabo. Cerveja 50. Àgua fresca saco 10. Gasosa”. Seguramente, era um empreendimento de alguém que tivera visão para o negócio e se preparara para atender os inúmeros acompanhantes dos pacientes que acorriam ao centro e muitas vezes ali permaneciam horas e dias a io.
No interior do centro podiam ser vistas duas longas casernas, separadas por uma rua a que chamavam “Rua das Amas”. Ao fundo da rua, uma casa de três compartimentos. O primeiro era a farmácia, o do meio era a recepção e consultório e o do lado direito era a casa das amas, contíguo à caserna do mesmo lado, chamada “Ala Vital”. Enquanto na caserna do lado esquerdo, chamada “Ala Geral”, dividida em dois compartimentos por um biombo, de um lado se podiam encontrar malucos com as duas mãos e um dos tornozelos acorrentados, de cabeça rapada e vestindo apenas uma pequena tanga de pano-cru, do outro podiam ser encontrados doentes de todo o tipo. De mulheres que tinham hebo e que se imaginavam grávidas há vários anos, a homens que sofriam de impotência sexual, passando por doentes que simplesmente padeciam de reumatismo e que ali acorriam de quando