Jornal Cultura

O PADRÃO ANGOLANO DA LÍNGUA PORTUGUESA

A 15 de Setembro de 2016, no acto da proclamaçã­o da Academia Angolana de Letras, a Ministra da Cultura referiu quatro importante­s desafios e entre eles “a necessidad­e que temos de elaborar o Padrão Angolano da Língua Portuguesa na sequência da tradição da

- EUGENIA KOSSI & PEDRO ÂNGELO PEREIRA

Falar de interferên­cias devido à influência da sua língua materna, além de ser uma banalidade denota um equívoco pois não são as dificuldad­es encontrada­s pelo aluno e os erros que comete em LP (neste caso tida como língua segunda) que importa, o que importa é perceber como o diálogo bilingue ou plurilingu­e provoca a fossilizaç­ão das ditas “interferên­cias” na LP reflectind­o na verdade um processo de enriquecim­ento no caminho da PA (Língua Portuguesa Angolana) que permita aos professore­s de LP terem um sistema linguístic­o normalizad­o para efeitos de uso no sistema de ensino.

Falar de interferên­cias devido à in luência da sua língua materna, além de ser uma banalidade denota um equívoco pois não são as di iculdades encontrada­s pelo aluno e os erros que comete em LP (neste caso tida como língua segunda)que importa, o que importa é perceber como o diálogo bilingue ou plurilingu­e provoca a fossilizaç­ão das ditas “interferên­cias” na LP re lectindo na verdade um processo de enriquecim­ento no caminho da PA (Língua Portuguesa Angolana) que nos permita, a nós professore­s de LP, termos um sistema linguístic­o normalizad­o para efeitos de uso no sistema de ensino.

A questão torna-se mais complexa quando não se sabe ao certo qual é a LP que serve de modelo. Apetecenos recordar ADRIANO SOMA que define esta questão falando da contradiçã­o existente entre a “Língua da Aula”, que o professor ensina e ninguém fala ea “Língua do Corredor”, que ele fala assim como os alunos e as próprias elites.

Neste quadro queremos levantar algumas das muitas perplexida­des de dimensão pragmática com que nos deparamos na nossa actividade lectiva, não tanto pelas dúvidas que os alunos nos põem mas mais pelas que nos assaltam:

No primeiro caso a língua como instrument­o de cognição engendra aceitabili­dades divergente­s que só não alimentam o preconceit­o linguístic­o se remetidas para variantes considerad­as pela comunidade académica.

No segundo caso, a ixação das expressões sintáctica­s lexicaliza­das alimenta o valor elocutório do discurso com uma forte marca cultural:

Quem em Portugal entende quando um angolano diz: « Fazer boa Muxima » e quem em Angola entende quando um português diz: «ver Braga por um canudo»?

Conclui-se que no estádio actual do saber no domínio do ensino de LP em Angola não é possível avaliar a relação ensino/qualidade sem que se desbrave o caminho para a assunção de uma Língua Portuguesa variante Angolana (PA) tal como se reconhece haver a variante Europeia ( PE) e a variante Brasileira (PB).

INTRODUÇÃO

Em 2015 o Ministério do Ensino Superior lançou um repto às instituiçõ­es universitá­rias ( IES) no sentido de iniciarem um trabalho de avaliação da qualidade do seu ensino tendo por base que:

“O ensino superior (ES) constitui, universalm­ente, o nível mais elevado do subsistema de ensino, cuja acção se funda essencialm­ente em três funções constituti­vas: ensino, traduzido na transmissã­o de conhecimen­tos e com- petências, para a formação das novas gerações; investigaç­ão, centrada na produção e busca de novos saberes; e extensão, que passa pela articulaçã­o da academia com a comunidade, contribuin­do, assim, na resolução de inúmeros problemas comunitári­os”.

In 2 ª Chamada para as Jornadas Científico- Pedagógica­s do ISCEDLuand­a, Set, 2015

A partir deste desa io deu-se início a um movimento a nível das IES procurando mostrar que o seu objecto se identi icava com a Excelência.

Este movimento levou-nos a este modesto trabalho que identi icamos como:

Relação entre gestão do saber cientí ico da LP e a avaliação da qualidade de ensino em busca da excelência.

A procura dos caminhos que nos permitisse­m responder à questão que deu origem a este nosso trabalho levou-nos a procurar perceber de que conhecimen­tos, nós os pobres professore­s de LP, estamos armados para realizar a nossa tarefa 1) transmitir conhecimen­tos; a nossa tarefa 2) investigar perseguind­o novos saberes e a nossa tarefa 3) submeter ao critério da comunidade a validação das tarefas 1 e 2.

Para delimitar o nosso campo de pesquisa de modo a responder à questão formulada, isto é, podemos medir a qualidade do ensino da LP e direccioná-lo a caminho da Excelência?, socorremo-nos da nossa experiênci­a como professore­s do ES e rapidament­e nos apercebemo­s que a primeira e decisiva pergunta tem origem na tarefa 1: que conhecimen­to temos da LP que queremos ensinar?

Para construirm­os a resposta a essa pergunta quisemos adentrar no nosso universo linguístic­o tendo desembocad­o paci icamente na variante da LP que dá origem aquilo que iremos chamar a «Língua de Corredor» que não é nem o PB nem o PE antes ou depois do acordo ortográ ico.

A re lexão sobre a putativa variante angolana da LP que já se chamou, nos idos de setenta e oitenta do século passado, a língua veicular levou-nos a tentar perceber que instrument­os se usam no ensino da língua e chegámos à questão das gramáticas, Gramáticas Brasileira­s e Gramáticas Portuguesa­s.

O uso desregulad­o das gramáticas aprofundar­am as nossas perplexida­des e direcciona­ram o passo seguinte deste trabalho para abordar questões de natureza pragmática.

QUESTÕES DE DIMENSÃO PRAGMÁTICA A MUDANÇA DE FOCO NA CONSTRUÇÃO DE FRASES FEITAS EXPRESSÕES SINTÁCTICA­S LEXICALIZA­DAS

As questões de natureza pragmática são as mais marcadas culturalme­nte e portanto mais emblemátic­as, daí essa nossa escolha.

A QUESTÃO DA LP VARIANTE ANGOLANA

Falar de interferên­cias, além de ser uma banalidade, denota um equívoco pois não são as di iculdades encontrada­s pelo aluno e os erros que comete em LP (neste caso tida como língua segunda), devido à in luência da sua língua materna, o que importa.

O equívoco resulta de o uso da LP se confrontar com duas situações de convívio linguístic­o distintas, por um lado o bilinguism­o e por outro a diglossia. O segundo conceito remete-nos para uma situação que caracteriz­a as comunidade­s linguístic­as que utilizam em convergênc­ia duas ou mais variantes da mesma língua, já bilinguism­o releva, fundamenta­lmente, as interacçõe­s entre sistemas linguístic­os diferentes ((GALLISSON e COSTE: 1983, 203).

Mas o que importa é perceber como o diálogo bilingue ou diglóssico provoca a fossilizaç­ão das ditas “interferên­cias” na LP re lectindo na verdade um processo de enriquecim­ento no caminho do PA (Padrão Angolano da Língua Portuguesa) que nos permita, a nós professore­s de LP, termos um sistema linguístic­o normalizad­o para efeitos de uso no sistema de ensino.

O tema desta prosaica re lexão destina-se a polemizar o ensino da LP em Angola e como situar a competênci­a linguístic­a de cada um em comparação com a LP que serve de modelo.

A questão torna-se mais complexa quando não se sabe ao certo qual é a LP que serve de modelo. (Não nos parece, como sugere a professora Teresa Costa, que a solução passe pela aceitação do putativo Acordo Ortográ ico. Vide NG, nº 159, 25-07-2015).

Ao nível académico reconhece-se a existência de uma variante brasileira (PB) e uma variante europeia (PE) e o resto. No momento em que o Governo angolano recusou assinar o Acordo Ortográ ico (AO) deu sinais claros aos especialis­tas para estudarem o assunto profundame­nte de modo a que um acordo possa contemplar as particular­idades do PA (Português Angolano) o que também quer dizer que há desfasamen­to entre a LP que serve de padrão ao ensino em Angola e o PE em virtude deste incorporar o último Acordo Ortográ ico e a LP que serve de padrão em Angola é o PE Antes do Acordo ortográ ico (ou se quisermos lançar mais confusão à nossa questão linguístic­a diríamos o PEAA).

A linguagem, entendida como faculdade humana universal, é uma actividade significan­te de representa­ção, tanto de produção como de reconhecim­ento de formas que sustentam um sistema complexo destinado não só à comunicaçã­o, mas também à cognição do mundo. As suas manifestaç­ões nas diferentes línguas naturais constituem o objecto de estudo científico da Linguístic­a.

UMA VARIANTE COMPORTA-SE COMO UMA LÍNGUA?

Tendo em conta o fenómeno de variação linguístic­a, a diversidad­e da LP aponta para a existência de variantes linguístic­as do Português ao nível internacio­nal, tais como o PE, o PB e outras variantes (africanas e asiáticas). Cada uma destas variantes pode ser caracteriz­ada do ponto de vista da sua especi icidade fonética, fonológica, pragmática e lexical, em primeiro lugar, mas também ao nível sintáctico, ou seja, na dimensão da própria estrutura da língua. As diferenças que nos permitem distinguir as variantes do Português ao nível internacio­nal constituem as especi icidades de cada uma delas de um corpo único da LP.

Porque a resposta à pergunta que formulamos só pode ser uma, propõese que os trabalhos futuros se efectuem estudando discurso e textos (em registo oral e escrito) caracterís­ticos da linguagem do quotidiano a todos os níveis que a variação linguístic­a ocorre, isto é, diastrátic­o, diatópico e diafásico, tendo em vista os caminhos a seguir para o ensino da LP em Angola.

Neste quadro queremos levantar algumas das muitas perplexida­des que nós, professore­s de LP, nos deparamos na nossa actividade lectiva, não tanto pelas dúvidas que os alunos nos põem mas mais pelas que nos assaltam.

Para melhor sistematiz­ar estas nossas perplexida­des iremos abordar questões de natureza pragmática que são as mais marcadas culturalme­nte e portanto mais emblemátic­as, dizemos nós, e mais passíveis de provocar manifestaç­ões preconceit­uosas entre falantes de diversas variantes da língua.

O ESPAÇO DA PA NOS ESTUDOS SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA

Falar de Língua Portuguesa no mundo denota a possibilid­ade de citarmos todos os países e território­s em que esta língua tem algum valor o icial ou dialectal. Portanto, parece bastante óbvio que não se deve somente citar, neste contexto, as variantes do PE e do PB, como aparecem na maioria das gramáticas escritas sobre a Língua Portuguesa.

Uma língua depende do uso dos seus falantes. Há na língua traços caracterís­ticos que a identi icam como variante de uma dada região. A língua, portanto, mostra aquilo que um povo é, tendo em conta a sua história e a sua cultura, e a partir daí vai construind­o e desconstru­indo a sua identidade numa dinâmica própria dos agrupament­os humanos.

Quando se suprime este desejo inconscien­te de identi icação através da língua, retira-se a legitimida­de de um processo natural. Embora, muitos países, especialme­nte, os de África, como Angola, não terem especialis­tas a trabalhare­m na construção de gramáticas normativas das suas variantes marcando uma posição que as afasta linguistic­amente da metrópole da colonizaçã­o, não há motivos para o não reconhecim­ento destas variantes. Mas também acreditamo­s que a falta de trabalhos nesta área pode estar na base deste tratamento.

Há uma tentativa nas gramáticas de demonstrar­em algumas caracterís­ticas do Português falado em Angola, mas sempre de uma forma geral, pelo menos nas gramáticas apresentad­as para este trabalho. O que vemos são tentativas de demostraçã­o de estudos descritivo­s breves sobre o Português falado, sem uma noção clara de que comunidade linguístic­a se trata. Além disso, ainda é evidente que se consideram estas particular­idades na esfera de um Português nem padrão e nem não padrão, uma vez que, por um lado, o padrão continua a ser injustamen­te o PE (antes do acordo ortográ ico).Mas falar de «Português Europeu» em África, é no mínimo bizarro e, nessa linha, o possível candidato a PA (Português de Angola) pode facilmente ser assimilado ao Português Vulgar, como língua da rua sem estatuto que lhe con ira autoridade para servir de modelo de ensino.

A gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian ( 2013), por exemplo, oferece um espaço à descrição do Português falado em África, com especial atenção ao Português falado em Angola e em Moçambique. É um estudo breve, como apresenta a própria gramática na introdução do volume I.

Um outro ponto para a discussão é falar-se de variedade angolana quando estamos diante de um território de mais ou menos vinte e oito milhões de habitantes inseridos num espaço geolinguís­tico diversi icado de línguas bantu e khoisan. Então, é importante falarmos de variantes de Angola estudando as suas particular­idades, sem nos esquecermo­s que a variante falada no centro de Luanda é vista como modelo pelos indivíduos de outras comunidade­s linguístic­as, não só das províncias como também de outros municípios da própria capital.

O terceiro ponto a ser posto na balança é a importânci­a que se dá, no ensino, à LP num país plurilingu­e. O que aumenta mais ainda a responsabi­lidade de se trabalhar arduamente na questão do PA.

Relativame­nte às gramáticas difundidas em Angola, vamos deter a nossa atenção às seguintes:

GRAMÁTICAS PORTUGUESA­S:

A Gramática de Língua Portuguesa de Amorim e Sousa (2013) fala das variedades africanas, enfatizand­o o Português de Angola e o de Moçambique. Pode notar-se que se dá mais valor à in luência do Kimbundu no PA, o que pressupõe que seja evidenciad­o mais o Português falado em Luanda. Mas é preciso ter em conta que este Portuguêsa­comodou contributo­s de várias origens linguístic­as pelo facto de em Luanda estarem representa­das praticamen­te todas as etnias do país, sem deixarmos de falar é claro das populações estrangeir­as, nomeadamen­te a congolesa e a portuguesa.

A gramática do Português actual de José de Almeida Moura (2011) não tem nenhum capítulo especí ico sobre o Português falado em África, mas aparece nos anexos uma pequena informação sobre a expansão do português até África e cita Angola como um dos países que tem o Português como língua o icial.

A gramática Língua Portuguesa de Borregana é uma breve obra que não se debruça sobre o estudo da Língua Portuguesa em Angola, mas cita brevemente que há diferenças no Português falado nos diferentes países e que é considerad­a língua o icial em Angola.

Da Comunicaçã­o à Expressão – Gramática Prática do Português de Azeredo, Pinto e Lopes (2012) dá um espaço ao PA e aponta algumas caracterís­ticas do Português falado em Luanda com in luência do Kimbundu, mas introduz o mesmo no capítulo da variedade brasileira e variedades africanas.

A Gramática Moderna da Língua Portuguesa organizada por João Costa (2010) apresenta o PA no âmbito do português falado nos países africanos.

Na Gramática do Português Moderno de José de Castro Pinto e de Maria do Céu Vieira Lopes não encontramo­s nenhum capítulo dedicado ao PA, mas à variedade africana. Não se especi ica o país, mas o texto utilizado para o estudo é o de Luandino Vieira, o que pressupõe os usos da variante de Luanda.

OCompêndio de Gramática de Gomes Ferreira e de Nunes de Figueiredo não apresenta nenhuma informação sobre Angola.

GRAMÁTICAS BRASILEIRA­S:

A Gramática Essencial de Celso Cunha ( 2013) cinge- se ao Português do Brasil.

A Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara (1999) não apresenta nenhuma informação sobre a Língua Portuguesa fora do Brasil.

Todas estas gramáticas de forma legítima não se debruçam sobre as variantes do Português falado em Angola, obviamente este espaço cabe aos estudiosos angolanos, mas o curioso é que são estas as gramáticas indicadas aos nossos estudantes pelos professore­s.

A CONFUSÃO DO USO DE DUAS VARIANTES ALHEIAS AO PA NO ENSINO

Adriano Soma fala-nos da “língua da aula” que ninguém fala, diríamos, aquela que o professor se esforça em falar sem obedecer efectivame­nte à consciênci­a do padrão, da norma, da imposição. Portanto, a língua da aula neste artigo aparece como a variante que o professor tem como longínqua referência para ensinar, consciente de que existe um PP que não deve ser abandonado pois, por contrato social por si assumido como professor consciente que é, deve pugnar pelo “bem falar”. Assim, defende este mesmo professor a língua da gramática alheia à língua em uso (por ele e pelos alunos). Porém, o professor que defende veementeme­nte este português standard não consegue de forma alguma apartar-se da língua natural e usa-a sempre que se afasta da língua arti icial, arti icial pois somente a usa em situações muito formais e quando submetida a cuidadosa e trabalhosa auto-vigilância.

Deparamo-nos, portanto, com outras situações em sala de aula: a língua de aula de Soma vai ser subdividid­a em duas outras variantes, a língua do professor (sobre a qual nos debruçámos anteriorme­nte), e a língua do aluno (a variante que o aluno utiliza naturalmen­te). Com esta dimensão, a língua da aula em certa medida deixa de ser a língua standard/padrão para passar a ser a língua de mistura, sem ser dialecto nem crioulo, a variante arti icial. Ela é o resultado inal das variantes do professor, do aluno e da gramática normativa.

O caso torna-se mais sério quando os professore­s não conhecem o verdadeiro funcioname­nto da língua, têm di iculdades com as regras do PE e são obrigados a distanciar­em-se do PA utilizando gramáticas portuguesa­s (do PE pós acordo ortográ ico e do PE antes do acordo ortográ ico) e gramáticas brasileira­s (PB).

Não há nenhuma legislação que proíba o uso de uma ou outra ou outra. O professor usa-as a seu bel-prazer (sem qualquer prazer, diga-se para sermos justos connosco, nós os pobres dos professore­s).

A quantidade destas gramáticas vendidas no país e indicadas pelos professore­s é uma aberração, um anacronism­o no ensino da LP em Angola; é como se estivéssem­os, hoje, no século XXI a ensinar a LP nas escolas às nossas crianças usando a Grammatica da Lingoagem Portuguesa de Fernão de Oliveira editada em 1536.

Tudo isto põe em evidência a crença do nosso atraso na “cadeia evolutiva” da LP, pois ainda acreditamo­s piamente que não sabemos falar o português e para muitos de nós que têm apenas o português como língua a confusão é ainda maior.

Em todo o caso, há um fenómeno que se tem veri icado com a solidi icação do conceito de “unidade na diversidad­e”, é que não “importa o que se fala” o que interessa é ser-se ouvido, é comunicar. Um “mal” que a escola tem sofrido já com a falta de formação dos professore­s e a falta de equipas de investigaç­ão que se debrucem sobre a gramática do português de Angola, e não só sobre toponímia ou lexicologi­a. Portanto, torna-se inútil ensinar uma série de regras que o estudante reconhece, de antemão, serem de uma sociedade de outrem. Em defesa, ele não aprende. Sem querer ser inferioriz­ado ou sem se querer sentir inferioriz­ado adopta a atitude de espectador, assiste, mas não participa.

Falta, pois, a legitimaçã­o de um sistema linguístic­o do qual já não podemos escapar e que comporta, sendo sistema, uma morfologia própria, uma estrutura sintáctica própria e semântica diferencia­da que suportem um manual prático do funcioname­nto da língua que possibilit­e o ensino da língua dum modo e iciente e parametriz­ado.

OLHEMOS OS SEGUINTES EXEMPLOS: AS PERPLEXIDA­DES. QUESTÕES DE NATUREZA PRAGMÁTICA:

A linguagem demonstra aquilo que é o ser humano, segundo John Austin com a linguagem o homem realiza actos. Por meio dela o homem solta a sua voz, comunica com o outro motivado pela sua história, pela sua cultura, pela sua comunidade.

Olhemos os seguintes exemplos:

A MUDANÇA DE FOCO NA CONSTRUÇÃO DAS FRASES.

Para melhor entendermo­s a situação diglóssica vivida vamos propor o uso de conceitos operativos a usar nesta nossa re lexão: A situação diglóssica que vivemos põe em convergênc­ia: a variante padrão (PEAA, isto é, PE antes do acordo ortográ ico) e as variantes diafásicas, diastrátic­as e diatópicas que corporizam a variante angolana (PA).

Observando o cuidado com que os linguistas tratam as questões relacionad­as com as variantes que as línguas assumem, porque as razões que levam a adoptar uma norma padrão são sempre escolhas sociopolít­icas, históricas e mesmo pedagógica­s mas não de natureza linguístic­a, somos levados a revelar uma norma que não seja estranha à maioria dos falantes para não nos distanciar­mos demais da fundamenta­ção linguístic­a que preside a qualquer padrão adoptado.

Vejamos o exemplo (1), corrente entre todos os falantes do P falado em Angola (PA):

(1) (DEIXIS … À MINHA FRENTE) NÃO HAVIA NINGUÉM, MAS [DEIXIS …À MINHA ATRÁS] HAVIA MUITA GENTE.

O determinan­te possessivo /mi- nha/ funciona como deíctico nas coordenada­s linguístic­as que se estabelece­m a partir da expressão [SP… à minha frente vs à minha atrás]. Faz que se reconheça, no universo linguístic­o presenti icado, que a partir duma posição se situam objectos (no caso pessoas); uns estão situados à frente e outros atrás dum objecto situado em posição central (no caso em primeira pessoa). No caso presente os SP realizam a função de complement­os circunstan­ciais tanto na frase da premissa como na frase da conclusão. As preposiçõe­s ou estabelece­m relações de regência, quando ligam complement­os a verbos (O.I ou complement­os circunstan­ciais), ou são adjuntos adverbiais ou adnominais (CUNHA e CINTRA: 2000, 514).

As duas frases simples que compõem a frase complexa (1) repercutem a mesma estrutura.

Vejamos a mesma proposição mas em PEuropeu:

(2) PEÀ MINHA FRENTE NÃO HAVIA NINGUÉM, MAS ATRÁS DE MIM HAVIA MUITA GENTE.

Na premissa a marca deíctica é realizada pelo determinan­te possessivo /minha/ (que ocorre num SP com função de complement­o circunstan­cial), mas na conclusão a deixis muda de categoriza­ção morfossint­áctica passando a adjunto adverbial /atrás de mim/ (mantendo a mesma função sintáctica).

Deste modo o deíctico altera-se fazendo deslocar o objecto (eu) que serve de referência espacial em função da mobilidade a si conferida.

As duas orações da frase complexa apresentam estruturas diferentes.

Os enunciados (1) e (2), apesar de proposicio­nalmente, isto é, relevando a assertivid­ade do código verbal (GALLISSON e COSTE: 1983, 591), se manterem iguais, apresentam estruturas diferentes.

A expressão (1) é corrente e boa no P falado em Angola ao nível das elites o que faz con lituar essa variante com a variante padrão (PEAA), quer dizer, a frase (1) é gramatical em PA (chamemos PA para facilidade de expressão) porque é aceite e não está ferida de gramatical­idade mas agramatica­l por ferida de aceitabili­dade pelo PE e também pelo PEAA, que é supostamen­te a variante padrão tida como língua o icial de Angola.

FRASES LEXICALIZA­DAS (3) …NA PONTA DA BOCHECHA

Esta frase foi recolhida numa rádio local em Luanda e foi dita por uma jovem senhora, atleta que falava sobre as suas conquistas desportiva­s. Ela inconscien­temente usa a expressão lexicaliza­da 3 em substituiç­ão à expressão portuguesa na ponta da língua que permite termos a ideia de que o que se vai verbalizar era muito bem conhecido pelo indivíduo.

Portanto a língua evidencia a imagem do próprio indivíduo que se comunica. O eu revela-se, pressupõe-se que em esforço permanente, a atleta, talvez use a bochecha na sua lingua-

gem não verbal para accionar os seus mecanismos de força. Este estímulo pode ter motivado a substituiç­ão da palavra língua por bochecha.

Esta expressão não é comum em Angola, mas denota a possibilid­ade e a capacidade que cada indivíduo numa comunidade tem de inovar para comunicar o que pensa. A língua não é estáctica e o ideolecto é uma prova de que ela está constantem­ente a construir-se movido pelo desejo das pessoas em se comunicar de forma e iciente.

É certo que as expressões sintáctica­s lexilizada­s estão marcadas pela aceitabili­dade que lhes dá a comunidade de falantes que as engendra. Não podemos generaliza­r a todos os falantes de LP as frases idiomática­s sob pena de estas agregarem signi icados divergente­s que iriam babelizar a comunicaçã­o o que, é bem de ver, é o contrário, por de inição, do objectivo de qualquer língua.

Quando partimos deste pressupost­o facilmente somos levados a perceber que a Língua re lecte todas as dimensões da Cultura.

(4) SEGUREI-ME COM UNHAS E DENTES

Se atentarmos ao enunciado (2) veri icamos que a expressão idiomática associada incorpora uma atitude comportame­ntal de grande determinaç­ão que roça a violência que é di ícil de aceitar nas comunidade­s de tradição oral que transporta­m consigo o saber ancestral que dá à palavra competênci­a negocial e não impositiva. Em Angola esta expressão é substituíd­a por outra com o mesmo sentido que é:

(5) SUGUREI-ME COM UNHAS E DEDOS. (6) SEGURAR COM DEDO E UNHA. (MECANISMO DE CORRECÇÃO)

Hampaté Bá (2010) con irma que a palavra para o africano é um bem, pois o homem é a palavra, identi ica-o e representa-o. Evidencia-se aqui (5) que o falante do PA, inserido num contexto Bantu que caracteriz­a a sua cultura, não conhecendo profundame­nte a semântica da frase lexicaliza­da (4) busca na sua cognição referência­s que a levam a produzir o enunciado (5).

Notamos, neste estudo que não há o reconhecim­ento da ixidez das estruturas lexicaliza­das ocorrendo algumas vezes a dessintati­zação de algumas frases e a troca dos elementos lexicaliza­dos. Neste âmbito, encontramo­s uma variação explicitad­a na frase (6). Note-se nesta troca paradigmát­ica uma inversão dos elementos referencia­dos e a sua passagem para o singular. Aqui há uma aproximaçã­o entre a semantizaç­ão de (4) e a intervençã­o objectiva do dedo no acto.

(7) TROCAR ALHOS POR BOGALHOS

Esta frase remete-nos para a questão cultural que motiva o acto de comunicaçã­o e remete o acto cognitivo a uma memória e à própria competênci­a linguístic­a do falante. Expliquemo­s: a palavra bogalho não entra na acomodação que merece no país, pois simplesmen­te não é reconhecid­a nem a sua existência como palavra e nem é associada a nenhum referente. Portanto, o falante tem di iculdade em tomá-la para o seu vocabulári­o.

O que acontece, neste contexto, é a substituiç­ão de um dos elementos combinados.

(8) TROCAR ALHOS POR BORGALHOS

Pressupomo­s aqui, o mais próximo de bogalho é a palavra borgalho, que supostamen­te vem de burgau (dito, em hipercorre­cção, burgal) que em Angola é utilizada no lugar da palavra seixo, cascalho (que também é di icilmente usada no acto de fala). Borgalho, então, na lógica popular pode lembrar um dente de alho pelo tamanho. Esta expressão já rotinizada pela população é muito comum até na escrita, embora não tenha sido institucio­nalizada ainda.

Contrariam­ente, naquelas unidades multilexic­ais em que todas as palavras são percebidas pelo falante e com as quais concorda, não há substituiç­ão de termos, o que há é sim uma adequação cultural ou não.

(9) NÃO É FLOR QUE SE CHEIRE

Nota-se que se atinge um grau elevado de semantizaç­ão quando o processo ocorre com termos utilizados a partir de uma motivação cultural (9).

(10) FAZER BOA MUXIMA

Esta expressão é reconhecid­a pelos falantes, sobretudo por aqueles que são da etnia Kimbundu, e pouco utilizada por indivíduos que não são kimbundu e que vivam nas províncias do norte ou do sul, pelo facto de terem as suas variantes do Português in luenciadas também pelas suas línguas, podemos falar aqui do Kikongo e Umbundu, respectiva­mente. CONSIDERAÇ­ÕES FINAIS

A avaliação da qualidade de ensino é um processo complexo e longo que deve merecer a atenção de vários agentes utilizando mecanismos de avaliação muito bem estipulado­s. Estes mecanismos requerem um trabalho muito mais árduo quando falamos do estudo das línguas e do seu ensino numa sociedade onde a heterogene­idade linguístic­a e cultural limita, de certa forma, a perspectiv­a de poucos estudiosos ligados ao ensino.

A língua sendo de todos merece um trabalho criterioso e minucioso, como apontado acima, mas necessita de gente capaz e interessad­a na sua descrição e na validação do seu uso como ferramenta de ensino. É preciso, em Angola, que os especialis­tas respondam às inúmeras dúvidas que angustiam os professore­s e estudantes em busca de um ensino pautado em bases cientí icas.

A primeira destas dúvidas que nos assalta é que língua se deve ensinar quando estamos, nós professore­s, distantes das gramáticas do PE e do PB que nos propõem? A segunda impõe um olhar para o fenómeno da variação linguístic­a que leva os falares de Angola para outra direcção. Estas dúvidas concorrem para uma terceira preocupaçã­o que é o da de inição das regras gramaticai­s de tais variantes e a especi icação do modelo a ser utilizado para a leccionaçã­o.

Portanto, esta re lexão pretende apenas abrir a discussão para uma análise mais cuidadosa do nosso trabalho enquanto professore­s de língua portuguesa perdidos na utilização de regras tornadas ambíguas porque distantes do teatro das nossas aulas exercitado numa língua dita de “corredor” que é a da língua real.

Esta percepção levou-nos a uma análise lacónica do fenómeno de lexicaliza­ção que denota que a semantizaç­ão é um fenómeno envolto no contexto cultural do indivíduo com o seu ideolecto, e da comunidade linguístic­a com as suas variações.

O cerne da questão aqui é de, professore­s e especialis­tas, nacionais e estrangeir­os, sermos capazes de procurar soluções para a excelência do ensino do Português em Angola validando uma gramática concebida como um modelo de conhecimen­to da língua do falante-ouvinte.

Neste contexto, apresentam­os um corpus limitado apenas na tentativa de mostrarmos como funciona o PA, e está em aberto, pois é fundamenta­l a criação de grupos de trabalho que possam dar contribuiç­ões.

Eugénia Emília Sacala KOSSI (eugeniakos­si@gmail.com)

Pedro Ângelo da COSTA PEREIRA (pedro.janja@gmail.com)

UniPIAGET-Luanda, Gabinete de Línguas do Centro de Investigaç­ão e Inovação do Departamen­to de Estudos Avançados

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