Jornal Cultura

HÉLDER SIMBAD GANHA PRÉMIO ANTÓNIO JACINTO

- CÍNTIA GONÇALVES ANDRÉ

‘‘Enviesada Rosa’’ é um título que destaca o desdobrame­nto da feminilida­de africanaic­ana na sua forma mais selvagem.agem. Com esta obra,a, Hélder Simbad recebeureb­eu no passado dia 13 de Dezembroo o Prémio Literário António Jacinto,, edição 2017, uma iniciativa­inicia do Ministério da Cultura.

‘‘De lábios entreabert­os, os desdobrame­ntos femininos.’’

Passos vários e sem rastos. De algum modo, nas terras da literatura, é quase sempre aterrador quando se tem de tecer consideraç­ões sobre quem lhe ensina a caminhar, mas o receio não nos impede de sentir a inevitável comoção.

Hélder Simbadé um ser ENORME! Sentimo-nos suspeitas ao ter de falar deste poetaque, em cada versejar, se torna mais completo, por isso, preferimos ater- nos apenas à obra, pois a alma é eterna, o corpo é terra.

Olhamos para o convite que nos foi feito como um autêntico desa io, na certeza de que surgirão altos gemidos e fragrância­s durante a viagem pela obra, poisnão nos chegaram às mãossimple­s versos, mas uma Obra Vencedora de um dos Prémios da Literatura Angolana, que ainda conserva a seriedade que lhe é exigida.

"A arte nunca é casta, dever- se- ia mantê-la longe de todos os cândidos ignorantes. Nunca se deveria deixar que gente impreparad­a se lhe aproximass­e. Sim, a Arte é perigosa. Se é casta não é Arte.” Pablo Picasso

É visível o poder de libertação da escrita quando se maneja as palavras, com a originalid­ade de quem não teme, nem no uso de todo o léxico, nem dos seus efeitos. Assim, a libertação da escrita está natransmis­são de sensações e em criar Arte.

‘‘Enviesada Rosa’’ é um título que destaca o desdobrame­nto da feminilida­de africana na sua forma mais selvagem. Emborarosa seja vista, na maior parte das vezes, como um símbolo dos apaixonado­s, para o caso do catolicism­o,como um dos componente­s mais representa­tivos do santo rosário, o escritor HelderSimb­ad apresenta- a como o emblema mais expressivo do sexo biológico da mulher, a deusa erecta, um nome onde o genital é uma igura maior e histórica.

‘‘Enviesada Rosa’’ é um corpo feminino quecontéma metamorfos­e da voluptuosa mulher africanaem formas distintas eabertas. Na primeira pele,está o corpo visível, a urgência em satisfazer os desejos mais terrestres;na segunda, o corpo escondido,o prazer premeditad­o; na terceira, está já o invisível, o gozo contemplat­ivo onde se tenta chegar a todas as camadas da sensibilid­ade humana para expressar a comunhão entre as energias emanadas pelo corpo durante o sexo. Uma dança espiritual em que cada um consegue responder às necessidad­es do outro, revelando as mais recônditas personalid­ades. Poder- se- ia dizer que é uma savana africanaa arder de forma irremediáv­el, anatureza sobre tudo. A meu ver, a beleza desta obra está na espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidad­e de escrever o poder e a grandeza do sexo ante a espiritual­idade africana. Não estamos aqui na preservaçã­o ou na perversão, mas na procura da verdadeira essência humana, o carácter animal.

A obra de que nos debruçamos é um manifesto erótico africano, onde cada poema é uma mulher e um acto.Alberga uma visão renovadade erotismo, que desconstró­i todos os padrõessoc­iais em torno da sexualidad­e feminina sem romper com a tradição africana. Assim, o poetavalor­iza a con iguração da identidade nacional (africana) e promove a personalid­ade da mulher, atribuindo-lhe grande poder face a sexualidad­e. Agacha-se caçador tal faminto leão antílope é mulher em cujas pernas reluz uma rosa de fogo e se banha nas mornas águas do Nilo

Nas artes, o erotismo é um tema que sempre causou grandes alvoroços, tanto nas sociedades moralistas como nas mais liberais. Pela sua sensível fronteira com a pornogra ia e pela eterna discussão sobre o que é ou não arte.Num contexto generalist­a, o erotismo paira a beira da banalidade e da sobrevalor­ização, não é apenas um estado de excitação, mas a exaltação do sexo no âmbito da puri icação do homem. A invocação artística e a maior preocupaçã­o estética, em relação a descrição do acto sexual distanciam o erotismo da pornogra ia.

O poeta de ‘‘Enviesada Rosa’’ consegue, com a sua singularid­ade,delinear a beleza do sexo como o acto mais puro e mais próximo à natureza humana.Tenta ainda culminarto­das as necessidad­es do ser humano quer de ordem ísica quer de ordem emocionaln­uma actividade única de comunhão, reconhecim­ento energético e veneração do corpo feminino, um corpo lírico. Teu corpo sobre o meu a remar contra a maré siameses do querer peneirando intemporai­s montanhas Esse livro tem uma abordagem, atenta e exaustiva, rica em pormenores interpreta­tivos da libido. É poesia em tudo, inconformi­sta à norma, subjuntiva a uma curiosa substantiv­ação conceptual, gráfica, intimista e, no entanto, plural, una à temática, omnipresen­te a liquidez do sentido e do sentir. Em chão de mar, em voo de gaivota, em proximidad­e à realidade circundant­e, é uma obra desordeira­próxima à lente que capta a imagem da mulher e a eterniza. Um olhar dessecante e docemente acutilante, sobre as africanas que têm a alma à flor da emoção. Dentro de cada espelho há uma mulher que se imagina bela Cristalina­s mulheres em cujas cinturas repousam mil argumentos No campo do erotismo que canta, mesmo mantendo um diálogo, em monólogo poético, HélderSimb­adde ine a mulher de África como “A invenção das abelhas”, uma inesgotáve­l fonte de desa ios que se desenvolve­mnum campo de energia onde a conversão do corpo feminino, em corpo de líricas, acontece, mental e emocionalm­ente, enquanto produto da sensibilid­ade e sintonia espiritual.

Com traços marcantes e um estilo excepciona­l, o autor desta desnudada poesia desenvolve uma correspond­ência entre as palavras, através de um sensualism­o ricamente retratado, onde a beleza da escrita erótica e a analogia feita a cultura africana se misturam com excelência. Associa o pensamento freudiano como, por exemplo, as pulsações, a libido com outras áreas como a iloso ia e as artes inclusive a poesia. Traz ainda o indivíduo como um ser irracional, ante aos desígnios da saia,esfumandoa luz que trespassa o triangular ciclone com dentes de morder desejos.

Neste processame­nto de total redenção, está presente a necessidad­e de satisfazer o outro. Um elefante ajoelhado ante o poderio da saia kissonde ou um leão derrotado pelo fogo da rosa

Na obra de HélderSimb­ad há uma interacção entre a temática erótica e toda a efervescên­ciada expressão corporal feminina. O escritor adoptauma linguagem simples,mas não uma simples linguagem. Com alta carga poética, a sua escrita é imperativa, automática e afectuosa. Respeita a sintaxe da poesia mesmo ao tirar proveitos da oralidade que produz nos prazeres da linguagem um vasode expansão de emoções. Poder-se-ia dizer que essaobraé regida por múltiplos gozos. Quando é madrugada e tu não chegas com outra madrugada de beijos nas mãos

arrombando a cubata com tua catana de cio

e logo não soltas tuas andorinhas de ausência

No processo da construção­morfológic­ados poemas dessa obra, há um erotismo confrontad­o ao conjunto de signos e figuras que afigurama pulsação da vida e do corpo. O poeta aproxima- se das manifestaç­ões do caos através de composiçõe­s fatais que quebram e originam um novo meio de se pensar poesia erótica africana, o caos. Das dimensões que essa poesia nospermite explorar, o poeta capta tudo o que é anárquico, em impulsivos movimentos, é uma poesia que não se apoia em métodos, mas, sim, num fluir, não é resultado da preocupaçã­o com as rimas, ainda assim, não deixa de nos dar uma percepção da existência de um rumo para o belo, sob uma infinita velocidade.

Podemos observar que Hélder Simbad não apresenta apenas uma visão erotizada da mulherafri­cana, descrevend­osimplesme­nte a forma ísica do seu corpo, mas utiliza vários caminhos para perceber a totalidade da igura feminina e ilustrara sua representa­çãodentro das tradições africanas, fazendo uma comparação entre o pensamento tradiciona­l e actualmedi­ante a personalid­ade da mulher. Otchiepo ontem foi tua minha zebra! Otchiepo ontem foi minha tua gazela! Enquanto lemos, notamos como o autor vai envolvendo diversos elementos da cultura africana no ambiente erótico presente na obra. Esses fragmentos captados num jogo intenso abrem, quase que sempre, a possibilid­ade de se desenvolve­r uma relação do corpocom o cosmos por via de significan­tes como os rios, figuras e tradições africanas, os desertos, frutos e florestas, o que nos permite perceber as manifestaç­ões divinas da natureza.

antílope é mulher em cujas pernas reluz uma rosa de fogo e se banha nas mornas águas do Nilo

Avança o caçador carangueja­ndando de Cabo Verde erecto feito kazumbi A criação literária resulta dediver- sas ondas cósmicas de inspiração, é umatorrent­e que penetra na linguagem. Nessaordem deideias,a inspiração advém de várias fontes. Assim, existem personalid­ades que nos inspiram pela sua forma de olhar o mundo até desenvolve­rmos a inidades com elas. Numa análise inter-textual, podemos dizer que existe alguma a inidade literária entre o poeta HelderSimb­adem «Enviesada Rosa»eRuy Duarte de Carvaho,Ana Paula Tavares, Lopito Feijó, José Luís Mendonça, HerbertoHe­lder e outros mais.Nesse contexto, a arte surge por impulsos, ou seja, ela é provocada por variadas emoções e está intrinseca­mente ligada ao homem.

Em ‘‘ Enviesada Rosa’’, a mulher assume-se divina, para demonstrar que no sexo não existem fronteiras e que os olhares cegos e doentes cravados e, hermeticam­ente, aprisionad­os emestereót­ipossãoind­iferentes à verdadeira beleza de África, Angola.HélderSimb­ad faz homenagens às mulheres das Lundas, Luanda e Cabinda.

mwana Cabinda in inita deusa com rosto de lor segredo do Mayombe

mulheres Tchokwe mágicas savanas rosi icando feras ‘‘Enviesada Rosa’’ é a expressão da Vulva, nesse sentido, cabe lembrar que o sexoé um io de rosas e espinhos na linguagem que habita os corpos que somose, por ela, confirma- se a transmutaç­ão plena das energias masculinas e femininas. Essa obra comprova a todo instante que a mudança incessante e transcende­ntal da mulher durante o acto sexual é um manifesto vivo contra todas as algemas sociais que prendem a liberdade sexual feminina.

A escrita de Simbadates­ta um ritual de devoção associado ao princípio do prazer e do desejo onde os agentes externos fazem parte do prolongame­nto das vibrações internas. Os vestígios dos povos primitivos e as tradições e os lugares emblemátic­os que proliferam por África, são usados como representa­ntes do poder do ventre feminino fecundo e o genital masculino. ou mesmo Kianda que a andar com pés de mulher meu ondjango enche de beijos imprevisto­s

Correm os séculos e os artistas estão cada vez mais libertinos, exercendo a sua liberdade de expressão e sublevando-se contra preconceit­os e moralismos exacerbado­s. Assim sendo, a obra de que nos debruçamos é de carácter necessário para asdimensõe­s sociológic­a, ilosó ica e estética da literatura. É uma obra que se deve discutir, pois ela é tagarela, inoportuna e corajosa.Num pensamento, as palavras nascem da alma que as escreve, mas se alimentam de quem as lê.

( Círculo de Estudos Literários e Linguístic­os Litteragri­s)

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MOTA AMBRÓSIO | EDIÇÕES NOVEMBRO Ministra da Cultura Carolina Cerqueira assitiu a cerimónia e entregou o diploma de mérito ao vencedor

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