“A PRAGA” DE ÓSCAR RIBAS SOCIEDADE E TEXTUALIDADE
Óscar Ribas foi um defensor da cultura angolana, que “privilegiou os elementos da tradição”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguardá-la, de forma geral, fizeram dele um estadista no campo da literatura.
Introdução
A visão pela qual “a natureza é tudo que existe” remete-nos a várias dimensões para a sua análise. Nesta conformidade, cria-se a relação de que tudo o que é feito está rodeado de realidade natural. Neste pressuposto, podemos afirmar que o homem é fruto da cultura, por estar ligado à natureza. A sua acção nela, a natureza, resulta também em cultura; daí que a cultura é tudo aquilo que o homem produz, tendo como elemento de partida a natureza. Deste modo, podemos estabelecer uma similitude entre natureza e cultura, dentro das manifestações e experiências do homem. Falar do homem é fazer referência a um ser social que nasce, desenvolve e reproduz, alargando a espécie. O alargamento da espécie humana dá resultado às comunidades que concomitantemente formam as sociedades. Neste estudo, a nossa visão centra-se na relação entre sociedade e textualidade, olhando para as marcas da natureza e cultura entre os dois elementos e demonstrar as diversas maneiras de como a natureza e cultural circulam na sociedade. Como se sabe, em todas as manifestações, quer artísticas como científicas, a natureza reflecte-se. Na obra “A Praga”, as marcas da natureza e cultura entrelaçam-se num tom da afirmação de identidade.
A literatura é uma das formas que as sociedades utilizam para partilhar os hábitos e costumes e todas as práticas sociais, políticas ou religiosas. Ela, para além desta particularidade, educa e procura integrar os indivíduos na comunidade, capacitando-os em matérias de resolução dos conflitos comunitários. Analisar uma obra como A Praga, de acordo com a dimensão cultural e histórica que traz, é inevitavelmente fazer reviver uma memória colectiva. A função social, independente da vontade ou “da consciência dos autores e consumidores de literatura, decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu carácter de expressão, coroada pela comunicação” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 4).
A Natureza como Fonte de Inspiração da Realidade Material
No sentido geral, entende-se por natureza a diversidade de caracteres exteriores que permitem a classi icação de um ser ou de uma coisa numa determinada espécie ou categoria. Em todas as circunstâncias, avalia-se o carácter natural de tudo o que existe ao construir o estado material, que exterioriza o valor excêntrico. Tal como a arte da pintura e escultura do Renascimento nos séculos XV e XVI, com Botticelli, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Donatello, Brunelleschi, baseada na beleza dos elementos do universo, a natureza sempre foi fonte inspiradora. Pois tudo quanto existe é obra do mundo exterior. Deste modo, a natureza é “o mundo exterior ao homem […] ou o sistema das leis que regem e explicam o conjunto do mundo exterior” (Costa et. al, 2014, p. 1169).
Para projectar a imagem do mundo natural, o homem procura interiorizar as suas experiências e as suas acções. Como se sabe, o estado natural incorpora a lei do seu fundamento, sem o qual, o homem não cumpriria a estreita relação entre si e a natureza. Neste âmbito, ele encontra-se entre o social e o natural. Na mesma dialéctica, Lévi-Strauss (2009, p. 17) a irma que o homem é um ser biológico “ao mesmo tempo que um individuo social. Entre as respostas que dá às citações exteriores ou interiores algumas dependem inteiramente de sua natureza, outras de sua condição”. Não se pode estabelecer um sistema binário válido entre a variável sim e o não, quando se pretende determinar a sua fronteira. Senão mesmo, nestes casos, “é anulada a pretensa distinção pela separação binária entre homem e natureza […] o homem, já por via do seu corpo como primeira mídia, não pode continuar a ser visto como uma realidade independente do mundo natural” (Paxe, 2015, p. 187). Independentemente do lugar, o homem é e estará sempre indissociável da natureza; é dela que consegue materializar os planos traçados; é nela que tudo é realizado e ou concretizado. Daí a inspiração unívoca de tudo quanto é fruto do homem, tanto na arte, na política, na religião como em qualquer sector.
Apesar de a natureza ser o conjunto de tudo quanto existe, a maneira como cada comunidade a encara é diferente. De igual modo, ela não se apresenta de maneira determinante e semelhante em todas as sociedades ou em grupo de indivíduos. Em cada região, assim como em cada período, a inspiração ou interpretação da natureza varia. Pode constituir-se entre valores interiores do talento pessoal ou valores exteriores do meio circundante. Por isso Dulley (2004, p. 16) entende que o signi icado da natureza “não é o mesmo para os grupos sociais de diferentes lugares e épocas na história”. Ela é pensada, a partir de relações sociais. Para se efectuar uma visão da acção do homem e da base natural, Dulley (2004, p. 17) irma que a arte seria a “habilidade da imitação da natureza, sem entretanto reproduzi-la, e a técnica uma forma de domínio sobre a natureza, sem entretanto reproduzi-la”. Portanto, a realidade material é uma inspiração da beleza da natureza, recriada segundo o talento de cada um ou de cada sociedade. Mas a acção só se realiza a partir da cultura e com experiências culturais, como a seguir desenvolveremos.
Natureza e Cultura
A nossa abordagem, nesta parte do trabalho, prende-se com os traços distintivos que se podem consubstanciar ao fazer menção à natureza e cultura. O que tentamos levantar como re lexão, tendo como base a obra de Óscar Ribas, é, porém, a ideia segundo a qual a cultura funcionaria sem re lexos da natureza. Na verdade, os sistemas valorativos nas diversas concepções do mundo material constituem cultura, e esta representa o modo como a comunidade local concebe a natureza. Se esta proporção corresponder à dinâmica de toda a criação humana e cultural, então comungamos com a ideia de Imbamba (2010, p. 34), que “a cultura é tudo aquilo que o homem cria, graças às suas faculdades privilegiadas que possui”.
E, consequentemente, a natureza é pensada naquilo que o homem procura criar ou inovar para obter a cultura. Assim, para Dulley (2004, p. 20), somente o homem tem a capacidade de pensar “culturalmente (acumular e re lectir sobre conhecimentos), reforça-se a vi- são de que ao se referir a ambiente, refere-se ao conjunto dos meios ambientes de todas as espécies, pensados e/ou conhecidos pelo sistema social humano”.
Aqui, construímos uma relação intrínseca entre os dois elementos, natureza e cultura, não no sentido de oposição ou de hierarquia. A inal nem um, nem outro aparece numa posição de privilégio, embora a natureza sirva de arquétipo de toda a recriação.
a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta, nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem. Se é relativamente fácil estabelecer a distinção de princípio, a di iculdade começa quando se quer realizar a análise. Onde acaba a natureza? Onde começa a cultura? É possível conceber vários meios de responder a esta dupla questão. Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes (Lévi-Strauss, 2009, pp. 17-18).
A interacção entre cultura e natureza, segundo Wagner (2012, p. 178), na sua obra A Invenção da Cultura, é uma dialéctica fruto da convenção que frequentemente continua a ser reinterpretada. “Porém, está constantemente perdendo terreno, pois na medida que os efeitos da interpretação se tornam cada vez mais óbvios, a distinção essencial (Cultura versus natureza) que ela precipita sofre uma relativização cada vez maior”. Wagner fala da efectivação da capacidade tecnológica do homem; ao criar máquinas com re lexo da natureza, denominou “natureza Culturalizada”, e ao criar máquinas com uma capacidade poderosa, denominou “Cultura naturalizada”. Esta convivência da natureza e cultura, na tecnologia como em outras áreas da ciência ou do saber, é comum em todas as sociedades. Desta feita, pode-se dizer, conforme Alves (2015, p. 160), que “em todas as partes geográ icas do planeta, a natureza interfere na cultura”.
As sociedades ou grupos sociais procuram os re lexos da sua realidade para traduzir a natureza da sua cultura. Por isso a cultura de uma região é diferente de outra região, tudo porque, como já referimos, a interpretação da natureza difere de sociedade para a sociedade. Importa salientar que a natureza e a historicidade do homem, como assegura Imbamba (2010, p. 30), “realizam-se e manifestam-se na sua cultura. Por isso, para que o homem seja autenticamente homem, e não se confunda com os outros animais, deve saber criar, avaliar, criticar e projectar uma cultura que torne a vida sempre mais humana”. Se o homem é o responsável pela criação da sua cultura, podemos re lectir sobre a questão da valorização daquilo que caracteriza as comunidades. As atitudes ou modos de viver são fruto das realidades culturais que as sociedades criam ao longo da sua convivência para interpretar a natureza.
Com isto, podemos identi icar também o espaço da natureza e cultura no texto literário, sendo fruto da criatividade humana. Estes textos são a alma da invenção do homem a partir de experiências sociais. No entanto, não se produz enquanto objecto de estudo sem abertura com o mundo exterior, imanente e cristalizado, “mas sim como constante diálogo entre textos e culturas, constituindo-se a literatura a partir de permanentes processos de retomadas, empréstimos e trocas” (Alós, 2006, p. 1). No texto ” A Praga”, a natureza e cultura fundamentam-se numa razão artística, voltada para a realidade social de Angola.
Textualidade: Construção de Relações entre os Objectos
As concepções sobre a textualidade requerem um espaço de comodidade ou de aceitação entre o meio envolvente, onde o texto é produzido. Certamente, o texto não surge do nada, ele é um processo. A sua produção é resultado de situações concretas de interacção entre os indivíduos, durante a sua comunicação.
Na linguística, o termo texto começa a ser objecto de estudo a partir dos anos sessenta, apresentando, desde já, uma outra concepção da que era tida no seu uso corrente, anteriormente. A sua origem é atribuída a Louis Hjelmslev, como assegura Almeida (2011, p. 65), pois essa “guinada textual da linguística começou a ser registrada nos dicionários lexicográ icos da área”. Mas é com o trabalho de Peter Hartmann, apresentado em 1964, na Conferência de Constança, que se começa com a perspectiva
da linguística textual. A partir do trabalho de Hartmann, conforme Oliveira et. al (2000, p. 63), o termo textualidade passa a designar, precisamente, “uma estrutura bilateral que reúne, em simultâneo, aspectos da linguagem e da ordem social. O texto aparece, então, como a realização concreta da estrutura textualidade, numa dada situação de comunicação”. Neste caso, o texto é o suporte ou o papel e a textualidade, as disposições da linguagem contida no texto, ou seja, o primeiro é o material e o segundo é a realização concreta do primeiro.
Citando Roland Barthes, um dos autores determinantes para a concepção e difusão de uma noção literária de texto, Almeida (2011, p. 68) refere que:
um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.
A questão de textualidade é apontada tendo em conta alguns factores como a situacionalidade, a informatividade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a intertextualidade, a coerência e a coesão. De acordo com estes factores, na visão de Costa Val (1991), “o texto não é um simples produto, pelo contrário, é um processo. Este processo efectiva- se a partir da comunicação entre os indivíduos, quer de forma oral quer escrita”. Por outro lado, toda a manifestação verbal dá- se “sempre por meio de textos realizados por algum género” Marcuschi ( 2008, p. 154). A construção de relações dos objectos efectiva- se a partir das proximidades dos modelos que as sociedades constroem. Os objectos dão o seu carácter material, con igurando numa razão, que muitas vezes se encontra consolidada na estrutura textual. Marcuschi, ao posicionar o texto num paradigma vertical, sendo um processo, talvez sua intenção seja situá- lo no seu universo de instrumento comunicativo.
Mais que uma ferramenta para a transmissão daquilo que as sociedades dispõem para o bem comum, a relação entre textualidade e os objectos também procura enaltecer a essência dos valores artísticos. Estes elementos, segundo Paxe (2015, p. 194), “con iguram as traduções textuais que também devem ser entendidas como a forma como os textos, nas suas diferentes relações vão superando as fronteiras e gerando novos códigos”. Daí aferirmos a obrigatoriedade dos factos criados con inar com a natureza cultural. Qualquer estudo dos objectos leva-nos, “em consideração processos culturais e tecnológicos, e as relações entre tais espaços alargam-se em ambientes comunicacionais complexos” (Dos Santos, 2015, p. 98). Para Dos Santos (2015, pp. 100-104), as realidades construídas traduzem novas técnicas “em modelos já existentes, ixando-os – uma vez que se aprende os novos modos por processos de semelhança. Relacionar os objectos, por mais próximos que estejam, é dar complexidade aos processos e às suas relações”. E o texto, neste caso, conforme Júnior (1999, p. 40), “constitui a unidade mínima da cultura”, enquanto sistema operante complexo; para além de circular, nele, a linguagem da criação social, também circula a criação individual.
Logo, com aquilo que Óscar Ribas traz como letra na obra em análise, podemos perceber que a textualidade não se constitui somente como um conjunto ou somatório dos elementos. Pois, de forma particular, o texto é o “resultado de uma interacção de elementos e sua projecção temporal” ( Júnior, 1999, p. 44). Os objectos, quer a nível linguístico como a nível da realidade social do con- teúdo, formam uma similitude com o texto. Cada segmento forma uma relação que resulta na construção de ideia central e secundária ao longo do texto.
“A Praga”: Relação entre Sociedade e Textualidade
Analisar qualquer obra de Óscar Ribas não é uma tarefa fácil, pela grandeza da estrutura e da linguagem que o autor utiliza nos seus textos. Ele é um dos exímios intelectuais da primeira geração que o país registou. A complexidade dos seus textos prende-se pela qualidade imprimida em quase todas as suas obras, onde o Parnasianismo circula no seu interior. A posição que os precursores da literatura angolana tomaram acabou por nutrir a veia dos demais. Mais que demonstrar a estética, a partir da literatura, os textos produzidos em qualquer sociedade procuram sempre evidenciar os hábitos e costumes. Não como o colonizador tentou demonstrar, com a produção violenta de textos etnocídios na década de 30, onde a imagem do negro era con inada com a natureza selvagem. Óscar Ribas foi um defensor da cultura angolana. Ao contrário de outros escritores com pendor nacionalista nas suas escritas, ele “privilegiou os elementos da tradição” (Laranjeira, 1995, p. 51). A sua forma crítica de encarar as vicissitudes do hediondo momento febril levou-o a transpor o volume do seu saber para a literatura. Desta maneira, Ribas estabeleceria uma equidade entre o ocidente e o negro. Com esta visão, o iccionista, como sublinha Padilha (2011, p. 115), cria o “propósito de ixar, pela escrita, o saber ancestral negroafricano, sempre posto à margem pelo hegemónico sa- ber branco-ocidental”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguardá-la, de forma geral, izeram dele um estadista no campo da literatura. E para atingir seu ápice, a experiência da natureza vai impulsioná-lo e os textos orais irão preencher esta sagacidade.
Como sabemos, em todos os casos, nenhum escritor escreve dispensando o leitor, a inalidade de qualquer texto é atingir o âmago do leitor. Para isso, a interculturalidade entre ambos deve ser sólido e inequívoco. Com certeza, conforme Segre (1999, p. 19), a natureza de mensagem que o texto literário veicula é determinada pelo “facto de o autor ter estabelecido uma relação especial com o (s) destinatário (s), com a inalidade de se tornar emissor: uma relação do tipo cultural nos seus conteúdos, pragmática na sua inalidade”. O artista procura um alvo e um determinado contexto, para que os seus objectivos sejam cumpridos; o auditor ou leitor “deseja que ele lhe mostre determinado aspecto da realidade” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 54).
De acordo com Padilha (2011, p. 117), o conto “A praga” “busca, em última instância, adensar o componente ético das ações narrativas, iliando-se aos contos da tradição oral angolana e da africana de modo geral”, publicado em 1978 pela União dos Escritores Angolanos. Sublinha-se que a segunda edição é fruto da editora das Letras em 2014. Pois “A Praga” é um dos contos da obra “Ecos da Minha Terra”, publicada em 1952.
“É tia, a sorte bateu-me à porta!” (Ribas, 2014, p. 9). É com esta enunciação, carregando um tom de animismo ou alegórico, que se introduz a primeira palavra das personagens na narrativa. A voz sumptuosa de Mussoco, uma das personagens protagonistas, dispensa qualquer caracterização nítida, olhando pelo mistério das forças ocultas que se veri icou no desenrolar da narrativa. Numa história que envolve a Mussoco que terá apanhado uma quantidade de dinheiro, a Donana, dona do dinheiro, percorria às ruas à procura de quem teria apanhado, mas sem sucesso. A mulher, desesperada, vendo esgotadas as evidências, não lhe restou mais nada, senão recorrer aos espíritos. A resposta do poder sobrenatural acaba por tomar conta de todas as pessoas envolvidas no acto que, mesmo vivendo dentro das regras da tradição, resolviam fechar os olhos, guardando o dinheiro. O segredo começa a revelar-se, quando as mortes se evidenciam.
A presença da natureza no texto é visível; podemos observar a forma como o autor faz associações a partir da realidade cultural, traduzidas em forma de informação, assim como no seguinte trecho: “kia ngi kola... a ngi kuata... bu dibebe... dia nguari (Sou azarenta... apanharam-me... numa armadilha... de perdiz!) - Turturinava de moradia próxima uma rola” (2014, p. 9). Quando uma rola turturina é porque aconteceu ou vai acontecer alguma coisa. É uma realidade da natureza transportada para a vivência social, e a partir deste elemento, cria-se mais uma realidade cultural. O pássaro é um animal, com uma imagem natural que aparece para transmitir a mensagem num universo humano, com códigos identi icados a partir do verbo turturinar. A mesma associação de imagens naturais, ligadas aos pássaros, identi icamo-la quando o narrador nos apresenta “kiê, kiê, kiê, kiu, ki tukila (É teu, é teu, mas ainda se voltam contra ti!) – cantava vibrantemente um passarito entrajado de cinzento com camisa branca, todo saracoteante num ramo de mulemba” (2014, p, 11). O movimento de pássaro andar de um lugar para o outro revela uma preocupação. Como vimos, o turturinar de uma rolha (pássaro) revela algum acontecimento; e o saracotear também, pode ser um presságio. Ao folhearmos o interior das páginas, descobriremos que a praga actuara naquela comunidade, e os pássaros apelavam, enquanto transmitiam a mensagem, utilizando diversas textualidades: turturinar e saracotear.
O reconhecimento do trabalho de Óscar Ribas não é um mero acaso, a escolha dos elementos naturais, transformados numa linguagem artística, demonstra a sua mestria. É o caso do uso de mimologismo, ao imitar o movimento dos olhos, quando estão ixos numa direcção, uma textualidade presente em quase todas as sociedades. A informação emitida revela-se pela interpretação de onomatopeia, onde o autor constrói uma relação social e textual: “Neste mesmo instante – leco, leco, leco – os olhos no caminho, volto para casa” (2014, p. 11). A vizinha que murmurava, preocupada com a revelação do mau momento prognosticado, associava também a natureza em sua volta, dizendo: Toma papagaio!... Mas que chuvada!... Por isso ontem – tatatatatá! -, estralejou bastante!” (2014, p. 17). A Donana, inalmente morreu também, e os seus gritos pelas ruas eram associados ao papagaio. Aqui, observamos uma tríade, onde o pássaro, a chuva e a onomatopeia preenchem o espaço natural. E como resultado, o relâmpago, com estalo ou estouro.
A natureza circula dentro deste conto sob diversos aspectos. Um dos aspectos é representado sob a forma metafórica, “Ó coração de pedra, porque não te revelas?” (2014, p. 12). Entretanto, a pedra é um elemento natural de uma composição compacta e dura, comparada com a atitude do homem irreverente e de di ícil cortesia. Enquanto a dona de dinheiro clamava para que quem tivesse apanhado devolvesse, o silêncio indicava a natureza de uma pedra. Só quem não tem piedade seria capaz de se esconder, deixando todos em pânico, segundo a re lexão de algumas personagens na obra.
Entretanto, os elementos da natureza participam na comunicação com diversos suportes, nomeadamente visão, audição, olfacto ou tacto. Quando pronunciamos o nome de um determinado objecto, acabamos por relacionar o som ou a imagem produzida com a realidade cultural. A partir do cérebro conseguimos relacionar a imagem, ou o referente com a realidade existente na cultura, criando textualidade. Contudo, a natureza não é só exuberante, “como interfere constantemente na cultura, criando uma cenogra ia para campos e cidades” (Alves, 2015, p. 160). Aqui, a textualidade estabelece uma relação com a sociedade. A inal, os textos circulam dentro de uma comunidade, e inequivocamente devem apresentar a vivência dos membros comunitários.
Para a questão particular da cultura, Segre (1999, p. 23) a irma:
os signi icados textuais abandonam a sua potencialidade, tornam-se signi icados em acção, apenas durante e graças à leitura... o leitor ritualiza signi icados já parcialmente entrados na cultura, e na sua cultura, através de leituras anteriores”. Para este caso concreto, estamos diante de um circuito funcional, onde o emissor, que é o escritor, procura traduzir os signi icados em imagens literárias. Da mesma maneira, o leitor, que é o consumidor, capta os mesmos signi icados, de acordo com o nível de conhecimento adquirido a partir da cultura.
Mas há casos em que o leitor não pertence a este espaço cultural, às vezes não domina os códigos de comunicação, no caso de um leigo e de “uma criança, ainda que pertençam a este espaço cultural porque não dominam este sistema de comunicação; olham para a peça como um simples cenário de ilustração” (Paxe, 2009, p. 51). As realidades culturais que o conto traz começam a revelar-se logo no início: “Esfregava os dentes com moinha de carvão com sal” (2014, p. 9). Neste caso, os fragmentos reduzidos a pó de madeira ou lenha servem como pepsodente para esfregar nos dentes, uma prática cultural nas áreas rurais.
Mais adiante, encontramos a expressão: “Vou cubar! Vejam lá, não se queixem depois...” (2014, p. 12). Cubar vem de kuba, praguejar, enfeitiçar. Geralmente, nas comunidades, uma prática habitual entre alguns povos no país, quando num assunto ou con lito não se encontre resolução, geralmente, há quem utilize outros caminhos para a devida justiça. E a praga é uma das vias utilizadas, demonstrando-se como uma prática cultural. E para concretizar o plano de “cubamento”, a Donana desloca-se às terras do Ambriz à procura de um quimbanda: “Venho ter com os anciãos e antepassados. Quero que mandes os jimbambi a quem achou um dinheiro que perdi” (2014, p. 15). Neste caso, jimbambi representam espíritos sobrenaturais, com poder decisório sobre qualquer problema. E é neles que Donana con ia a sua prece, mas sob o aviso do kimbanda que agisse com cautela, pois o poder dos jimbambi era determinante.
Tempos depois, a resposta não tardou, os óbitos começaram a ser uma realidade, começando pela Mussoco que tinha apanhado o dinheiro, a própria dona de dinheiro, por não ter cumprido com a prescrição do kimbanda, e iam morrendo um por um; inalmente a praga tinha tomado conta dos habitantes. Esta realidade era ignorada pelo ocidente que não acreditava nas forças sobrenaturais, como a irma Padilha (2011, p. 118):
o leitor atento encontra uma clara oposição entre uma lógica branco-ocidental e uma outra negro-africana que, aliás, prevalece no texto. Assim, se as mortes são atribuídas, pelos médicos, a uma “epidemia”, os quimbandas as consideram resultantes de “um bruxedo de execrações que entrara em casa.
Portanto, a natureza e cultura circulam nos textos literários, dandonos a noção sobre como certas realidades se interligam aos elementos sociais e a toda a vivência dos membros. Identificamo- los a partir de diversos aspectos e formas textuais. Óscar Ribas cria um cosmo linear, procurando inventariar a beleza natural e cultural de África, de forma geral, e de Angola, de forma particular, tendo como suporte o texto literário. Quando falamos sobre a natureza e cultura buscamos dois elementos com um suporte basilar na construção de normas e matrizes a nível das comunidades. A partir de novas formas de tecnologia, a sociedade pode aproveitar incluir elementos textuais que traduzam a cultura. Ela, a cultura, não é con inada para um ângulo particular, como se pensa, pelo contrário, está presente em todas as manifestações sociais. Dentro do texto literário, a cultura e natureza circulam, estabelecendo uma paridade com a sociedade, onde o texto é produzido. Cada efeito material vai-se emigrando nos diferentes suportes. Entretanto, a natureza, cultura e textualidade interligam-se, dando a sua visibilidade na sociedade, como espaço ísico onde o homem é o herói.
Óscar Ribas consegue atravessar as suas limitações e penetrar no cosmo, buscando a imagem real que re lecte a maneira do negro angolano. Com uma linguagem típica de conhecedor das letras, o autor critica, educa e ironiza, com o propósito de despertar o leitor.
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