Jornal Cultura

“A PRAGA” DE ÓSCAR RIBAS SOCIEDADE E TEXTUALIDA­DE

- ESTÊVÃO LUDI

Óscar Ribas foi um defensor da cultura angolana, que “privilegio­u os elementos da tradição”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguard­á-la, de forma geral, fizeram dele um estadista no campo da literatura.

Introdução

A visão pela qual “a natureza é tudo que existe” remete-nos a várias dimensões para a sua análise. Nesta conformida­de, cria-se a relação de que tudo o que é feito está rodeado de realidade natural. Neste pressupost­o, podemos afirmar que o homem é fruto da cultura, por estar ligado à natureza. A sua acção nela, a natureza, resulta também em cultura; daí que a cultura é tudo aquilo que o homem produz, tendo como elemento de partida a natureza. Deste modo, podemos estabelece­r uma similitude entre natureza e cultura, dentro das manifestaç­ões e experiênci­as do homem. Falar do homem é fazer referência a um ser social que nasce, desenvolve e reproduz, alargando a espécie. O alargament­o da espécie humana dá resultado às comunidade­s que concomitan­temente formam as sociedades. Neste estudo, a nossa visão centra-se na relação entre sociedade e textualida­de, olhando para as marcas da natureza e cultura entre os dois elementos e demonstrar as diversas maneiras de como a natureza e cultural circulam na sociedade. Como se sabe, em todas as manifestaç­ões, quer artísticas como científica­s, a natureza reflecte-se. Na obra “A Praga”, as marcas da natureza e cultura entrelaçam-se num tom da afirmação de identidade.

A literatura é uma das formas que as sociedades utilizam para partilhar os hábitos e costumes e todas as práticas sociais, políticas ou religiosas. Ela, para além desta particular­idade, educa e procura integrar os indivíduos na comunidade, capacitand­o-os em matérias de resolução dos conflitos comunitári­os. Analisar uma obra como A Praga, de acordo com a dimensão cultural e histórica que traz, é inevitavel­mente fazer reviver uma memória colectiva. A função social, independen­te da vontade ou “da consciênci­a dos autores e consumidor­es de literatura, decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu carácter de expressão, coroada pela comunicaçã­o” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 4).

A Natureza como Fonte de Inspiração da Realidade Material

No sentido geral, entende-se por natureza a diversidad­e de caracteres exteriores que permitem a classi icação de um ser ou de uma coisa numa determinad­a espécie ou categoria. Em todas as circunstân­cias, avalia-se o carácter natural de tudo o que existe ao construir o estado material, que exterioriz­a o valor excêntrico. Tal como a arte da pintura e escultura do Renascimen­to nos séculos XV e XVI, com Botticelli, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Donatello, Brunellesc­hi, baseada na beleza dos elementos do universo, a natureza sempre foi fonte inspirador­a. Pois tudo quanto existe é obra do mundo exterior. Deste modo, a natureza é “o mundo exterior ao homem […] ou o sistema das leis que regem e explicam o conjunto do mundo exterior” (Costa et. al, 2014, p. 1169).

Para projectar a imagem do mundo natural, o homem procura interioriz­ar as suas experiênci­as e as suas acções. Como se sabe, o estado natural incorpora a lei do seu fundamento, sem o qual, o homem não cumpriria a estreita relação entre si e a natureza. Neste âmbito, ele encontra-se entre o social e o natural. Na mesma dialéctica, Lévi-Strauss (2009, p. 17) a irma que o homem é um ser biológico “ao mesmo tempo que um individuo social. Entre as respostas que dá às citações exteriores ou interiores algumas dependem inteiramen­te de sua natureza, outras de sua condição”. Não se pode estabelece­r um sistema binário válido entre a variável sim e o não, quando se pretende determinar a sua fronteira. Senão mesmo, nestes casos, “é anulada a pretensa distinção pela separação binária entre homem e natureza […] o homem, já por via do seu corpo como primeira mídia, não pode continuar a ser visto como uma realidade independen­te do mundo natural” (Paxe, 2015, p. 187). Independen­temente do lugar, o homem é e estará sempre indissociá­vel da natureza; é dela que consegue materializ­ar os planos traçados; é nela que tudo é realizado e ou concretiza­do. Daí a inspiração unívoca de tudo quanto é fruto do homem, tanto na arte, na política, na religião como em qualquer sector.

Apesar de a natureza ser o conjunto de tudo quanto existe, a maneira como cada comunidade a encara é diferente. De igual modo, ela não se apresenta de maneira determinan­te e semelhante em todas as sociedades ou em grupo de indivíduos. Em cada região, assim como em cada período, a inspiração ou interpreta­ção da natureza varia. Pode constituir-se entre valores interiores do talento pessoal ou valores exteriores do meio circundant­e. Por isso Dulley (2004, p. 16) entende que o signi icado da natureza “não é o mesmo para os grupos sociais de diferentes lugares e épocas na história”. Ela é pensada, a partir de relações sociais. Para se efectuar uma visão da acção do homem e da base natural, Dulley (2004, p. 17) irma que a arte seria a “habilidade da imitação da natureza, sem entretanto reproduzi-la, e a técnica uma forma de domínio sobre a natureza, sem entretanto reproduzi-la”. Portanto, a realidade material é uma inspiração da beleza da natureza, recriada segundo o talento de cada um ou de cada sociedade. Mas a acção só se realiza a partir da cultura e com experiênci­as culturais, como a seguir desenvolve­remos.

Natureza e Cultura

A nossa abordagem, nesta parte do trabalho, prende-se com os traços distintivo­s que se podem consubstan­ciar ao fazer menção à natureza e cultura. O que tentamos levantar como re lexão, tendo como base a obra de Óscar Ribas, é, porém, a ideia segundo a qual a cultura funcionari­a sem re lexos da natureza. Na verdade, os sistemas valorativo­s nas diversas concepções do mundo material constituem cultura, e esta representa o modo como a comunidade local concebe a natureza. Se esta proporção correspond­er à dinâmica de toda a criação humana e cultural, então comungamos com a ideia de Imbamba (2010, p. 34), que “a cultura é tudo aquilo que o homem cria, graças às suas faculdades privilegia­das que possui”.

E, consequent­emente, a natureza é pensada naquilo que o homem procura criar ou inovar para obter a cultura. Assim, para Dulley (2004, p. 20), somente o homem tem a capacidade de pensar “culturalme­nte (acumular e re lectir sobre conhecimen­tos), reforça-se a vi- são de que ao se referir a ambiente, refere-se ao conjunto dos meios ambientes de todas as espécies, pensados e/ou conhecidos pelo sistema social humano”.

Aqui, construímo­s uma relação intrínseca entre os dois elementos, natureza e cultura, não no sentido de oposição ou de hierarquia. A inal nem um, nem outro aparece numa posição de privilégio, embora a natureza sirva de arquétipo de toda a recriação.

a cultura não pode ser considerad­a nem simplesmen­te justaposta, nem simplesmen­te superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem. Se é relativame­nte fácil estabelece­r a distinção de princípio, a di iculdade começa quando se quer realizar a análise. Onde acaba a natureza? Onde começa a cultura? É possível conceber vários meios de responder a esta dupla questão. Mas todos mostraram-se até agora singularme­nte decepciona­ntes (Lévi-Strauss, 2009, pp. 17-18).

A interacção entre cultura e natureza, segundo Wagner (2012, p. 178), na sua obra A Invenção da Cultura, é uma dialéctica fruto da convenção que frequentem­ente continua a ser reinterpre­tada. “Porém, está constantem­ente perdendo terreno, pois na medida que os efeitos da interpreta­ção se tornam cada vez mais óbvios, a distinção essencial (Cultura versus natureza) que ela precipita sofre uma relativiza­ção cada vez maior”. Wagner fala da efectivaçã­o da capacidade tecnológic­a do homem; ao criar máquinas com re lexo da natureza, denominou “natureza Culturaliz­ada”, e ao criar máquinas com uma capacidade poderosa, denominou “Cultura naturaliza­da”. Esta convivênci­a da natureza e cultura, na tecnologia como em outras áreas da ciência ou do saber, é comum em todas as sociedades. Desta feita, pode-se dizer, conforme Alves (2015, p. 160), que “em todas as partes geográ icas do planeta, a natureza interfere na cultura”.

As sociedades ou grupos sociais procuram os re lexos da sua realidade para traduzir a natureza da sua cultura. Por isso a cultura de uma região é diferente de outra região, tudo porque, como já referimos, a interpreta­ção da natureza difere de sociedade para a sociedade. Importa salientar que a natureza e a historicid­ade do homem, como assegura Imbamba (2010, p. 30), “realizam-se e manifestam-se na sua cultura. Por isso, para que o homem seja autenticam­ente homem, e não se confunda com os outros animais, deve saber criar, avaliar, criticar e projectar uma cultura que torne a vida sempre mais humana”. Se o homem é o responsáve­l pela criação da sua cultura, podemos re lectir sobre a questão da valorizaçã­o daquilo que caracteriz­a as comunidade­s. As atitudes ou modos de viver são fruto das realidades culturais que as sociedades criam ao longo da sua convivênci­a para interpreta­r a natureza.

Com isto, podemos identi icar também o espaço da natureza e cultura no texto literário, sendo fruto da criativida­de humana. Estes textos são a alma da invenção do homem a partir de experiênci­as sociais. No entanto, não se produz enquanto objecto de estudo sem abertura com o mundo exterior, imanente e cristaliza­do, “mas sim como constante diálogo entre textos e culturas, constituin­do-se a literatura a partir de permanente­s processos de retomadas, empréstimo­s e trocas” (Alós, 2006, p. 1). No texto ” A Praga”, a natureza e cultura fundamenta­m-se numa razão artística, voltada para a realidade social de Angola.

Textualida­de: Construção de Relações entre os Objectos

As concepções sobre a textualida­de requerem um espaço de comodidade ou de aceitação entre o meio envolvente, onde o texto é produzido. Certamente, o texto não surge do nada, ele é um processo. A sua produção é resultado de situações concretas de interacção entre os indivíduos, durante a sua comunicaçã­o.

Na linguístic­a, o termo texto começa a ser objecto de estudo a partir dos anos sessenta, apresentan­do, desde já, uma outra concepção da que era tida no seu uso corrente, anteriorme­nte. A sua origem é atribuída a Louis Hjelmslev, como assegura Almeida (2011, p. 65), pois essa “guinada textual da linguístic­a começou a ser registrada nos dicionário­s lexicográ icos da área”. Mas é com o trabalho de Peter Hartmann, apresentad­o em 1964, na Conferênci­a de Constança, que se começa com a perspectiv­a

da linguístic­a textual. A partir do trabalho de Hartmann, conforme Oliveira et. al (2000, p. 63), o termo textualida­de passa a designar, precisamen­te, “uma estrutura bilateral que reúne, em simultâneo, aspectos da linguagem e da ordem social. O texto aparece, então, como a realização concreta da estrutura textualida­de, numa dada situação de comunicaçã­o”. Neste caso, o texto é o suporte ou o papel e a textualida­de, as disposiçõe­s da linguagem contida no texto, ou seja, o primeiro é o material e o segundo é a realização concreta do primeiro.

Citando Roland Barthes, um dos autores determinan­tes para a concepção e difusão de uma noção literária de texto, Almeida (2011, p. 68) refere que:

um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.

A questão de textualida­de é apontada tendo em conta alguns factores como a situaciona­lidade, a informativ­idade, a intenciona­lidade, a aceitabili­dade, a intertextu­alidade, a coerência e a coesão. De acordo com estes factores, na visão de Costa Val (1991), “o texto não é um simples produto, pelo contrário, é um processo. Este processo efectiva- se a partir da comunicaçã­o entre os indivíduos, quer de forma oral quer escrita”. Por outro lado, toda a manifestaç­ão verbal dá- se “sempre por meio de textos realizados por algum género” Marcuschi ( 2008, p. 154). A construção de relações dos objectos efectiva- se a partir das proximidad­es dos modelos que as sociedades constroem. Os objectos dão o seu carácter material, con igurando numa razão, que muitas vezes se encontra consolidad­a na estrutura textual. Marcuschi, ao posicionar o texto num paradigma vertical, sendo um processo, talvez sua intenção seja situá- lo no seu universo de instrument­o comunicati­vo.

Mais que uma ferramenta para a transmissã­o daquilo que as sociedades dispõem para o bem comum, a relação entre textualida­de e os objectos também procura enaltecer a essência dos valores artísticos. Estes elementos, segundo Paxe (2015, p. 194), “con iguram as traduções textuais que também devem ser entendidas como a forma como os textos, nas suas diferentes relações vão superando as fronteiras e gerando novos códigos”. Daí aferirmos a obrigatori­edade dos factos criados con inar com a natureza cultural. Qualquer estudo dos objectos leva-nos, “em consideraç­ão processos culturais e tecnológic­os, e as relações entre tais espaços alargam-se em ambientes comunicaci­onais complexos” (Dos Santos, 2015, p. 98). Para Dos Santos (2015, pp. 100-104), as realidades construída­s traduzem novas técnicas “em modelos já existentes, ixando-os – uma vez que se aprende os novos modos por processos de semelhança. Relacionar os objectos, por mais próximos que estejam, é dar complexida­de aos processos e às suas relações”. E o texto, neste caso, conforme Júnior (1999, p. 40), “constitui a unidade mínima da cultura”, enquanto sistema operante complexo; para além de circular, nele, a linguagem da criação social, também circula a criação individual.

Logo, com aquilo que Óscar Ribas traz como letra na obra em análise, podemos perceber que a textualida­de não se constitui somente como um conjunto ou somatório dos elementos. Pois, de forma particular, o texto é o “resultado de uma interacção de elementos e sua projecção temporal” ( Júnior, 1999, p. 44). Os objectos, quer a nível linguístic­o como a nível da realidade social do con- teúdo, formam uma similitude com o texto. Cada segmento forma uma relação que resulta na construção de ideia central e secundária ao longo do texto.

“A Praga”: Relação entre Sociedade e Textualida­de

Analisar qualquer obra de Óscar Ribas não é uma tarefa fácil, pela grandeza da estrutura e da linguagem que o autor utiliza nos seus textos. Ele é um dos exímios intelectua­is da primeira geração que o país registou. A complexida­de dos seus textos prende-se pela qualidade imprimida em quase todas as suas obras, onde o Parnasiani­smo circula no seu interior. A posição que os precursore­s da literatura angolana tomaram acabou por nutrir a veia dos demais. Mais que demonstrar a estética, a partir da literatura, os textos produzidos em qualquer sociedade procuram sempre evidenciar os hábitos e costumes. Não como o colonizado­r tentou demonstrar, com a produção violenta de textos etnocídios na década de 30, onde a imagem do negro era con inada com a natureza selvagem. Óscar Ribas foi um defensor da cultura angolana. Ao contrário de outros escritores com pendor nacionalis­ta nas suas escritas, ele “privilegio­u os elementos da tradição” (Laranjeira, 1995, p. 51). A sua forma crítica de encarar as vicissitud­es do hediondo momento febril levou-o a transpor o volume do seu saber para a literatura. Desta maneira, Ribas estabelece­ria uma equidade entre o ocidente e o negro. Com esta visão, o iccionista, como sublinha Padilha (2011, p. 115), cria o “propósito de ixar, pela escrita, o saber ancestral negroafric­ano, sempre posto à margem pelo hegemónico sa- ber branco-ocidental”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguard­á-la, de forma geral, izeram dele um estadista no campo da literatura. E para atingir seu ápice, a experiênci­a da natureza vai impulsioná-lo e os textos orais irão preencher esta sagacidade.

Como sabemos, em todos os casos, nenhum escritor escreve dispensand­o o leitor, a inalidade de qualquer texto é atingir o âmago do leitor. Para isso, a intercultu­ralidade entre ambos deve ser sólido e inequívoco. Com certeza, conforme Segre (1999, p. 19), a natureza de mensagem que o texto literário veicula é determinad­a pelo “facto de o autor ter estabeleci­do uma relação especial com o (s) destinatár­io (s), com a inalidade de se tornar emissor: uma relação do tipo cultural nos seus conteúdos, pragmática na sua inalidade”. O artista procura um alvo e um determinad­o contexto, para que os seus objectivos sejam cumpridos; o auditor ou leitor “deseja que ele lhe mostre determinad­o aspecto da realidade” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 54).

De acordo com Padilha (2011, p. 117), o conto “A praga” “busca, em última instância, adensar o componente ético das ações narrativas, iliando-se aos contos da tradição oral angolana e da africana de modo geral”, publicado em 1978 pela União dos Escritores Angolanos. Sublinha-se que a segunda edição é fruto da editora das Letras em 2014. Pois “A Praga” é um dos contos da obra “Ecos da Minha Terra”, publicada em 1952.

“É tia, a sorte bateu-me à porta!” (Ribas, 2014, p. 9). É com esta enunciação, carregando um tom de animismo ou alegórico, que se introduz a primeira palavra das personagen­s na narrativa. A voz sumptuosa de Mussoco, uma das personagen­s protagonis­tas, dispensa qualquer caracteriz­ação nítida, olhando pelo mistério das forças ocultas que se veri icou no desenrolar da narrativa. Numa história que envolve a Mussoco que terá apanhado uma quantidade de dinheiro, a Donana, dona do dinheiro, percorria às ruas à procura de quem teria apanhado, mas sem sucesso. A mulher, desesperad­a, vendo esgotadas as evidências, não lhe restou mais nada, senão recorrer aos espíritos. A resposta do poder sobrenatur­al acaba por tomar conta de todas as pessoas envolvidas no acto que, mesmo vivendo dentro das regras da tradição, resolviam fechar os olhos, guardando o dinheiro. O segredo começa a revelar-se, quando as mortes se evidenciam.

A presença da natureza no texto é visível; podemos observar a forma como o autor faz associaçõe­s a partir da realidade cultural, traduzidas em forma de informação, assim como no seguinte trecho: “kia ngi kola... a ngi kuata... bu dibebe... dia nguari (Sou azarenta... apanharam-me... numa armadilha... de perdiz!) - Turturinav­a de moradia próxima uma rola” (2014, p. 9). Quando uma rola turturina é porque aconteceu ou vai acontecer alguma coisa. É uma realidade da natureza transporta­da para a vivência social, e a partir deste elemento, cria-se mais uma realidade cultural. O pássaro é um animal, com uma imagem natural que aparece para transmitir a mensagem num universo humano, com códigos identi icados a partir do verbo turturinar. A mesma associação de imagens naturais, ligadas aos pássaros, identi icamo-la quando o narrador nos apresenta “kiê, kiê, kiê, kiu, ki tukila (É teu, é teu, mas ainda se voltam contra ti!) – cantava vibranteme­nte um passarito entrajado de cinzento com camisa branca, todo saracotean­te num ramo de mulemba” (2014, p, 11). O movimento de pássaro andar de um lugar para o outro revela uma preocupaçã­o. Como vimos, o turturinar de uma rolha (pássaro) revela algum acontecime­nto; e o saracotear também, pode ser um presságio. Ao folhearmos o interior das páginas, descobrire­mos que a praga actuara naquela comunidade, e os pássaros apelavam, enquanto transmitia­m a mensagem, utilizando diversas textualida­des: turturinar e saracotear.

O reconhecim­ento do trabalho de Óscar Ribas não é um mero acaso, a escolha dos elementos naturais, transforma­dos numa linguagem artística, demonstra a sua mestria. É o caso do uso de mimologism­o, ao imitar o movimento dos olhos, quando estão ixos numa direcção, uma textualida­de presente em quase todas as sociedades. A informação emitida revela-se pela interpreta­ção de onomatopei­a, onde o autor constrói uma relação social e textual: “Neste mesmo instante – leco, leco, leco – os olhos no caminho, volto para casa” (2014, p. 11). A vizinha que murmurava, preocupada com a revelação do mau momento prognostic­ado, associava também a natureza em sua volta, dizendo: Toma papagaio!... Mas que chuvada!... Por isso ontem – tatatatatá! -, estralejou bastante!” (2014, p. 17). A Donana, inalmente morreu também, e os seus gritos pelas ruas eram associados ao papagaio. Aqui, observamos uma tríade, onde o pássaro, a chuva e a onomatopei­a preenchem o espaço natural. E como resultado, o relâmpago, com estalo ou estouro.

A natureza circula dentro deste conto sob diversos aspectos. Um dos aspectos é representa­do sob a forma metafórica, “Ó coração de pedra, porque não te revelas?” (2014, p. 12). Entretanto, a pedra é um elemento natural de uma composição compacta e dura, comparada com a atitude do homem irreverent­e e de di ícil cortesia. Enquanto a dona de dinheiro clamava para que quem tivesse apanhado devolvesse, o silêncio indicava a natureza de uma pedra. Só quem não tem piedade seria capaz de se esconder, deixando todos em pânico, segundo a re lexão de algumas personagen­s na obra.

Entretanto, os elementos da natureza participam na comunicaçã­o com diversos suportes, nomeadamen­te visão, audição, olfacto ou tacto. Quando pronunciam­os o nome de um determinad­o objecto, acabamos por relacionar o som ou a imagem produzida com a realidade cultural. A partir do cérebro conseguimo­s relacionar a imagem, ou o referente com a realidade existente na cultura, criando textualida­de. Contudo, a natureza não é só exuberante, “como interfere constantem­ente na cultura, criando uma cenogra ia para campos e cidades” (Alves, 2015, p. 160). Aqui, a textualida­de estabelece uma relação com a sociedade. A inal, os textos circulam dentro de uma comunidade, e inequivoca­mente devem apresentar a vivência dos membros comunitári­os.

Para a questão particular da cultura, Segre (1999, p. 23) a irma:

os signi icados textuais abandonam a sua potenciali­dade, tornam-se signi icados em acção, apenas durante e graças à leitura... o leitor ritualiza signi icados já parcialmen­te entrados na cultura, e na sua cultura, através de leituras anteriores”. Para este caso concreto, estamos diante de um circuito funcional, onde o emissor, que é o escritor, procura traduzir os signi icados em imagens literárias. Da mesma maneira, o leitor, que é o consumidor, capta os mesmos signi icados, de acordo com o nível de conhecimen­to adquirido a partir da cultura.

Mas há casos em que o leitor não pertence a este espaço cultural, às vezes não domina os códigos de comunicaçã­o, no caso de um leigo e de “uma criança, ainda que pertençam a este espaço cultural porque não dominam este sistema de comunicaçã­o; olham para a peça como um simples cenário de ilustração” (Paxe, 2009, p. 51). As realidades culturais que o conto traz começam a revelar-se logo no início: “Esfregava os dentes com moinha de carvão com sal” (2014, p. 9). Neste caso, os fragmentos reduzidos a pó de madeira ou lenha servem como pepsodente para esfregar nos dentes, uma prática cultural nas áreas rurais.

Mais adiante, encontramo­s a expressão: “Vou cubar! Vejam lá, não se queixem depois...” (2014, p. 12). Cubar vem de kuba, praguejar, enfeitiçar. Geralmente, nas comunidade­s, uma prática habitual entre alguns povos no país, quando num assunto ou con lito não se encontre resolução, geralmente, há quem utilize outros caminhos para a devida justiça. E a praga é uma das vias utilizadas, demonstran­do-se como uma prática cultural. E para concretiza­r o plano de “cubamento”, a Donana desloca-se às terras do Ambriz à procura de um quimbanda: “Venho ter com os anciãos e antepassad­os. Quero que mandes os jimbambi a quem achou um dinheiro que perdi” (2014, p. 15). Neste caso, jimbambi representa­m espíritos sobrenatur­ais, com poder decisório sobre qualquer problema. E é neles que Donana con ia a sua prece, mas sob o aviso do kimbanda que agisse com cautela, pois o poder dos jimbambi era determinan­te.

Tempos depois, a resposta não tardou, os óbitos começaram a ser uma realidade, começando pela Mussoco que tinha apanhado o dinheiro, a própria dona de dinheiro, por não ter cumprido com a prescrição do kimbanda, e iam morrendo um por um; inalmente a praga tinha tomado conta dos habitantes. Esta realidade era ignorada pelo ocidente que não acreditava nas forças sobrenatur­ais, como a irma Padilha (2011, p. 118):

o leitor atento encontra uma clara oposição entre uma lógica branco-ocidental e uma outra negro-africana que, aliás, prevalece no texto. Assim, se as mortes são atribuídas, pelos médicos, a uma “epidemia”, os quimbandas as consideram resultante­s de “um bruxedo de execrações que entrara em casa.

Portanto, a natureza e cultura circulam nos textos literários, dandonos a noção sobre como certas realidades se interligam aos elementos sociais e a toda a vivência dos membros. Identifica­mo- los a partir de diversos aspectos e formas textuais. Óscar Ribas cria um cosmo linear, procurando inventaria­r a beleza natural e cultural de África, de forma geral, e de Angola, de forma particular, tendo como suporte o texto literário. Quando falamos sobre a natureza e cultura buscamos dois elementos com um suporte basilar na construção de normas e matrizes a nível das comunidade­s. A partir de novas formas de tecnologia, a sociedade pode aproveitar incluir elementos textuais que traduzam a cultura. Ela, a cultura, não é con inada para um ângulo particular, como se pensa, pelo contrário, está presente em todas as manifestaç­ões sociais. Dentro do texto literário, a cultura e natureza circulam, estabelece­ndo uma paridade com a sociedade, onde o texto é produzido. Cada efeito material vai-se emigrando nos diferentes suportes. Entretanto, a natureza, cultura e textualida­de interligam-se, dando a sua visibilida­de na sociedade, como espaço ísico onde o homem é o herói.

Óscar Ribas consegue atravessar as suas limitações e penetrar no cosmo, buscando a imagem real que re lecte a maneira do negro angolano. Com uma linguagem típica de conhecedor das letras, o autor critica, educa e ironiza, com o propósito de despertar o leitor.

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