AS NOSSAS TRADIÇÕES VIERAM NAS CARAVELAS?
Os nossos Valores são construídos, alicerçados nas nossas Tradições ou nas Tradições dos Outros? A saudação à chegada de gémeos, contada por Óscar Ribas, é feitiço ou um ritual religioso?
Em a Cultura nº 151, Eugénia Kossi revisita uma prática ancestral sobre dirimir con litos entre os akongo repondo o diálogo em linha com as mais antigas tradições bantu. O tema deste texto de Kossi questiona a justeza do con lito que põe em campos opostos o modernismo e a tradição. Este tema é recorrente nas páginas desta nossa revista e permito-me citar alguns números mais recentes para vê-lo ser abordado das maneiras mais diversas: No nº 137, pp 11-12, em entrevista de José Rivair Macedo dada a Paulo Henrique Pompameier da Cult, a propósito do Pensamento Africano no séc. XX somos alertados para as reservas com que devemos olhar o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre África pois ele é marcado pela predação; no nº 142, pp 3-6, Victor Chongolola num texto sobre multiculturalidade levanta a questão da descon iança da cultura dominante em relação às culturas das minorias que de certo modo edita, dum modo travestido, o con lito referido por Kossi; No nº 148, pp 4-6, Fátima Viegas discorre, num texto intitulado A Intolerância Religiosa Enquanto Processo de Destruição do Outro, remetendo-nos para vários momentos do pensamento Ocidental começando pela Carta Acerca da Tolerância de Jonh Locke de 1689. Não me parece que o pensamento europeu teve uma epifania e “inventou” a Tolerância. Acontece que a expansão do Ocidente no séc. XVI, sécu-lo dominado pela problemática do Encontro, do Contacto e da Comunicação, começou a ter de reconsiderar as ideias fabulosas que tinha do Outro, e o Humanismo, revigorado pelo Renascimento, deu voz a uma classe mercantil empreendedora que se não contentava com as fantasias delirantes dum mundo temeroso do desconhecido proposto pela inteligentsia Medieval. O pensamento Ociden-tal começou a olhar para o Outro sem as lentes destorcidas da superioridade nem os preconceitos do exotismo o que justi icou e continua a justi icar a reciclagem de conceitos alicerçados em “divinas verdades absolutas”.
Mas voltando mais directamente ao tema abordado pela Kossi sou levado a esta pergunta: o que fazer às nossas tradições? Ou melhor, as nossas tradições servem para alguma coisa ou são simples matéria de museu? Neste nosso mundo mais pobre após o passamento da voz autorizada e serena de Souindoula seremos su icientemente avisados para pegar nesta bandeira?
AS TRADIÇÕES, QUE TRADIÇÕES?
Quando oiço falar de resgate de valores ocorrem-me duas coisas, por um lado, que valores e por outro, as seguintes palavras de Kizerbo: «A menos que optássemos pela inconsciência e pela aliena-ção, não poderíamos viver sem memória ou com a memória do outro» (KI-ZERBO; 2010, p XXIII).
Juntando as duas coisas perguntome então:
1. Os nossos valores são construídos, alicerçados, nas nossas tradições ou nas tradições dos outros?
2. Foram as caravelas que nos trouxeram as nossas tradições?
Acho que a resposta a estas duas questões será um exercício interessante e propiciador de muito contraditório fecundo numa altura em que o paradigma do interrelacionamento das nações mudou, hoje é impensável pensar em desenvolvimento sem pen- sar em desenvolvimento sustentável cuja permissa é a participação das comunidades sendo elas próprias e não aquilo que os peritos interna-cionais (os MIT, os consultores) esperam que elas sejam, isto é, as comunidades africanas têm de querer ser africanas e não uma imitação dum modelo «politicamente correcto».
Para começar, talvez desfazer um equívoco que, ao ler o que está atrás, me parece poder surgir com a palavra desenvolvimento. Desfazer não digo mas questionar para que não haja equívocos:
«O que é que falar de tradições tem a ver com desenvolvimento?»
«E porque é que tradição tem de ser visto como imobilismo?»
«Será que há alguma impossibilidade da tradição se adaptar aos desa ios que a modernidade põe a cada momento?»
MAS FALEMOS MAIS CONCRETAMENTE DA TRADIÇÃO PRÁTICA
O texto da Kossi, a que já iz referência, trouxe-me à lembrança um episódio a que assisti há dias numa das mbala do Municípo da Quilenda e que nada de extraordinário tem, porque comum, mas que de repente ganha uma signi icativa importância.
Aquilo a que assisti foi o exercício milenar da democracia participativa perfeitamente vulgar e comum nas comunidades que resolvem os seus con litos à luz da Tradição. Foi assim: Numa determinda mbala (que não vou identi icar, como é óbvio) o Soba tem andado muito atarefado a tratar dos seus negócios descurando os seus concidadãos. Acontece que os seus ilhos (o povo da comunidade de que ele é soba) quando têm problemas cuja resolução faz parte da competência do Soba raras vezes o encontram, anda a tratar dos seus negócios.
Fartos desta situação colocaram o caso ao Soba Grande, Soba da Mbanza.
Num destes ins de semana assisti ao julgamento do caso.
No sábado, desde as primeiras horas da manhã o povo reuniu-se à volta da mesa presidida pelo Soba Grande com os seus conselheiros. Homens dum lado, mulheres de outro e crianças por lá também andavam.
Durante todo o dia foram apresentadas as razões que fundamentavam a necessidade da intervenção do Soba Grande para ser reposta a ordem julgada subvertida pelo comportamento, tido como irregu-lar, do Soba.
Depois de todos os interessados terem falado o Soba Grande deu a palavra ao Soba cujo comporta-mento estava a ser avaliado.
Como ele estava ausente aguardouse até ao im do dia.
No im do dia o julgamento acabou sem a defesa do próprio pelo que o Soba Grande transferiu a decisão para depois de ouvir o que o mesmo teria a dizer em sua defesa.
Já voltei à dita mbala que também já tem um novo Soba pois o outro foi destituído por não satisfazer as necessidades dos seus ilhos e as razões que terá invocado não procederem.
A TRADIÇÃO É TEMA DE FICÇÃO LITERÁRIA OU FONTE DE VALORES?
A prática da literatura escrita africana é inalística, isto é, é uma literatu-