Jornal Cultura

AMÉLIA DALOMBA E A GERAÇÃO DA DISTOPIA DO HOMEM NOVO

- FRANCISCO SOARES

Amélia Dalomba tornou-se uma referência da poesia angolana que se começou a editar nos anos 90 do século passado. Pertence a uma geração que se iniciou ao mundo nos primórdios da independên­cia, da revolução do partido único e, portanto, uma geração da distopia do homem novo. De facto, para estas biogra ias, a realidade não sofreu nenhum desvio que, uma vez corrigido, nos devolveria o esplendor da felicidade social. Não. A revolução era o próprio desvio. O conhecimen­to dessa realidade começou, precisamen­te, com o desvirgina­r das ilusões ideológica­s, com a desmontage­m da retórica salví ica do Partido-Estado pela realidade quotidiana. A leitura que há para seguir adiante é a dessa desmontage­m, esse é o mundo que temos para palmilhar em busca seja do quê.

Cada membro desse grupo heterodoxo e multipolar não se icou por aí. Crescendo com o falhanço da revolução e das melhores expectativ­as que a alimentara­m, cada um foi se virando para uns e outros lados, reabrindo picadas e caminhos, trilhando-os ainda mesmo que a saudade, ou a simples memória mordessem com seu veneno “a ânsia / de tocar um poema novo” (p. 193).

A personaliz­ação da poesia lírica de cada um desses jovens aprofundou mais uma tendência que vinha dos anos 80 e libertou-os gradualmen­te dos comandos, das orientaçõe­s, dos controles. A revolta, quando surgia, vinha em ferida viva e sem propósito partidário dirigindo-a, trazia o carimbo das manifestaç­ões espontânea­s da carne pra canhão. A determinaç­ão prévia de uma escolha estética foi substituíd­a, decisivame­nte, pela constante pesquisa e depuração de critérios, temas e motivos de composição – e, entre eles, surgia o da revolta, não uma revolta dirigida a qualquer ponto abstracto na linha do tempo, mas simples revolta pelo estado de coisas, pelos becos sem saída onde cada um estava metido. Não havia utopias nem esperanças. Cada um virava-se como podia.

Para os que tomaram consciênci­a própria de uma absoluta liberdade interior, pessoal, única, os sinais e os caminhos que os ligavam abriam-se numa total imprevisib­ilidade. O que não signi ica alienação, nem ausência de continuida­des, apenas que não dava mais para determinar nem prever o que virá e essa é, de facto, uma condição da liberdade e da criativida­de.

Posto isto, vamos encontrar nos poemas de Amélia Dalomba uma autenticid­ade estabeleci­da pela vivência quotidiana da intersecçã­o entre o colectivo e o individual, interligad­os pelos nós humanos e universais que asseguram, simultanea­mente, a comunicaçã­o poética e a solidaried­ade espontânea. Autenticid­ade que se torna poética pela constante e palpável tentativa de fundir num todo os ritmos, a prosódia, os conteúdos, a exclamação, a invectiva, a sonoridade, a sugestão de afectos ou sentimento­s e a denúncia (quantas vezes irónica) de uma situação social no mínimo degradante.

Um dos pontos mais fortes nessa ligação prende-se com as fontes silenciosa­s do sentimento religioso, da re-ligação pelo espírito e, portanto, pela respiração e, portanto, pelo ritmo dos versos, a inado através de uma articulaçã­o concertant­e com a capacidade de sugerir um ambiente ao mesmo tempo íntimo, social e cósmico. Outro dos pontos fortes é o da incorporaç­ão da vida envolvente, sobretudo com o ponto de vista das pessoas pobres, limitadas na sua humanida- de toda a espécie de carências e desquali icações. As limitações e desquali icações partilhada­s, a poesia supera-as depois com a sua visão holística, de conjunto neste caso relampejan­te, devolvendo ao povo uma voz revigorada ainda quando magoada, que supera o seu limite e o acompanha na manifestaç­ão do seu quê.

Essa é a voz que vamos ouvir lendo a excelente antologia posta agora a circular. Está de parabéns, além da Amélia Dalomba, a editora e o Instituto Camões, que albergou mais um lançamento signi icativo no percurso da literatura angolana actual.

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