AMÉLIA DALOMBA E A GERAÇÃO DA DISTOPIA DO HOMEM NOVO
Amélia Dalomba tornou-se uma referência da poesia angolana que se começou a editar nos anos 90 do século passado. Pertence a uma geração que se iniciou ao mundo nos primórdios da independência, da revolução do partido único e, portanto, uma geração da distopia do homem novo. De facto, para estas biogra ias, a realidade não sofreu nenhum desvio que, uma vez corrigido, nos devolveria o esplendor da felicidade social. Não. A revolução era o próprio desvio. O conhecimento dessa realidade começou, precisamente, com o desvirginar das ilusões ideológicas, com a desmontagem da retórica salví ica do Partido-Estado pela realidade quotidiana. A leitura que há para seguir adiante é a dessa desmontagem, esse é o mundo que temos para palmilhar em busca seja do quê.
Cada membro desse grupo heterodoxo e multipolar não se icou por aí. Crescendo com o falhanço da revolução e das melhores expectativas que a alimentaram, cada um foi se virando para uns e outros lados, reabrindo picadas e caminhos, trilhando-os ainda mesmo que a saudade, ou a simples memória mordessem com seu veneno “a ânsia / de tocar um poema novo” (p. 193).
A personalização da poesia lírica de cada um desses jovens aprofundou mais uma tendência que vinha dos anos 80 e libertou-os gradualmente dos comandos, das orientações, dos controles. A revolta, quando surgia, vinha em ferida viva e sem propósito partidário dirigindo-a, trazia o carimbo das manifestações espontâneas da carne pra canhão. A determinação prévia de uma escolha estética foi substituída, decisivamente, pela constante pesquisa e depuração de critérios, temas e motivos de composição – e, entre eles, surgia o da revolta, não uma revolta dirigida a qualquer ponto abstracto na linha do tempo, mas simples revolta pelo estado de coisas, pelos becos sem saída onde cada um estava metido. Não havia utopias nem esperanças. Cada um virava-se como podia.
Para os que tomaram consciência própria de uma absoluta liberdade interior, pessoal, única, os sinais e os caminhos que os ligavam abriam-se numa total imprevisibilidade. O que não signi ica alienação, nem ausência de continuidades, apenas que não dava mais para determinar nem prever o que virá e essa é, de facto, uma condição da liberdade e da criatividade.
Posto isto, vamos encontrar nos poemas de Amélia Dalomba uma autenticidade estabelecida pela vivência quotidiana da intersecção entre o colectivo e o individual, interligados pelos nós humanos e universais que asseguram, simultaneamente, a comunicação poética e a solidariedade espontânea. Autenticidade que se torna poética pela constante e palpável tentativa de fundir num todo os ritmos, a prosódia, os conteúdos, a exclamação, a invectiva, a sonoridade, a sugestão de afectos ou sentimentos e a denúncia (quantas vezes irónica) de uma situação social no mínimo degradante.
Um dos pontos mais fortes nessa ligação prende-se com as fontes silenciosas do sentimento religioso, da re-ligação pelo espírito e, portanto, pela respiração e, portanto, pelo ritmo dos versos, a inado através de uma articulação concertante com a capacidade de sugerir um ambiente ao mesmo tempo íntimo, social e cósmico. Outro dos pontos fortes é o da incorporação da vida envolvente, sobretudo com o ponto de vista das pessoas pobres, limitadas na sua humanida- de toda a espécie de carências e desquali icações. As limitações e desquali icações partilhadas, a poesia supera-as depois com a sua visão holística, de conjunto neste caso relampejante, devolvendo ao povo uma voz revigorada ainda quando magoada, que supera o seu limite e o acompanha na manifestação do seu quê.
Essa é a voz que vamos ouvir lendo a excelente antologia posta agora a circular. Está de parabéns, além da Amélia Dalomba, a editora e o Instituto Camões, que albergou mais um lançamento signi icativo no percurso da literatura angolana actual.