A CRIANÇA BRANCA DE FANON DE ALBERTO OLIVEIRA PINTO
endémica de água e de luz, um sistema de saúde de icitário, etc. – não ouviu nos meios urbanos angolanos, e mesmo nos musseques de Luanda, vozes amargas, expressando saudades “do tempo da outra senhora”, ou seja do colonialismo? E este tipo de propósitos surgia frequentemente nos meios populares, africanos, menos suspeitos de terem alguma razão objectiva para sentir saudades de tempos idos, em que, como Negros, eram tratados como a escuma da sociedade.
É verdade que a questão dos “retornados” portugueses não atinge a dimensão que a questão dos “Pieds noirs” franceses tem assumido na vida política francesa, ainda hoje. Mas à escala portuguesa, não deixou de constituir um conjunto de múltiplos choques, tanto identitários como socioeconómicos, entre esses dois mundos da mesma nação portuguesa. Do choque identitário, o autor já tinha feito experiência ainda de menino, de regresso a Lisboa, ainda por cima numa altura em que ele começava a entusiasmar-se com a sua “portugalidade”: os meninos da sua escola trataram-no, literalmente, de “Branco de segunda”.
Para o jovem Alberto Oliveira Pinto, é, sem dúvida, um momento de perturbação identitária. A inal, a sua “brancura” (ele, ilho de dois brancos), que nunca se sentira interpelada na sua terra natal – a colónia de Angola – estava a ser posta em causa. Por outras palavras, todo o discurso identitário que ele ouvira acerca dos “Pretos”, como sendo “o outro inferior”, estava a ser-lhe aplicado, e por gente branca como ele próprio...
Sobre os “lugares de memória” da narrativa do Alberto Oliveira Pinto
Os lugares de memória não se situam apenas nos lugares ísicos, nos monumentos. O notável neste texto é, com efeito, o lugar intermédio ocupado por outras memórias: as dos escritores, quer ligados à história do império colonial lusitano, quer ao nacionalismo angolano genericamente falando, ou a de memórias literárias e intelectuais da luta armada anticolonial. Através dessas memórias intermédias, o autor procura com efeito situar o seu próprio percurso, “recapturar” aquilo que, quer a infância, quer a ausência, não lhe permitiram nem testemunhar nem entender. E há os lugares de vivência/convivência, de residência, de sociabilidade, e de aventura semanal fora do aconchego da residência familiar. Desta última categoria, reteve a minha atenção as idas ao mercado com a avó. O lugar deste “aventura” semanal: o mercado Kinaxixi.
“Que negros via eu no Kinaxixi, quando lá ia à quinta-feira com a minha avó? Muito poucos. Além dos criados e criadas – lembremos que a maioria dos colonos tinha criados negros, mais baratos do que os brancos – que acompanhavam as patroas carregando os sacos com as compras, viam-se à porta umas escassas quitandeiras tentando vender a fruta que exibiam nas quindas, mas cujos pregões silenciavam com frequência, sempre que a polícia chegava e lhes dava berrida. Havia ainda um jovem de uns catorze ou quinze anos, vítima de poliomielite, que se arrastava por entre as bancas do peixe ou das hortaliças, pedindo esmola aos clientes e alimentando-se das sobras das mercadorias da véspera”.
Dos meus longos anos de vida luandense, Kinaxixi era um dos lugares para compras diversas, como o pão, numa das duas padarias que lá tinham aberto. E, claro, o primeiro andar onde a circulação entre as “kitandas” era sempre um momento de tensão, entre aquilo que o bolso continha naquela do mês, e o preçário dos produtos. Ora, para alguém, como eu, que não fez a experiência da Luanda colonial, a ideia de um mercado do Kinaxixi onde os Negros eram quase que ausentes – a tentarem fazer-se presentes em situação de precariedade, como vendedores ambulantes, em permanente angustia, à espera do berro do agente de policia colonial –, é deveras chocante, à primeira vista. Mas quem não assistiu, anos depois da independência, no dia-a-dia luandense, às mesmas cenas de kínguilas? E com meninos de rua e pequenos vendedores ambulantes tentando sua sorte, vendendo o que podiam, atentos à iminência de mais uma das inúmeras rusgas dos agentes iscais, ou da polícia económica?... Agora, no pós-independência, a questão já não se joga entre colonos e colonizados, entre Brancos, donos ilegítimos dos espaço ocupado, e Negros, donos históricos da terra. E o mercado de Kinaxixi, um dos lugares de notória discriminação racial no tempo colonial, também tinha mudado de atores, ao mesmo tempo que re letia, pelos produtos que lá se vendia (antes da sua destruição para um mega projeto de espaço comercial moderno), as diversas carências do dia-a-dia urbano, como a falta crónica de luz, que justi ica o boom do comércio de geradores:
Reentrei então no mercado do Kinaxixi, pela primeira vez sem a minha avó. De facto, o aspecto era desolador. Do antigo mercado do peixe já só restava