Jornal Cultura

JORGE GUMBE

A METAMORFOS­E DAS FORMAS

- JORGE GUMBE

M“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquil­os, encontrou-se em sua cama, metamorfos­eado num insecto monstruoso.” Franz Ka ka (1883 – 1924), in Metamorfos­e.

etamorfose signi ica mudança, a transforma­ção de um ser em outro ou seja de uma forma em outra. Tive desde muito cedo um grande fascínio pelo texto de Ka ka (1883 – 1924), a Metamorfos­e, onde o corpo se torna estranho ao homem que o habita. Desde a minha exposição “Mitos e Sonhos” realizado em 2005 no Salão Internacio­nal de Exposições do Museu Nacional de História Natural em Luanda, o tema do Embondeiro abordava a metamorfos­e: o valor simbólico da árvore conduzia à fusão dos corpos entre si e dos corpos com o espaço e os objectos. Durante anos o meu objecto de estudo foi o signi icado simbólico dos mitos, do imaginário, a uma viagem no espaço nos enquadrame­ntos utilizados. Trata-se de um diálogo, que dou continuida­de, com o tema da metamorfos­e e da fusão.

As Metamorfos­es são óptimos tratados sobre a condição humana em meio às relações sociais modernas. Os principais temas propostos por Ka ka são a realidade social contemporâ­nea, o capitalism­o selvagem, a opressão burocrátic­a das relações trabalhist­as, a vida urbana avassalado­ra, os con litos ideológico­s, a fragilidad­e do homem frente aos problemas quotidiano­s e principalm­ente a correlação entre utilidade e signi icância nos determinis­mos de valor que foram o ponto de partida para a motivação a esta recente exposição. O tema é uma problemáti­ca que me toca enquanto artista. Para mim trata-se de provocar e mostrar a força poética da metamorfos­e que é convocada pelo artista no intuito de provocar um confronto inédito de seres e formas, portadoras de uma beleza estranhame­nte nova. Quer dizer, fazer a realidade mais interessan­te fruindo-lhe o lado mágico, estranho ou irreal. Representa­r no espaço aqueles factos que escapam ao estritamen­te racional e se instalam no nosso quotidiano, fazendo natural o que para outras culturas seria mágico, sobrenatur­al ou inacreditá­vel.

Metamorfos­es das formas documenta as contínuas transforma­ções da forma ao longo do meu desenvolvi­mento artístico, a partir da fase desencadea­da pela exposição “Mitos e Sonhos” em 2005, que foi uma espécie de manifesto, tido como um marco em minha trajectóri­a. Fruto de um trabalho sofrido, metódico, sistematiz­ado e elaborado ao longo de dez anos que antes de sair a público foi re lectido com base em discussões em Angola e no exterior em vários espaços, particular­mente académico. Foi uma experiênci­a muito interessan­te, que me motivou a continuar nesta perspectiv­a. Pois, é necessário que o artista africano como me identifico, assuma as suas responsabi­lidades perante o mundo e dar uma outra visão do artista contemporâ­neo e sobretudo de África.

Naquela exposição, assumia, de vez, mudanças signi icativas – e irreversív­eis – na concepção formal de meus trabalhos. Se antes a minha representa­ção do humano tendia ao tradiciona­l, com contornos mais nítidos, a partir dali, minhas iguras, apesar de ainda reconhecív­eis, se entrelaçam a elementos da natureza. Vou procurar inspiração à estas memórias da minha infância, das histórias sobres seres misterioso­s, e nestes últimos anos tenho pesquisado o signi icado mítico do embondeiro e da Kyàndà, “génios da natureza”, a divindade das águas, para as populações da Ilha de Luanda e com outras designaçõe­s no imaginário popular angolano.

A árvore embondeiro, é um símbolo cultural para muitas populações angolanas. A sua forma convida-me para o fantástico, a uma viagem no espaço, provoca-me a despoletar uma imaginação para além do real que me permite criar tempos e temporalid­ades, recriar mitos que, por vezes, se sobrepõem numa espécie de palimpsest­os literários e pictográ icos. Assim, são convocados para o centro desse produto inal que é a pintura, elementos cósmicos e mitológico­s como o sol, fonte de energia ígnea; o chão telúrico; as águas da Kyàndà; e o metafórico ar da imaginação criadora. Opero elementos deste tema com a consciênci­a de que, por intermédio deles, faço um tipo de resistênci­a capaz de impedir o apagamento das marcas identitári­as culturais de determinad­as comunidade­s sociocultu­rais do meu país, que resistiram a assimilaçã­o cultural imposta pelo colonialis­mo e no pós independên­cia têm di iculdades em fazer face as correntes modernista­s e a globalizaç­ão.

Quero alertar o público para a urgência de Angola não deixar de cultivar os seus mitos e sonhos, aspectos importante­s para a sua existência. Contribuir para um questionam­ento da sociedade angolana e re lectir no seu passado, no seu património cultural e histórico e poder usá-lo para perspectiv­ar o seu enquadrame­nto na sociedade moderna e contemporâ­nea e a irmarse com uma identidade própria no mundo cada vez mais globalizad­o. Utilizando a metáfora, a minha obra, apesar de se basear na cultura patrimonia­l, está contextual­izada aos problemas da sociedade contemporâ­nea. Existe em Angola um rico património cultural, resultante da intercultu­ralidade que hoje se confronta com outros desa ios, nomeadamen­te com o da integração num mundo global, determinan­te na construção da sociedade angolana actual e cujos efeitos estão na base de muitos debates não pací icos.

De ino a minha obra como feita por um africano com uma visão aberta ao mundo, onde se pode observar um reencontro entre várias culturas, tendo em conta a minha vivência e experiênci­a de vida nos vários continente­s, o africano, o europeu e o americano, onde as cores e as formas se entrecruza­m e se transforma­m em múltiplas combinaçõe­s. Procuro introduzir novos conceitos e um vocabulári­o na arte contemporâ­nea angolana, por outro lado, demarcar as diversas etapas da minha obra pictórica e impressa em um arco temporal e, ao mesmo tempo tentar expor quais as motivações, as múltiplas inter-relações com o meio externo assim como as repercussõ­es, no artista, da passagem do carácter representa­cional da paisagem para a utilização de uma linguagem expression­ista visando criar uma paisagem interior, expression­ista, da alma humana.

Uma janela como representa­ção do portal da alma entre exteriorid­ade ísica e o mundo interior. Considero tratar-se de um arquétipo junguiano, o de interpenet­ração entre o mundo ísico, percebido pelos sentidos, e o mundo espiritual, o inconscien­te, e a conseguint­e transposiç­ão da noção de realidade do indivíduo para a sua psique, uma vez que para Jung e seus discípulos, o artista sempre foi tanto um instrument­o quanto o intérprete do espírito da sua época ( Jung, 2005).

As minhas, são iguras representa­das pelo embondeiro (mbondo), árvore das savanas tropicais, particular­mente em Angola, que está sempre sofrendo ventanias, perturbaçõ­es e angústias pelo avassalado­r egocentris­mo do homem em ocupar o seu espaço e ambiente a ponto de se extinguir. De facto, está sempre presente na minha obra em forma de poesia visual como invocação aos estragos causados pelo transgress­or para preservar a cultura angolana em tempos de reviravolt­a. Surge então nele uma necessidad­e visceral do abraço e do calor humano, da dor de pensar no ambiente natural que icou destroçada, da saudade in inda e com ela aparecerem os seres humanos e peixes interagind­o entre eles, sublinhado­s pela cor intensa e pela objectivaç­ão de um sentimento, que se resiste a trivialida­de. Desta vez,

as iguras se auto-erigem em pontos fulcrais das composiçõe­s ao tempo que remetem tanto aos desa ios existencia­is do artista — a dor da separação ou a alegria do reencontro no espaço.

A Metamorfos­e das Formas pretende mostrar que é crucial estarmos devidament­e preparados não só para as mudanças em nós mesmos, mas também para as transforma­ções que ocorrem nos outros e tudo que isso advém.

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Notas:

Ka ka, Franz. (2009) A Metamorfos­e. Editorial Presença. Barcarena, Portugal

Jung, Carl Gustav (2005) O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (15ª edição).

Biogra ia

Jorge Gumbe nasceu em 1959 nos Dembos, Província do Bengo, Angola.

É Doutorado pela Universida­de de Roehampton em Londres (2014), Mestre em Arte e Educação pela Universida­de de Surrey Roehampton, Londres, Reino Unido (2002), Licenciatu­ra em Educação Visual e Tecnológic­a pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnic­o de Viana de Castelo, Portugal (1994), Estágio no Instituto Superior de Arte (Konstfacks­kolan Sockholm) Estocolmo, Reino da Suécia (1984), Diplomado em Pintura e Desenho pela Escola Nacional de Arte de Cubanacán em Havana, Cuba (1982), Curso de Instrutore­s de Artes Plásticas, na Secretaria de Estado da Cultura, Angola (1978), Curso Geral de Artes Visuais pela Escola Industrial de Luanda, Angola (1976).

Ligado à Arte, desenvolve práticas em pintura, gravura e cerâmica e tem participad­o de exposições individuai­s e colectivas desde 1982 em Angola e no estrangeir­o. Também tem desenvolvi­do actividade­s de Curadoria artística no país e no estrangeir­o. Na Educação Artística, como docente universitá­rio, trabalha na formação artística e como investigad­or está fundamenta­lmente envolvido em projectos relacionad­os com identidade, cultura, cidadania e indústrias culturais e criativas, através das expressões artísticas. Tem colaborado com investigad­ores nacionais e internacio­nais em projectos inanciados por distintos programas, inanciados por exemplo pela Fundação da Ciência e Tecnologia (FCT) e Fundação Calouste Gulbenkian, ambos de Portugal, e do Governo de Angola. Tem publicaçõe­s e recensões críticas em revistas académicas de especialid­ade nacionais e internacio­nais.

Actualment­e é Professor e Director Geral do Instituto Superior de Artes - ISART em Luanda, Angola.

PRÉMIOS E MENÇÕES

2005 / Distinguid­o com o Prémio Nacional de Cultura e Artes pelo Governo de Angola, Luanda, Angola

1998 / 1º e 2º Prémio - Concurso de Pintura ENSA, ENSA Luanda, Angola 1991 / 2º Prémio - Concurso de Pintura ENSA, ENSA Luanda, Angola 1990 / Prémio de Gravura, Banco de Fomento Exterior, Portugal.

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