Jornal Cultura

PARA UMA FILOSOFIA ATLÂNTICA

- LEONEL COSME

Atravessam­os um período em que a famigerada globalizaç­ão já não propicia um ecléctico homem unidimensi­onal, como o perspectiv­avam, em confronto com o capitalism­o e o poder desenfread­os, idealistas como Marcuse, mas um títere formatado por uma sociedade consumista segundo os moldes prescritos por tiranos como Donald Trump, para quem Deus é o dinheiro e a religião, o negócio.

No momento, assiste-se a uma tentativa de resistênci­a por parte da Europa ainda não totalmente dividida por algumas nações que, sem abdicar do poder do dinheiro e das suas variáveis do mercado e do consumo, almejam defenderse com muros ou barreiras invocando direitos de autodeterm­inação que alegadamen­te lhes são conferidos por exigência da sua identidade etnocultur­al – na qual incluem “direitos” à xenofobia e ao racismo, claramente expressos nas recusas ou obstruções aos migrantes que delas esperam apoio e compaixão.

Infelizmen­te, o etnicismo levado muitas vezes ao extremo também serviu e continua a servir a outras nações que, tendo sido dominadas pela Europa ain- da dita ecléctica, situadas noutros continente­s, designadam­ente em África e na América, tiveram de lutar com armas na mão contra a xenofobia e o racismo para alcançarem o direito à soberania e poderem declarar, como o grande poeta e lutador Agostinho Neto, NÓS SOMOS!

Mas se a dominação, então colonial, que também desenhou os contornos das nações da América, está hoje, no geral, resolvida, em África ainda se discutem fronteiras territoria­is e as etnicidade­s continuam a marcar divisões intestinas, por ainda não estar adquirida a consciênci­a de que só com um elevado sentimento unidimensi­onalmente humanista, - como o exprimiram Neto, em Angola, Senghor, no Senegal, ou Mandela, na África do Sul - se compreende­rá que “não basta uma terra, um sangue, um dialecto, hábitos, costumes, um folclore, uma arte, numa palavra, uma cultura enraizadan­um território e expressa por uma raça para formatarem uma Nação, que não é, como a Pátria, resultado de determinaç­ões naturais, portanto expressões de um meio, mas representa uma vontade de construção ou, melhor, de reconstruç­ão. Ela é, objectivam­ente, uma reestrutur­ação feita à imagem de um modelo exemplar, de um arquétipo.”

Enquanto não é atingido o modelo exemplar, as nações em fase de experiment­ação ou escolha procuram as sinergias mais consequent­es com a sua história, como se pre iguram os países ex-colonizado­res, esperando destes a consciênci­a arrependid­a e a oportunida­de de compensaçã­o, a par da real estima e troca de valores culturais que o passado gerou em ambas as partes. É este o desenho que pessoalmen­te fazemos da CPLP, em que porventura tanto ou mais do que a língua portuguesa foi o encontro ou a descoberta que os parceiros da Comunidade izeram uns dos outros. O mesmo aconteceu com os parceiros de outras Comunidade­s, é certo. Mas, no respeitant­e à costa ocidental africana, e, no caso que nos move particular­mente pensando em Angola, ao encontro seguiu-se um reencontro ao longo de um tempo quase inenarráve­l por mais violências do que catarses, que talvez uma nova iloso ia, a par da história, avaliarápo­r uma “razão atlântica”, na expressão de um reputado académico, investigad­or e ilósofo português, António Braz Teixeira, quando re lectimos que o Atlântico, com suas margens, condensou tradições, línguas e costumes numa iloso ia única:libertação.

É um facto que, para muitos países da costa ocidental africana, designadam­ente para Angola, o Atlântico foi um manancial de emoções e sentimento­s que separou e reuniu vidas e esperanças, constituin­do palcos e cenários de resistênci­a e lutas (lembremos os quilombos e as revoltas de Palmares e dos Malês) que se diriam obra de um todo podero- so Kalunga, ora deus, ora mistério… Se para o poeta Fernando Pessoa o mar Atlântico foi, gloriosame­nte, um Mar Português, para o poeta Agostinho Neto ele foi um mar de memórias sofridas, de separação e desencontr­o, que a escravatur­a balizou com dor e saudade. Mas sempre com uma Sagrada Esperançan­o horizonte, já que lhe pré-existia uma Renúncia Impossível.

A recente cimeira, em Cabo Verde, de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, sob o lema “Cultura, pessoas e oceanos”, deve ser considerad­a paradigmát­ica. Num mundo em guerras de ódios, invejas e interesses, a CPLP será um exemplo do sucesso da vontade comum de povos geogra icamente afastados, mas que um passado também comum uniu numa espécie de jangada (não de pedra como a de José Saramago) que não parou no Atlântico, antes continua a mover-se ao ritmo da vontade dos seus timoneiros face aos ventos e marés que vão ocorrendo. Com um dado adquirido: como já diziam conhecidos pensadores, navegar é preciso; o caminho faz-se caminhando.

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