Jornal Cultura

O “PENSADOR” NA SOCIEDADE ANGOLANA

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Aestatueta cokwe com a designação de “Pensador”, em língua portuguesa, caracteriz­a-se pela grande qualidade, rigor e dedicação, atributos inegáveis na sua execução.

Por este facto, a mesma tem vindo a ser sujeito às mais variadas interpreta­ções, quer pelos artistas, quer pelos artesãos, quer pelos amantes da arte e, em particular, pela sociedade angolana.

A nível do órgão do Governo angolano que dita e orienta a política cultural do país, o “Pensador” foi adoptado como símbolo da Cultura Nacional, muito embora esta designação seja atribuída a obras artísticas, encontrada­s em muitas partes do mundo, como ilustrarem­os mais adiante.

Com esta designação, as esculturas angolanas são representa­das, geralmente, por um homem sentado, de pernas cruzadas, uma mão no quadril, o braço direitoou esquerdo apoiado sobre o joelho, com a mão fechada a nível de queixo, ou por um homem sentado com as pernas dobradas sobre as quais as duas mãos juntas seguram a cabeça, a qual se mantém numa posição inclinada.

O “Pensador” no Mundo

Em sentido genérico, a obra com a primeira designação de “Pensador” é atribuída à escultura intitulada “Penseur”, a qual e para uma melhor compreensã­o da mesma, citaremos um pequeno excerto do Dictionnai­reLarousse: “Penseur, (le) (IlPensiero­so)nome atribuído à principal igura do tombo de Lorenzo de Medici. Ela representa o DuqueLoren­zo, sentado e mergulhado numa meditação profunda. Esse tombo estáem Florença, Medici, na Igreja de SanLorenzo. É aí, onde se encontram os dois monumentos que, entre as obras primas de Miguel Ângelo, aparece a de Julien,Duque de Nemours, ilho de Lorenzo “o Magní ico” e o outro monumento é o de Lorenzo, Duque de Urbino, pai de Catarina de Medici. Ambos, apresentam-se sentados e Lorenzo na sua posição em meditação foi designado por “IlPensiero­so”.Em 1880,foi executada uma escultura em gesso, por AugusteRod­in, escultor francês (1840-1917), com o nome dePenseur representa­da por um homem nu, simbolizan­do a universali­dade do pensamento e da masculinid­ade, conexandoo exercício da mente àquele do corpo.

Rodin foi dominado por uma concepção particular da forma que o fez submeter todos os aspectos da obra a esculpir na procura dos “per is” expressivo­s, concebendo ser o exterior da mesma, a extremidad­e de um volume. A sua obra prima “lePenseur” é caracteriz­ada pelo génio dos movimentos audaciosos e insólitos que foram elaborados num permanente respeito pelo equilíbrio de massa.

A escultura original, feita por volta de 1880, medindo 71,5 cm de altura, foi exposta pela primeira vez em Copenhague em 1888. O primeiro casting de bronze foi concluído em 1902, colocado em frente ao Panteão, antes de ser transporta­do em 1922 para o hotel Biron ( Paris), transforma­do num museu, o de Rodin.

A História do “Pensador” em Angola

Em1932, no âmbito deuma missão cientí ica no Sul de Angola, visando a pesquisa de objectos da cultura material,uma equipa do Museu de Neuchâtel - Suíça integrada por ThéodorDel­achaux,observou uma igurinha no cesto de “adivinhaçã­o” [(Ngomboyaci­suka(de origem Cokwe)], a quem atribuíu o nome de “Penseur”, concedendo-lhe um carácter muito especí ico sobre a sua estilizaçã­o .

Foi nestas circunstân­cias que seencontro­u pela primeira vez uma escultura antropomór ica neste cesto de consulta, na regiãodo Kunene ,que traduzimos por “Pensador”. As informaçõe­s acerca do “Pensador”revelam as di iculdades encontrada­s pelos primeiros estudiosos na identi icação de bens culturais. Em 1936, J. Redinha, Director do Museu do Dundu, reco- lheuemSaco­mbo no Cingufo (Citatu) uma escultura que identi icou por KalambaKuk­u (escultura de velho em “meditação” abandonado pela família) . Observou que os “advinhador­es” usavam uma peça de forma idêntica a que dão o nome de “SáIchimo” (sic).

A denominaçã­o “Pensador” dimensiona- se e Mário Fontinha, funcionári­o do Museu da Companhia de Diamantes de Angola ( DIAMANG), utiliza o mesmo nome “Pensador” e designa a mesma escultura de Kuku ou Kalamba, chamando- lhe em ( língua portuguesa) “Adão-Pensador”(Antepassad­o- Pensador). No seu trabalho sobre Desenhos na Areia ,identifica-a nos desenhos de areia dos cokwe, sob a forma de uma figura semelhante à do cesto de “adivinhaçã­o” dos cokwe . O “Pensador” na sociedade Cokwe, reflecte a posição agachadada escultura- Kuku , as mãos postas na cabeça, apresentan­do a expressão de um ancião solitário, numa posição de profunda meditação, que é designado por Kuku, ( Bisavô, Trisavô, Tetravô, Pentavô,etc...).

Qual é a Origem do “Pensador”?

Várias razões concorrem para identi icar o “Pensador”, como a sua Morfologia, o Contexto Sóciocultu­ral, Religioso e Linguístic­o. É uma estatueta esculpida em madeira de Muhala de patine brilhante, que se apresenta numa posiçãorit­ualística. A con iguração manifesta a expressão de um ancião solitário em profunda meditação: a cabeça inclinada para a frente, remetendo o pescoço numa posição alongada, o tronco em forma cilíndrica regular, com uma linha de concavidad­e marcada nas costas.

O tronco alonga- se até ao nível do quadril onde ele toma a forma cónica. No que concerne à posição dos membros, os braços e os antebraços posicionam- se em forma de um “V” oblíquo, com as mãos apoiando a cabeça. Os membros superiores tomam uma posição agachada e pernas fechadas em ligeira concavidad­e. A estatueta é vulgarment­e designada por “Pensador”. Na sociedade cokwe, o “Pensador” Kuku encontrase noNgomboya­cisuka, ( cesto de “adivinhaçã­o”), sendo o cesto de consulta aos espíritos antepassad­osno seu contexto religioso.

O termo “Pensador” levanta um in indável número de problemas e confusões na sociedade angolana, e em particular, na cokwe. Partindo de uma análise linguístic­apara designar o Kuku, os Tucokwe não se reveêm na de- signação de “Pensador” da terra deNakabamb­a, NdumbaTemb­o eCisenge . Em relação ao “Pensador” Cokwe, parece ser o aspecto mais complexo, na medida em que se baseia no estudo linguístic­o e no contexto sócio – cultural, no qual está inserido o objecto. Além do termo Kuku, dever-se-ão ter em conta os termos: Sayiximo (admirador); Samayonga (meditador); Saxinginye­ka (alguém que pensa), sendo todos eles traduzidos erradament­e para “Pensador”.

Contudo, não existe no Ngombo um objecto designado por Samanyonga.O Kuku é designado por pensador por uma tradução literal e pela sua morfologia no cesto. É uma tradução recente de português paracokwe, isto é, meditar, pensar, pelo facto do Kukure lectir uma atitude meditativa.Delachaux (1932),por analogia com o“Pensador” de Rodin,atribuiu ao Kuku a designação de “Pensador”.

O“Pensador” no Mercado Nacional

A escultura do “Pensador” está presente em quase todo o país, inunda o mercado artesanal. Desde a sua classi icação a símbolo da Cultura Nacional, ela adquiriu um valor artístico imensuráve­l. Ela é reproduzid­a na maioria das o icinas e atrai a clientela turistíca. Assim, o “Pensador” deixa de ser uma produção do grupo etnolinguí­stico cokwe para ser considerad­o uma produção artesanal nacional.

Na Ilha de Luanda é frequente a reprodução­de uma quantidade enorme da escultura “Pensador”, porartesão­s de Kabinda, Zaire, cujo centro de produção está localizado no Soyo. Centro idêntico encontra-se noWambo e na Wíla. Como produto artesanal, os artesãos executam a sua versão em torno da origem do “Pensador”, chegando mesmo a criar uma história popular do “Pensador”.

É o caso de uma das versões fornecidas­por algunsarte­sãos das feiras deartesana­to de Luanda, referindo-se ao“Pensador” como um chefe tradiciona­l desgraçado:

“Numa das aldeias da Lunda-Norte, um Soba (autoridade tradiciona­l) tinha recebido uma visita estrangeir­a. Tratava-se de um engenheiro vindo de Portugal à procura de riqueza. Sabendo que a região era rica em diamantes, o engenheiro contactou o soba na tentativa de o aliciar com bens alimentare­s de modo a apropriar-se de vastos terrenos para explorar diamantes. O Soba cedeu a propriedad­e sem o acordo da sua comunidade e o engenheiro com a sua equipe extraíram toda a área

diamantífe­ra. No inal do trabalho, com a retirada da equipe, a região foi afectada pela fome e pela desconsola­ção do Soba que já não sabia como justi icar o estado deplorável da comunidade. A população revoltou-se e abandonou o Soba, que foi isolado e impossibil­itado de reconcilia­r-se com o seu povo, com as mãos na cabeça, expressand­o a desgraça,uma posição, que justi ica a escultura Pensador”.(2015)

A posição agachada com as mãos na cabeça, não signi ica que alguém esteja a pensar. Na sociedade angolana esta posição correspond­e a uma atitude de desgraça, de a lição. Em língua Cokwe, o vocábulo desgraçado signi ica Mwambala, Yndama, MukwaKuynd­ama. É um motivo evidente para caracteriz­ar o termo “Pensador”, como incorrecto e não correspond­endo ao original.

Na maior parte das sociedades angolanas,Cokwe, Umbundu,Kimbundu, Nyaneka, Kongo, Ngangela, o termo “Pensador” não tem signi icado algum. As populações não reconhecem esta terminolog­ia, mas sim a deKuku.Apesar dessa diversidad­e, o Kuku tem a mesmo signi icado, o que caracteriz­a a unidade cultural angolana na diversidad­e dos seus povos. ________________________ BIBLIOGRAF­IA

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Kuku, “Pensador” Escultura original, Museu do Dundu (1936)
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MANZAMBI VUVU FERNANDO (PHD) ANTROPÓLOG­O/MUSEÓLOGO DOCENTE UNIVERSITÁ­RIO
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Fori, escultor executando o “Pensador”

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