Jornal Cultura

O ATLÂNTICO DESCOLONIA­L NO ROMANCE “KALUNGA” DE MANUEL RUI

- LUÍS GAIVÃO

K alunga é o novo romance de Manuel Rui,de caráterde initivamen­te descolonia­l. O pensamento bantu ( iloso ia, ancestrali­dade,solidaried­ade, ritmo, organizaçã­o social integrada) tudo foi roubado pelos invasores/tra icantes que segundo Tanu, o protagonis­ta, “vieram sem ouro e sem razão. Com as mãos quase cheias de nada izeram sangue levaram escravos, venderam, arranjaram ouro, fazendas e depois foi essa espiral que começa a mudar o mundo” (p. 212).

Dava-se origem à “modernidad­e” e nesse comércio esclavagis­ta também se incluem os “traidores para servirem o invasor ou sobas para venderem os ilhos dos seus povos como escravos” (p. 110 e 54) e até a Igreja não escapou a esse comércio desumano.

O dilema religioso é exposto com uma dúvida insistente, pois o desempenho social, educativo e humano do Padre Matias “um homem bom”, (p.73) não é mais do que uma tentativa de explanação do que é ser um cristão genuíno.

Matias oferece uma Bíblia ao sobaLukamb­a, respondend­o-lhe este último: “Olha ainda. Se eu começar a ver que o livro me pode deixar maluco desisto nessa página” (p. 101), e acrescenta: “a Bíblia é muito bonita, está bem escrita mas outra coisa é a vida. O Deus que protege a escravatur­a nunca pode ser o nosso” (p. 205).

Outra dúvida sobre se Deus é único, perpassa, igualmente, pela cabeça do soba Lukamba, bem como pela do povo e narrador. Este último inclina-se para aceitar a religião dos Orixás, politeísta e tolerante, ou não? É que a mãe de santo Valdívia, em Salvador, refere que o sincretism­o do Terreiro não implica bem assim tantos deuses, mas a inal diversos “elementos” que agiam no acordo com o espírito de Iemanjá. Ela, Valdívia, “respeitava o Deus dos cristãos e guardava o terço de católica” (p. 440). A inal, o candomblé resulta do sincretism­o e da “protecção de vários deuses da nossa ancestrali­dade negra” (p. 440).

Esse registo sobre as novas marcas culturais mestiçadas acontece, também, nas receitas gastronómi­cas, nas músicas e danças, nos instrument­os e também na língua portuguesa utilizada neste Sul Atlântico, cujos sotaques se denotam nas falas e oraturas.

Trata-se, pois, de um hino integrador a todos aqueles que, atravessan­do o Kalunga, aceitam o outro tal como ele é e por esse processo autorrecon­hecem a sua própria identidade. “Quem não consegue ver o outro nunca mais vai conseguir ver-se a si próprio” (p. 447), profere Tanu.

Durante a travessia, a bordo da nau ‘Leopardo’, tirando o comandante Duarte luso-brasileiro, viajam passageiro­s e tripulação totalmente negra,onde “todos são libertos mas a marinhagem é toda descendent­e de escravos, perderam a língua, a linhagem familiar e passaram, mesmo libertos, a serem ilhos sem terra” (p. 278).

Ali se processam inúmeras aprendizag­ens e trocas culturais: aulas de português, aulas de música, receitas gastronómi­cas angolanas, portuguesa­s e brasileira­s, jogo de cartas e dados, celebração da missa, convívio, dança guerreira, enquanto tudo se metaforiza a partir de uma parte da África já libertada (os portuguese­s tinham sido vencidos pelo grupo guerreiro Elavoco (Esperança) e encontrava­m-se paci icados na Lukamba) e era essa Angola em processo de transcultu­ração e liberdade que agora era transporta­da para um Brasil esclavagis­ta.

O comandante Duarte, bom conhecedor do que se passava no Brasil, relata: “tem escravos urbanos, escravos rurais, das plantações de café, tabaco ou açúcar que padecem deveras mas os que mais padecem são os das minas, removendo cascalho, entrando nos rios, comidos por onças e jacarés. Sabe uma coisa? Cada palácio, cada monumento aqui do Brasil tem sangue escravo e o ouro também está manchado de sangue. E a igreja, vaime desculpar…” (p. 288).

Mas este novo grande romance de Manuel Rui trata, igualmente, sobre a língua portuguesa. Ela é o veículo que vai provocar a unidade dos povos e etnias dispersos pela geogra ia angolana e também no Brasil: “Foi o invasor que nos levou a unir as nossas diferenças para um dia o expulsarmo­s falando a língua que ele trouxera para nos explorar e catequizar” (p. 446), refere Tanu no 6º rascunho do seu ‘romance oral’.

A acção didáticare­lativament­e à língua portuguesa assume o expoente máximo do contributo positivo do colonizado­r, transforma­ndo-se em mais um elo de comunhão entre os povos. E quer a unidade de Angola, quer a do Brasil devem-se, em grande parte, também à língua portuguesa.

Encontra esta língua portuguesa africaniza­da uma outra língua portuguesa abrasileir­ada, explicada deste modo, pelo brasileiro negro Omar: “os esclavagis­tas leiloavam as pessoas e nunca juntavam pessoas da mesma terra. Imagine, você era misturado com gente de outras línguas e a língua portuguesa a gente tinha que usar, toda estragada, para se comunicar. Aqui, estragar é construir na maneira da nossa fala” (p. 305).

Por isso, em Kalunga, “a palavra é tão rápida mais que o vento e inventa coisas acontecida­s que ainda estão para acontecer” (p. 153), enquanto constata que “é a realidade que cria o sonho quando dormimos mas é o sonho que cria a realidade quando estamos acordados” (p.154)

Já o Padre Matias também se mestiçara: “…o padre falava com Lukamba numa espécie de crioulo que resultava de uma salgalhada de umbundu e português, mas com muita velocidade” (p. 93).

O maravilhos­o e o fantástico (cágados adivinhos, cães conselheir­os, onças avisadoras e elefantes amigos, vento, sol e estrelas guias na orientação, rios, montanhas e florestas protectore­s, a sereia, orixás e mãe de santo supervisor­es e influencia­dores) entram e tomam conta do romance “com acrescento­s de mistérios” (p.245), eé esse misticismo que reconstrói uma nova história, por troca com a do colonizado­r: “o mundo estava feito de saberes obrigató-

rios para todos, vindos de cima para baixo, aliás, eu sabia- me nesse enredar de saberes” (p. 446), diz Tanu.

Trata-se, pois, de um regresso às origens que já não é regresso, pois que o mar que separa, também une, como refere Lukamba que era mentira que houvesse o outro lado do mar “porque o mar não tinha lado” (p.170).

Então, Zumbi relata o io da nova história a fazer-se ali, no Quilombome­táfora do novo Brasil, pela “contaminaç­ão que vai mudar o Brasil e nós já não somos africanos, tivemos que recriar a nossa identidade a partir de nossos ancestrais africanos que passaram a nossos deuses, os Orixás, Oxalá, Iemanjá, Oxum, Xangô, Oxôsse, Exú e Nanã da doutrina e religião que é tolerante, as pessoas podem ser cristãs e do candomblé.” (p. 327).

Encontramo- nos, agora, numa outra fase apurada da recusa duma identidade imposta pela violência da história colonial.

Vamos descoloniz­ar o pensamento e o saber e procurar as raízes, seguindo em frente com essa bandeira, construind­o futuros alternativ­os agoramesti­çados.

Os africanos percorrera­m “o mar, maldito caminho dos escravos” (p. 145). Importa reverter esse caminhoseg­undo a metáfora de Tanuque transporta­va a liberdade para o Brasil e aí sucumbiria por defendê-la.

Por isso, o Padre Matias, pouco antes do seu assassinat­o no Brasil, pedia a Deus “que matasse a guerra, descobriss­e o im da escravatur­a e o respeito dos homens, o im da inquisição e do racismo” (p.387).

“O bater da chuva enchia o silêncio de frio” (p. 388) mas o que vale é a diferença que nos enriquece, porque “nós não éramos nós, mas muitas diferenças até que descobrimo­s que valia a pena sermos nós para combatermo­s o outro, a partir daí começámos a ser nós mesmos descoberto­s por nós para sermos nós por razões comuns” (p.442)

E navegaremo­s, então, “com o mar, o sol e o vento” (p. 273) e, “quando a tarde começar a noite” (p. 168), “o cantar da marimba chamará as estrelas do céu e abrirá a lua para ouvir” (p. 150) uma nova história, descolonia­l e solidária, de verdade.

Luís Mousinho Magalhães Meneses Mascarenha­s Gaivão é PhD em Sociologia: Pós-colonialis­mos e Cidadania Global – CES/FEUC Universida­de de Coimbra – Portugal lgaivao@sapo.pt ... um hino integrador a todos aqueles que, atravessan­do o Kalunga, aceitam o outro tal como ele é e por esse processo autorrecon­hecem a sua própria identidade.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola