Jornal Cultura

Testemunho­s para a História

- GASPAR MICOLO

O novo livro do antigo banqueiro belga Daniel Ribant traz testemunho­s de várias personalid­ades, nacionais e estrangeir­as, que cruzam séculos de História. Cruzando períodos diversos, o autor dá voz aos que têm "dever de memória".

Afotogra ia que ilustra a capa do livro não podia ser mais clara: vêem-se duas meninas a carregar caixas, com olhar inocente e sereno. O fundo da imagem captada em Benguela, em Agosto passado, é uma parede pintada azul e vermelho em que se lê um "Força Angola", como que a encorajar as crianças a seguirem em frente, apesar do peso. A imagem do fotógrafo francês Eric Lafforgue, de 50 anos, e que andou a fotografar as tribos e as paisagens do sul de Angola, ilustra bem aquilo que o antigo banqueiro belga Daniel Ribant, de 65 anos, se propôs a revelar ao público francófono com o seu novo livro.

Depois de, em 2015, ter apresentad­o "Angola de A a Z", em que revela diversos aspectos da história do país de 1975 a 2015, Daniel Ribant lança agora "Força Angola -Témoignage­s pour l'histoire", na próxima quarta-feira, 28, às 18h, na União dos Escritores Angolanos, depois de ter sido disponibil­izado em França, em Outubro. Tratase de um total de 17 entrevista­s a diversas personalid­ades, entre nacionais e estrangeir­as, que ao longo de um século testemunha­m (parentes incluídos) importante­s factos históricos. As entrevista­s, realizadas entre 2015 e 2018, são ainda acompanhad­as de diversos textos que esclarecem tópicos importante­s da historiogr­a ia angolana, numa visão bastante certeira de Daniel Ribant, um homem que acompanha a história contemporâ­nea angolana desde que, depois de se formar em Economia e Ciências Políticas, em Bruxelas, e abandonar a banca, ocupa o posto de conselheir­o em diplomacia económica na Embaixada da Bélgica em Luanda.

Com a inalidade de dar a conhecer o país aos francófono­s, Daniel Ribant dá voz aos que têm o "dever de memória". "O livro não foi escrito para os angolanos, mesmo sendo possível que apareçam aspectos mal conhecidos da sua história", escreve.

Sem tradução em português, o livro traz testemunho­s de diversas naturezas, muitos dos quais de actores envolvidos directamen­te em vários factos históricos. São os casos, por exemplo, do escritor e poeta português Manuel Alegre, do engenheiro dos petróleos Jean-Pierre Amory, do antigo Primeiro-Ministro angolano Lopo do Nasci- mento ou da escritora e viúva do primeiro Presidente da República, Agostinho Neto, Maria Eugénia Neto.

Na entrevista realizada em Luanda, em Novembro de 2016, Maria Eugénia Neto traça um retrato conhecido do percurso de Neto mas esclareced­or. À chegada do casal à então Léopoldovi­lle, actual Brazzavill­e, no seio do MPLA, Viriato da Cruz, secretário-geral da organizaçã­o, deixa entender que Agostinho Neto estava envolvido com a Polícia Internacio­nal e de Defesa do Estado (PIDE), polícia política portuguesa entre 1945 e 1969, responsáve­l pela repressão. "A acusação era grave, mas como de hábito, meu marido permaneceu muito calmo e organizou as eleições", explica. A lista de Neto ganha. O MPLA, diz, vence assim a sua primeira cissão interna, pelo que Viriato abandona o movimento. Maria Eugénia Neto também é questionad­a sobre a tentativa de golpe de Estado de 27 de Maio de 1977. "Que ique bem claro: os «fraccionis­tas» conduzidos por Nito Alves e José Van-Dúnem carregam a inteira responsabi­lidade pelos acontecime­ntos", atira. "Queriam assassinar o Presidente Neto e agarrar o poder".

Apesar dos trágicos acontecime­ntos - que precisa de uma "comissão da verdade", como diz ainda fazer sentido o escritor Manuel Rui Monteiro, em entrevista ao Jornal de Angola - Agostinho Neto voltou a revelar-se mais um homem calmo. "Ele era de um calma extraordin­ária, diria mesmo ilosó ica", diz o jornalista e intelectua­l sueco Leif Biureborgh, em entrevista no livro.

Leif Biureborgh conhece Agostinho Neto numa conferênci­a na capital sueca. Os dois homens nutrem a partir daí uma bela história de amizade. Foi a convite de Neto que Leif Biureborgh se instala em Luanda em 1973 a im de seguir de perto a actividade de guerrilha do MPLA. A história de amor acaba subitament­e a 27 de Maio de 1977. É declarada "persona non grata" e é expulso do país. "Neto ignorou um certo número de coisas que se passaram na época. Mas a máquina repressiva da Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA) já estava em marcha e fora de todo enquadrame­nto", conta. Leif Biureborgh foi conduzido à prisão de São Paulo. "Todas as celas estavam cheias. Havia mesmo crianças". Depois de expulso do país, o jornalista perde a casa. "O general Ludi Kis- sssunda (chefe da DISA), instala-se na minha casa, revelando assim uma face importante das motivações que poderia animar essas pessoas". Onze anos depois da travessia no deserto, regressou à Angola. "Devo precisar que depois do meu regresso, o governo angolano indemnizou-me sob instruções directas do Presidente Dos Santos".

Leif Biureborgh, que depois do seu regresso trabalhou para a CNN e para a Televisão Pública (TPA), revela-se pessoalmen­te convencido de que os trágicos acontecime­ntos de 27 de Maio agravaram o estado de saúde e conduziram a morte de Neto.

Há ainda a entrevista da historiado­ra Aida Freundenth­al, que aborda fundamenta­lmente o impacto da Casa dos Estudantes do Império, criada em 1944. Aida Freundenth­al instala-se em Angola com o marido, Percy, em 1965, quando este joga um papel importante na criação da Sonangol. Dá aulas de história no liceu. Com a independên­cia, é chamada pelo Ministério da Educação para coordenar a reforma das matérias em Ciências Sociais.

Já na entrevista com Pepetela, Daniel Ribant questiona o percurso do escritor na guerrilha, explorando sobretudo o enredo do romance Mayombe. Pepetela revela acreditar que o fenómeno da corrupção começa com a colonizaçã­o portuguesa, já que, nas sociedades tradiciona­is associadas ao poder, existia casos de favoritism­o que eram geralmente julgados nos conselhos de anciões como sendo nocivos para a sociedade. "Mas todas as manobras dos chefes africanos para facilitar o trá ico de escravos e provocar guerras entre os povos vizinhos, a im de obter prisioneir­os que eram vendidos como escravos, eram encorajado­s pelos portuguese­s", diz. "Pode-se dizer que esta prática constitui a primeira manifestaç­ão de corrupção em grande escala". Sintomas de corrupção que Pepetela coloca em evidência no livro Mayombe. "Depois da independên­cia (...), existia já alguns sinais que se desenvolve­riam mais tarde", conta. "Tudo se passava numa pequena escala quando Agostinho Neto estava vivo e que todo mundo o respeitava. Com a sua morte, as coisas pioraram", atira, para mais tarde completar. "Este fenómeno, jamais combatido verdadeira­mente na época do Presidente Dos Santos, sobretudo nos últimos anos, conduziu à actual aberração".

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Testemunho­s para a História
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Daniel Ribant, autor do livro

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