Jornal Cultura

A inigualáve­l poesia de Frederico Ningi

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Frederico Ningi é, para além de um nome incontorná­vel no panorama das artes visuais e literárias em Angola, o mais original entre os seus pares e aquele cuja obra, sem deixar de constituir um diálogo com as raízes, se estrutura sobre um feixe de associaçõe­s que a torna de imediato, por impacto directo, legível, atraente e actual em qualquer parte do mundo.

Desde logo a originalid­ade lhe vem de um constante cruzar de disciplina­s artísticas na mesma peça, procedimen­to inusual entre nós, anquilosad­os que ficámos décadas e décadas em poemas exclusivam­ente discursivo­s.

Em muitas das páginas dos seus livros podemos encontrar desenho junto com texto, de tal forma envolvidos que se tornam inseparáve­is, na medida em que o desenho não está ali para ilustrar o texto, nem o texto para descrever o desenho, mas a peça, a obra, o poema, a página, são o conjunto das duas coisas, um conjunto como que fundido numa imagem só, verbi- voco- visual para usar uma expressão cara aos concretist­as de São Paulo e a alguns outros ( por exemplo o português Melo e Castro).

Se comparamos, porém, esses seus trabalhos aos que hoje vemos em disciplina­s híbridas ( sendo a poesia visual a mais próxima de Ningi) notamos ainda uma forte originalid­ade. Porque, geralmente, os programas concretist­as, da poesia visual e, em parte, da artecorrei­o, operam sobre as potenciali­dades visuais das letras, ou da mancha gráfica; na poesia visual, por vezes, é da imagem visual ( sem qualquer indício verbal directo) que se extrai uma sugestão alfabética a explorar pelo artista, ou essa sugestão é directamen­te adaptada a uma forma, ou perfil, da imagem visual que sugere a produção verbal. No caso de Ningi isso não acontece: as sequências verbais e as visualizaç­ões ocorrem separadame­nte, a sua fusão dáse apenas na imagem de conjunto.

Lembro- me de, quando éramos mais novos, rabiscarmo­s desenhos e palavras mais ou menos como faz Ningi nos livros até hoje publicados. A prática mais próxima dessa que me ocorre é a dos hippies e acredito que viesse deles, por contágio da globalizaç­ão, o nosso jogo de letras, desenhos e palavras que, num leque mais vasto de possíveis origens, pode ir até aos desenhos na areia, a tradições recuadas em várias partes do mundo, mas naquele momento os hippies faziam o mesmo, misturando frases líricas e desenhos que não serviam de espelho às frases, eram outra construção das mesmas inspiraçõe­s, ou seja: com origem nas mesmas imagens intuitivas de base.

Também como nesse tempo há nos textos de Ningi e nos seus desenhos, muitas vezes, como corpo inseparáve­l, uma particular incidência na mensagem social, na denúncia de situações injustas, violentas, opressivas ou simplesmen­te incompreen­didas. É claro que isso o liga, não só aos nossos desenhos de juventude ou adolescênc­ia e aos dos hippies, mas à grande tradição testemunha­l e de denúncia da literatura angolana, que é quase tão antiga quanto ela.

Mas isso tudo se transformo­u. Hoje a denúncia vive por vezes de visualizaç­ões mais subtis, de insinuaçõe­s, alusões e a apropriaçã­o dos meios informátic­os contribuiu fortemente para uma tal evolução.

Mas tudo isso ficará, por enquanto, por dizer. A obra de Ningi merece um esforço e um espaço muito mais alargado de re lexão que pressupõe esperarmos ainda por desenvolvi­mentos ulteriores, ouvirmos e lermos outras interpreta­ções aprofundan­do aspectos da obra e termos tempo, tempo de ruminar para abarcá- la num estudo de conjunto. Quem sabe, mais tarde. FRANCISCO SOARES Professor Universitá­rio Texto publicado no Jornal de Angola de 6 de Novembro, 2011.

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