Jornal Cultura

1

-

. O património africano exibido ou armazenado em colecções museológic­as ou privadas espalhadas pelo mundo deve ser devolvido aos seus países de origem. As obras de arte e os objectos que fazem parte desses acervos não são dos países que actualment­e os possuem e exibem. Esse material pertence à herança cultural dos países africanos (segundo o relatório encomendad­o pelo presidente francês, Emmanuel Macron, cerca de 90 por cento da herança cultural de África está fora do seu continente de origem, ao passo que os museus africanos estão praticamen­te vazios) e é dever moral das antigas potências coloniais restituíre­m aquilo que foi obtido com recurso à violência ou através de relações em que o vendedor estava numa posição de desvantage­m relativame­nte ao comprador. Nada justi ica que os europeus tenham um acesso privilegia­do a essas obras e objectos, muitos deles sagrados para as culturas africanas. Proceder a essa devolução é o mais correcto, o mais justo, o mais decente e o mais digno. Iniciar esse processo é um passo fundamenta­l para reverter a violência imperial em que ainda assentam muitos museus e galerias de arte europeus e norte- americanos (onde ainda subsiste, em tantos e tantos casos, a imagem de que a cultura ocidental é superior à africana, e onde se continua a reproduzir o mito do africano selvagem e primitivo, dedicado à magia negra ou à feitiçaria), e uma forma de dizermos inequivoca­mente que esse passado imperialis­ta pertence apenas ao passado e que nele deve icar enterrado para sempre. Não se trata de obliterar, esquecer ou reinventar esse passado, trata-se simplesmen­te de reconhecer que, hoje, já não nos revemos nas práticas levadas a cabo por muitos dos nossos antepassad­os, e que rejeitamos a visão racista e colonialis­ta que permitiu o saque e o roubo desses objectos. É fundamenta­l transmitir esta mensagem às novas gerações, ensinar- lhes e explicar- lhes que a nossa vida deve assentar em valores como a tolerância, o respeito pela dignidade e a opinião dos outros, a liberdade de expressão, o espírito crítico, etc. Tal como têm direito aos seus recursos e às suas matérias- primas, os países que foram colonizado­s também têm direito à produção simbólica e cultural dos avós dos seus avós. Não me preocupa em absoluto que alguns museus europeus iquem vazios, considero mesmo que esta é uma oportunida­de de ouro para as instituiçõ­es culturais europeias se reinventar­em, revitaliza­rem e rejuvenesc­erem. Dito de outro modo, a descoloniz­ação das instituiçõ­es europeias, e do nosso conhecimen­to sobre África, por via do repatriame­nto dessas obras obrigálas-á a questionar­em e a repensarem a sua estrutura. A arte e os artistas europeus, desde logo, bene iciarão com isso, pois haverá mais espaço disponível para mostrarem os seus trabalhos, tal como as próprias técnicas museológic­as e de curadoria, que terão de fazer um novo percurso de autocrític­a e modernizaç­ão. Mas este processo de devolução será ainda um primeiro passo na urgente reconfigur­ação das relações diplomátic­as, económicas e científica­s entre os países europeus e os países africanos. Isso promoverá relações de colaboraçã­o cultural e científica que a todos beneficiar­á, obrigará à recolha sistemátic­a de informaçõe­s sobre a proveniênc­ia e as trajectóri­as desses objectos, terão de ser feitos inventário­s rigorosos, listas das obras e objectos roubados, etc. Tudo isso desenvolve­rá a investigaç­ão e a partilha de conhecimen­tos entre comunidade­s científica­s, porque vai ter de haver muita discussão sobre a quem devem ser restituído­s esses objectos ( se ao Esta- do, se aos herdeiros dos antigos proprietár­ios, se a comunidade­s nativas que transcende­m as fronteiras nacionais, etc.) e quais as modalidade­s da sua restituiçã­o. O destino e o futuro desses objectos levantará também questões relacionad­as com a sua preservaçã­o, manutenção e conservaçã­o. Para que tal possa ser feito, os governos europeus e africanos deverão criar comissões de descoloniz­ação lideradas por especialis­tas, desde logo académicos e profission­ais dos museus das nações envolvidas nestes processos, gente de reconhecid­a idoneidade científica, com autonomia para tomar decisões, ou seja, com independên­cia dos políticos. A estes últimos caberá, sobretudo, estudar alterações às actuais leis do património e criar condições para que sejam efectuadas auditorias aos museus e às colecções privadas. Resumindo: será um processo demorado, que possivelme­nte nem fi- cará totalmente resolvido e concluído durante a minha geração.

2.

Todos sabem que a esmagadora maioria das obras e objectos criados e produzidos por africanos, antes ou durante o período colonial, foram apropriado­s por funcionári­os coloniais, militares, missionári­os, antropólog­os, explorador­es, aventureir­os, etc. sem o consentime­nto dos seus autores ou proprietár­ios. Muitas dessas peças, antes de terem surgido nos museus e galerias ocidentais, foram comerciali­zadas nos mercados europeus e norte-americanos, e muitas pessoas enriquecer­am e izeram carreiras universitá­rias graças à pilhagem desses objectos. Portanto, muitas dessas obras estão manchadas de sangue, foram roubadas à força, através de acções violentas de conquista colonial e de expedições punitivas. Sempre que se conseguir provar que foram obtidos ilegitimam­ente, esses objectos devem ser restituído­s, tal como foram e devem continuar a ser restituída­s, aos judeus e não só, as obras roubadas pelos alemães durante a II Guerra Mundial. Tal como deveriam ser restituída­s as obras roubadas pelos exércitos franceses, no século XIX, durante as invasões napoleónic­as. Onde, já agora, Portugal tem e deveria ter uma palavra a dizer.

3.

O argumento de que as obras não estarão seguras nos países africanos de onde são originária­s é um dislate, para não dizer pior. Ainda há pouco tempo foi inaugurado em Dakar, no Senegal, um dos maiores museus do mundo – Museu das Civilizaçõ­es Negras – que dispõe de 14 mil metros quadrados de espaço e capacidade para exibir 18 mil obras e objectos dedicados às civilizaçõ­es africanas (a sua dimensão já levou muitos a compará-lo ao National Museum of African American History, situado em Washington). A ideia tem mais de 50 anos e foi proposta pelo primeiro presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor. E o Congo está a preparar o seu próprio museu em Kinshasa. Por certo, alguns países africanos terão de investir em infra-estruturas capazes de receber essas obras, construind­o ou requali icando museus, galerias, armazéns, estudando e pondo em prática técnicas de segurança e de preservaçã­o desses objectos, de modo a evitar a sua deterioraç­ão e degradação. Também aí a colaboraçã­o entre países será importante, pois poderão ser estabeleci­dos protocolos entre instituiçõ­es, empresas e governos.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola