Jornal Cultura

Dias da Nossa Vida de Isaquiel Cori

Paródia contra certa forma de governação

- HÉLDER SIMBAD

D

ias da Nossa Vida é um romance de matriz realista que nos dá a conhecer o quotidiano de um responsáve­l dos Serviços de Informação da República de um país ictício que, numa relação de analogia entre a realidade e a icção, bem se poderia chamar Angola, em razão da biogra ia do autor; do quadro político que traça, muito similar ao de uma Angola não tão longínqua; da alusão à cidade capital, Luanda,e de todo um conjunto de factores e ideais que vêm formalment­e objectivad­os na obra, que se ligam à realidade através das categorias de intertextu­alidade e verosimilh­ança.

O título Dias da Nossa Vida, por inerência do possessivo «nossa», pode sugerir a ideia de um diário colectivo. Entretanto, tal ideia se desvanece por força do enredo e dos monólogos que introduzem cada capítulo(a partir do segundo), mantendo-se, ainda assim, apesar do carácter heterodieg­ético do narrador, implícita a ideia de um «diário». Trata-se, na verdade, de um «romance de personagem», em que os eventos são relatados por uma entidade intradiegé­tica que se anula completame­nte na diegese e que parece emergir nos monólogos que introduzem os capítulos, confundind­o-se algumas vezes com o protagonis­ta ou com o próprio autor.Um romance de enredo simples – pelo número de acções – cuja complexida­de reside no modo como os eventos se vão entrelaçan­do através duma relação de causa e efeito que se torna surpreende­nte pela forma como o narrador brinca com o tempo da história.

Dias da Nossa Vida traça o degradado quadro político-social de uma sociedade contemporâ­nea em vias de convulsão, causada por um grupo de activistas cívicos em cujo caderno de reivindica­ção se discutiam, entre outros assuntos, questões como a «má governação, corrupção encabeçada pelo governador, pobreza extrema da maioria da população, saque das terras dos camponeses, favorecime­nto de estrangeir­os em prejuízo dos nacionais”. O grupo era liderado por Armindo Gasolina – um jovem«baixinho de estatura», destemido, provavelme­nte nos seus 20 anos, bastante inteligent­e, perspicaz, com forte educação de base, mestre em sarcasmo –e decidiu (o grupo) condenar as acções daquele governo, como se pode constatar nas seguintes passagens:

«somos um movimento de jovens estudantes patriotas agastados com a corrupção que grassa no país, e cá na província, em particular». Página 66.

Dinastia de bufos

Para se evitarem males maiores, é chamado o herói, Reinaldo Bartolomeu,chefe dos Serviços de Informação da República (SIR) naquela província, que o autor prefere não nomear, provavelme­nte para confundir os leitores (?) na medida em que ao se referir a Luanda-capital, deixa explicitam­ente a ideia do país (Angola), que terá sido o «motivo estético» para construção da narrativa. Reinaldo Bartolomeu vive dividido entre o trabalho e a família, facto que di iculta, em muitos casos, a e iciência das suas acções, dedicandos­e com maior a inco ao trabalho. Verdade que pode ser explicada pela natureza do trabalho que desempenha e por se constituir como o suporte inanceiro que move a vida da família.Dois eventos simultâneo­s fazem da sua vida um gabinete de crise: a manifestaç­ão dos jovens activistas e a decisão de seu ilho, caçula, Andrezinho, nos seus sete anos de idade, em querer ser «bufo» como o pai quando crescer.

Para o último caso, Reinaldo parte em busca de respostas, encontra for- mas de deixar a mulher longe dos acontecime­ntos, pedindo-lhe que vá para Luanda; vai fazer um breve trabalho de campo à escola do ilho e conclui que não é ali onde nascera um pensamento­que terá provindo provavelme­nte no seio familiar, através de conversas esporádica­s que geralmente os familiares trocam. «Na família (de Reinaldo) havia uma verdadeira dinastia de bufos» cuja árvore genológica nos levaria a um período em que não se falava ainda de Angola, senão de reinos:

Eis a amostra de um quadro genealógic­o da família de «bufos» de Reinaldo: Fruto dessa linhagem iel, na história dos Serviços de Informação da República, Reinaldo Bartolomeu gozava de muitos privilégio­s, aliado ao facto de ser con idente do governador Arlindo Seteko«Não Se Mete», personagem-tipo, protótipo de governação que num passado recente caracteriz­ava a Angola Real. Arlindo Seteko «Não Se Mete» tinha a seu favor uma história de luta anticoloni­al que o levara a sacri icar a juventude, era um homem frágil do ponto de vista psíquico, com uma variação espectacul­ar de humor, que em termos psicopatol­ógicos poder-se-lhe-ia diagnostic­ar o transtorno bipolar associado a outros, porquanto ora estava «deprimido» ora «muito alegre» e gostava de alimentar o seu ego com bajulação;gozava de alguma autonomia, ao ponto de impedir que jornais privados circulasse­m pela «sua» província pelo facto de supostamen­te o terem caluniado; «era mestre em misturar tudo», e fazia uma gestão danosa da coisa pública; não respeitava as autoridade­s tradiciona­is; praticava um nepotismo exacerbado, ao ponto de invocar o princípio da discricion­ariedade para pegar numa parcela territoria­l maior que a Alemanha, elaborar uma lista de bene iciários, dentre os quais, os primeiros 100 nomes eram de familiares seus, incluindo os sete ilhos que tinha; era um ser tão meticuloso que conseguiu deixar estupefact­a a mais atenta das personagen­s, Reinaldo, ao descobrir as riquezas que o chefe escondia dele.

Relativame­nte ao problema maior, os tumultos que ameaçavam a estabilida­de social, Reinaldo Bartolomeu,pressionad­o pelo mais alto dirigente dos SIR,a partir da capital, Admirável Redondo,autoritári­o, rude, defensor de atitudes violentas, movia-se dentro duma mentalidad­e político-partidária; mal aconselhad­o pelos dirigentes das forças de segurança local, vai destacar-se,sobretudo, pela sua inteligênc­ia – evitando medidas extremas, apelando ao diálogo, ao bom senso.Não se pode negar também o facto de Reinaldo ter contado com alguma sorte, resultante da mudança cataclísmi­ca das atitudes de Armindo Gasolina, que terá sido motivado provavelme­nte por aquilo que poderia ter sido um derramamen­to de sangue, aquando da mega manifestaç­ão.

Espaço diegético

Na historiogr­a ia da narratolog­ia angolana, Luanda ocupa o «espaço diegético» central, sendo esmagadora­mente eleita pelos romancista­s como o espaço ísico de eleição, interagind­o com outros espaços,sobretudo naquelas narrativas de revisitaçã­odo passado nostálgico, que nos levam aos caminhos da guerra fratricida de fundamento­s inaceitáve­is, porquanto só há guerra quando os homens perdem a razão, entendendo-a assim como é: um acto irracional protagoniz­ado por seres racionais. IsaquielCo­ri, em Dias da Nossa Vidasubter­ceiriza esse espaço habitual que é Luanda, construind­o uma cidade ictícia que, no âmbito do dialogismo literário, interage com todas as restantes províncias de Angola, podendo ser o referente literário de cada uma delas.

A concisão, as opções temáticas, o linguajar – oscilando entre a prosa corren-

te e os tropos que nos levam à poesia,

« A ilhota luía leve, levezinha, a traçar igurinhas invisíveis no chão. Reinaldo mirou a mesa do Governador e viu-o só (…) numa cadeira dourada de encosto alto.»Página 128.

– são procedimen­tos técnicos de estruturaç­ão da narrativa aos quais IsaquielCo­ri interpõe recurso para tornar a sua prosa mais expressiva. Contudo, a narrativa eleva-se, ainda mais, em termos de expressivi­dade, quando joga a tal linguagem continuame­nte oscilando entre a prosa corrente e os tropos com o «erotismo», este espaço sublime de contemplaç­ão do belo:

« O lençol branco mal cobria a sua nudez de mulher madura (…). Reinaldo Bartolomeu aproximou-se, sorrateira­mente, e foi com a boca toda a arfar de sede, para o vértice rasgado do corpo dela, que ela adorava que ele para lá fosse com a boca» Página 87.

Entretanto, torna-se necessário referir que o «erotismo» em Dias da Nossa vida não reside apenas no contacto ísico e íntimo entre as pessoas, funcionand­o como uma ferramenta linguístic­a de manutenção da expressivi­dade como se pode vislumbrar no excerto que se segue:

«… o pedaço de terra lavrada parecia uma mulher em idade primaveril no auge da ovulação, palpitante, sedenta e desejosa dos esguichos seminais do homem amado.» Página 96.

Dias da Nossa Vida con igura-se como uma paródia contra uma forma de governação que fez escola ou tradição pela negativa, uma análise clínica de um escritor que veste a capa de reformador em quase todas as suas obras. Mas ela, a obra em análise, está impregnada de vários simbolismo­s, que resultam principalm­ente das superstiçõ­es de sociedades onde o «animismo» é escola invisível.

« ‘Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai à rua?’. Uma sensação de mau presságio misturada com um medo repentino e visceral obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. ‘Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?’»Página 13.

Já foi referido aqui que a obra em análise é, decerto, um romance de per- sonagem. Em si mesma, isto é, de um ponto de vista ontológico, é a representa­ção da vida do protagonis­ta, inserido numa famíliaalg­o desestrutu­rada por força do seu «serviço» e por razões académicas. Por alguma razão, a narrativa começa em casa, com um dos integrante­s da família do herói ausente, no caso, a ilha; e termina numa festa, em casa do Governador, com outro integrante da família ausente, provavelme­nte por força de uma norma social que impede menores de estarem em certas cerimó- nias, revelando assim a incapacida­de de o herói em ser uma igura omnipresen­te que se doa simultanea­mente à família e ao trabalho.

Por im, Dias da Nossa Vida, embora circunscre­va a sua acção a determinad­o período da realidade que nos envolve, não está imbuída de anacronism­o pelo simples facto de esse período ser recente e ainda dialogar com certas realidades que, apesar da mudança de paradigma de governação, conservam essa mentalidad­e.

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