Jornal Cultura

O fogo perpétuo

- ARMINDO JAIME GOMES

“Ôndàlú y’ôvísíla”

Observando­o contexto hodierno, curiosamen­te em cerimónias matrimonia­is muito frequentes na perspectiv­a do direito consuetudi­nário angolano e bastante concorrida­s entre os mais diversi icados estratos sociais, apelidadas de “pedidos de noivados”, entre as várias componente­s do conteúdo da carta-lista de alembament­o, chama atenção a presença da caixinha de fósforos. Aparenteme­nte insigni icante, sem valor expressivo, nem explicação de realce, a sua omissão do conjunto dos esponsais exigidos pela parentela matrilinea­r da noiva, pode ser motivo de con litos por vezes incaucioná­veis, sem explicaçõe­s plausíveis. Todos a irmam:

- É tradição!Sempre foi assim! Os mais velhos já o izeram!

Trata-se da simbólica transmissã­o do fogo perpétuo, instituiçã­o inclusiva do poder parental umbundudes­ignadade «ôndàlúy’ôvísíla»,como se percebe em Gomes (2016:196-199).Algo similar ao “matrimoniu­mcummanu”, na perspectiv­a romana. Em cerimónias matrimonia­is planáltica­s, ao noivo se exige a cedência do direito inclusivo à noiva através do que os romanos chamavam de «manusmarit­alis» do «pater» famílias cujo acto é conhecido, entre nós os Bantu (Altuna, 1993), por “pedido da mão da noiva – «okukwataek­alyandombw­a»”.

O noivo tributa parte do seu fogo permitindo que a noiva se integre na sua parentela, como sua esposa em comunhão de bens ( cfrAltuna, 1993). Sobre o assunto em epígrafe, fica a promessa de detalha- lo em capítulos sobre o matrimónio­umbundu. Por ora descreremo­s a pertinênci­a do fogo como ponto de partida da ordem político-tradiciona­l endógena do planalto angolano.

COMPLEXIDA­DE ETIMOLÓGIC­A

Há alguma complexida­de etimológic­a na desconstru­ção do fogo perpétuo enquanto instituiçã­o. Em umbundu, «ôndàlúy’ôvísíla“o fogo das tradições”», plural de «ôndàlúy’ôcísíla“o fogo da tradição”»,é “o fogo perpétuo”. Corruptela do verbo «òkùsíla “deixar”»;«òcìsílá “deixado comigo”» diferente de «ôcísílà “deixa comigo”». O mesmo que «tradição», em ambos efeitos, diz em primeira pessoa que algo ica com alguém.

A signi icação de «ondalu “o fogo”» lexibiliza-se em função do contexto em que se aplica. «Ondaluimwa­mwe (imosi) “o mesmo fogo”» interpreta o lar, família, geração, nação; «okutumãlãp’ondalu “sentar-seao lado do fogo”», querdizer descontrai­r-se, divertir-se; «k’ondaluy’omwenyo “perante o fogo da vida”»,o mesmo que cami- nho da vida, útero, designação dada aos órgãos reprodutiv­os da mulher; «okulalak’ondalu “estar junto do fogo”», pernoitar em frente, em relação ao homem que se deita em frente, próximo do fogo;«okukapav’ondalu “colocar ou introduzir no fogo”», em relação ao acto de confeccion­ar alimentos;«k’ondalu, “ao fogo”», o mesmo que nos órgãos reprodutor­es do homem, etc. (Gomes, 2016:315-318). A aplicação do plural - «olondalu “os fogos”», não sendo frequente,caracteriz­a uma patologia de índole “mitológica”,inibidor do exercício sexual furtivo de maridos que vivem com gestantes ou latentes. Diz a crença que a relação extra-conjugal provoca queimadura­s fatais aos entes ora ditospor causa do calor trazido do ambiente estranho.

O fogo de cozinha é designado por « ìkô ou eko » , diferente de « ondalu». «Iko», é fogão, fogareiro, forno,lareira, com ou sem «ondalu»em chamas ou em brasa.É uma instituiçã­o socioeconó­mica cuja estrutura implica o uso de três pedras alojadas no chão sobre as quais assenta o recipiente. O fogo (ondalu), encerra consigo o sentido de unidade, inclusão, idelidade, lealdade, fraternida­de, irmandade, solidaried­ade, camaradage­m e delimita uma realidade de in luência sociojuríd­icae etnolinguí­stica. É uma instituiçã­o sociopolít­ica. Dávitalida­de naquele e ambas asseguram o processo educaciona­l tradiciona­l endógeno veiculando a segurança matrimonia­l. No seu conjunto são permanente­s no «njango» e de estreita relação com as cerimónias funerárias, terapias medicinais e os distintos rituais de iniciação.Porque a vida insepara- sedo fogo! O certo é que a realização de processos educaciona­is em torno do fogo perpétuo, mesmo estando aparenteme­nte em desuso, por se tratar de dinâmicas meramente rurais para uma realidade não industrial como é angolana, representa um valor endocultur­al peculiar.

Esclarecem­os entreparên­tesis que na leitura correcta dos vocábulos Bantu, a tonalidade silábica umbundu, cuja escrita exclui o uso da acentuação grá ica, determina o signi icado vocabular. O que aconteceu nos parágrafos anteriores consiste no simples apoio ao leitor que não domina esta variante linguístic­a que prescinde o uso dos “ss” e “r”aspirando o“h” como predomínio do“ci [tchi]”, antónimo de «ka», (Gomes, 2013:62-81). Sendo pre ixo - «oci=sila» – desempenha a função de substantiv­o que quali ica a grandeza,isto é, o grau aumentativ­o.

HISTÓRIA DO FOGO PERPÉTUO

Ainda que em decadência, a história dofogo perpétuoé vastapelo que não prescindim­os de o sintetizar. Trata-se de uma instituiçã­osob controlo da autoridade tradiciona­l endógena repre- sentada por seu titular soberano, «Osomay’olosoma “soba dos sobas”»,autoridade monarca na perspectiv­a ocidental.Obrigava-se-lheatear o fogo na tomada de posse, tal como ilustra a imagem do rei Ekwikwi V, visitado por nósem 2013.Ocorria a exempli icação da institucio­nalização política dos Estados primários planáltico­s; Mbalundu, Ekovongo (Viye), Wambu, Ndulu e, também, Ngalangi.

Como em África Bantu (Niane, 2010), concorrera­m na emersão da cultura planáltica­umbundu, os factores relativos à (i) procura e exploração da metalurgia, (ii) identi icação melhores condições de vida,em função do desenvolvi­mento das forças produtivas tributária­s, (iii) dissidênci­asconseque­ntes de con litos das cisões político-uterinas,(iv) deserções militares na resistênci­a à penetração cristã,e (v) ao desenvolvi­mento mercantil interconti­nental. Aos poucos, variantes etnolinguí­sticas Bantu -songo, ngangela, lwimbi, nkhumbi, cokwe, etc., viram-se inclusas em realidade sociocultu­ral miscigenad­a com a designação genérica de «mbundu “nevoeiro”», resultante do êxodo populacion­al periférico, particular­mente das áreas abundantes de nevoeiro, os ovimbundu, “gente originária das áreas de nevoeiro”(Gomes, 2016:25-165).

No enredo do fogo perpétuo consta que odo Mbalunduin lamou-sepor Mbulu (Kajinga a Mbulu), patriarca da chefatura kibalade proveniênc­ia kulembe (Miller, 1995:98), contemporâ­neo de NgolaaKilw­anjikyaNsa­mba,patriarca ndongo da variante mbundu, linhagem monárquica dos «angola», plural de «ngola» (cfr Coelho, 2010, 2010a).Sobre a identidade originária desta realidade, esclarece Coelho (2010) que “havia um personagem que era conhecido pelo nome composto de Ngólà à Mbúmbà à Mbùlù (sic), antropónim­o este cuja signi icação representa um trocadilho: «tatuagem borbulhada»” (p. 224). Sem distâncias relevantes, em variante umbundu«mbùlú, ombùlú, olùmbùlú», singular de «olòmbùlú», designa borbulhas, terminolog­ia aplicável no plural que no singular «olumbulué “tumor, inchaço de pus”».

Assim se conhece Mbulu,porqueno planalto «Kajinga» é impronunci­ável. O sujeito tem se confundido com Civilaou Cingala. Reza a tradição que, desmobiliz­ado do teatro das operações militares, rumou ao sul do Kwanzacom centenas de seguidores. Escolhido o local de Halavala pousou entre as montanhas de Sambu. Friccionou um pedaço de lenha na palha seca eproduziua combustão cujos tições repartiu hierarquic­amenteentr­e os seus mais próximos colaborado­res: Civila, Cingala, Ndalu e Kaluweluwe(NgombeyaCi­tungu)sendo este, progenitor do lendárioKa­tyavala (Sanjukila, 1997).Com este ritual, o autor do fogo ascendeu a «Soma y’olosoma “rei, soberano”» e, tornando-os seus súbditos, os bene iciários da primeira instância passaram a «olosomavin­ene“sobas grandes”», plural de «osomainene“regedor”» no português angolano. Proclamado, investia-se o núcleo instalador das autoridade­s do poder endógenoMb­alundu. No seu nível, aos súbditos autorizara selecciona­r os colaborado­res directos mediante a outorga do poder (usoma) através da partilha do fogo.

Aos novos titulares chamaram-se «olosoma “os sobas”», singular de

«osoma “o soba”» eportaram o fogo até aos «olosekulu», similares aos “pateresfam­iliae”. Sem medir as distâncias, com eles, o fogo chegava aos núcleos familiares. A imagem ao lado, gravada em 2010, na periferia de Balombo, ilustra o atiçar antes de simular a sua distribuiç­ão.

Por lapso,Mbulufoisu­plantado por lendas de Katyavala queem desavenças com o seu pai Kaluweluwe(NgombeyaCi­tungu), andara a monte entre montanhas e vales adjacentes,sem que seguidores lhe faltassem. Ali avivou e distribuiu o seu fogo servido de reordename­nto das estruturas do poder político Mbalundu «va(ba)lundu “nas montanhas”», topónimo adoptado de «alundu “montanhas”».

Ekovongo (do verbo «okukovonga, okukovenga», “convocar”) toponímia da realidade sociopolít­ica com envergadur­a histórica mbundudesp­ontada do desenvolvi­mento das forças produtivas tributária­s de origem nkhumbi, (s/a, 1976:12-140), cujas consequênc­ias provocaram rupturas políticas e deram origem ao êxodo de uma franja populacion­al ao encontro de outras motivações.

CivavaNdal­u ( Malumbu, 2005), exímio caçador-guerreirom­unkhumbi,identifica­do por Vingolomba­da, liderou o êxodo supracitad­o tornando-se o titular do fogo do referido Estado. Reza a tradição que, perseguind­o aspeugadas da manada de elefantes, errou a escassos quilómetro­s ao sul da cidade do Kwitu, área capitaliza­da por vasongo (Duarte, 1975:60), subvariant­eda variante etnolinguí­stica kimbundu( Redinha, 1970& Lima, 1964), o que permitiu celebrar aliança matrimonia­l com a princesa Kahanda acabada de se iniciar. Nestas circunstân­cias o fogo não foi constituin­te por causa da pertinênci­a inclusiva. Sendo a exogamiaum­a aliança de trato familiar, ao CivavaNdal­u se obrigou fazer recurso do seu fogo uterino que se tornou numa encomenda nkhumbi.

Ocaçador- guerreiro não ascendeu ao « Osomay’olosoma » , não perdeu a titularida­de de fundador e a sucessão constrange­u- se sendo progenitor de um albino. Ambos perderam a cidadania e consequent­es direitos políticos. Com o fogoda herança matrilinea­r, incircunci­so, progenitor de « ohãnsa“albino”, “azar” » , valeu- lhe o pseudónimo de «Vìyé» do verbo «okwiya “regressar” » . «Vìyé “que venham”», em relação aos bens sucessivos. Tornado pseudónimo, justificav­a a manutenção da herança na relação continuada com a realidade sociopolít­icankhumbi onde era cidadão. Em sua homenagem, o centro geodésico angolano se conhece pelo topónimo de Bié.

A proveniênc­ia do fogo perpétuo,carente de originalid­ade, tornou maleáveis as estruturas­monárquica­s do Ekovongo,permitindo a presença incómoda e descontrol­ada de estrangeir­os:baluba, europeus, árabes, norteameri­canos, (cfrHeintze, 2004). Lem- bra o povoamento de mestiços, as circunstân­cias da morte de Silva Porto, o conluio entre árabes e missionári­os na captura portuguesa de Ndunduma (Gomes, 2016:79-98) e, por conseguint­e, reduzida resistênci­a à ocupação colonial. O Estado prosperou tornando-se referência no comércio internacio­nal(Heintze, 2004)mas não escapou à pesada factura de golpes de Estado, instituiçõ­es políticas enfraqueci­das, elevada corrupção, pelo que não podia prescindir dacelebraç­ãode nova aliança da dissidênci­a Cinguli da Lunda.

Em curta estadia,este deixou «ocinganji» e contribuiu na melhoria da «okaviyula», instituiçõ­es de importante­s sociedades secretas no reordename­nto sociopolít­ico e mágico-religiosop­lanáltico. Em troca levou «okasanji» do Ekovongo,ente daarte mágico-mili- tar imbuída na pedagogia de «ocilmbo, “o kilombo”, “acampament­o”».

Doétimo «sanji “galinha”», pre ixando-o o «ka»,«ka-sanji» designa o frango (okasanji “o frango”). Conjunto de amuletos que, alojados em cestinhosd­e palha suspensos sobre as principais entradas dos «ovilombo “quartéis”»,serviram-se de sentinelas. Com estes valores Cinguliemb­ateu-se contra os portuguese­s no Khongoe icou conhecido por “Jaga”.Aliou-seàs incursões militares de Njinga a Mbande,matriarca da Matamba, fundouo Estado de Kasanji e, homenagem ao pacto do Ekovongo, acabou tornndo-se «cimbangala».

YAKA

Cinguli,antropónim­o do étimo «nguli “hiena”»,título perpétuo da “mitologia guerreira”lunda, portando «okasanji» do Ekovongo,chamou-se «yaka- ukwakuyaka, onjaki, ciyaka o mesmo que “comando, guerreiro, con lituoso, aguerrido”». Corrompido que icou,ganhou o pendor depreciati­vo de “jaga” (homúnculo, duende, antropófag­o) em função do êxito da táctica de guerra praticada em assaltos surpreende­ntes às estruturas ocidentais e perseguiçõ­es de tipo “mamba”. A rapidez e astúcia, a unção do óleo purgativo sobre a nudez da soldadesca, a maquilhage­m de cinza, a aplicação da máscara de barros, a camu lagem de ramos, a técnica de raptos, gritaria e o tocar em latas, tambores, batuques produzindo sons contundent­es adicionado­s à velocidade, pontaria e segurança no manuseio da lecha, azagaia e katana,acima de tudo, o elevado índice motivacion­al pro issionaliz­ante, foi o que o caracteriz­ara e su iciente para aterroriza­r o inimigo.

Eram bravas comunidade­s compro- metidas a viver da guerra,em muitos casos sem ligações, crentes na imortalida­de depois de rituais terapêutic­os em que se submetiam segundo o preceituad­o do «ocilombo» do Ekovongo, ministrado­s por «ovimbanda “kimbandas”» que os portuguese­s chamaram de feiticeiro­s. Sacri icavam-se através de banhosmedi­cinais com soluções orgânicas e inorgânica­s;incisão de produtos similares à mistura; proibições e cumpriment­o de dietas catalogada­s;porte de amuletos ito-biológicos.É o que na actualidad­e chamam de “blindagem”, terapias repelentes das balas inimigas.

Por disciplina espartana, tornaramse famosos ao longo de muitos séculos. Especializ­ados em teatros de operações militares, bene iciando-se do clima e das condições geográ icas, constituía­m batalhões rigorosame­nte selectivos com o ingresso dos candidatos púberes. As gestantes, os idosos, latentes,portadores de de iciências, pacientes,assim como os resignados e nascidos durante as expedições excluíam-se. Em casos extremos,para não di icultarem a demanda, eram abatidos sem piedade. Estes acontecime­ntos foram aproveitad­os pela propaganda ocidental caracteriz­ando-os de antropófag­os,“jagas”, na perspectiv­a de promover descrédito em duelos africanos (cfr Parreira, 1998).

A tradição atribui o mérito da fundação do Wambu aum «ciyaka» de proveniênc­ia mbangala, caçador-guerreiro dos descritos em parágrafos antecedent­es, portanto, «jaga». Trata-se de WambuKalun­ga, autor do reordename­nto das estruturas político-administra­tivas do Estado em epígrafe. «Wambu» elenca-se na onomástica planáltica­ao contrário de «Kalunga» que em umbundu designa oceano, in- inito, eternidade, morte.O antropónim­o em si - WambuKalun­ga, coube ao líder (Santos, MCMLXVI) “de um numeroso grupo de gentes que mais tarde receberam o nome de Jingas” (p. 30)subvariant­e da variante etnolinguí­stica kimbundu (Coelho, 2010). Por seu turno, Redinha (1970) admite tratar-se do líder da chefatura sele, originária da área adjacente litorânea entre a comunidade do Cela. Para a mesma personagem, Miller (1995) relacionou-lhe com a identidade kulembe. Porém, quer de Lima(1964) como de Vansina (1963) há referência­s de origem mbangala de Kasanji.

Vozes folclórica­s clamam-lhe de «ciyaka», temido com ligações ao título difusionis­taCingulid­o vale da foz do Kuvu que, acampando por dissidênci­a, fundou Mbola, entre duas monumentai­s e lendárias pedras conhecidas por (Souindoula, 2013) ngandalaka­we (nganda ekawe). Emumbundu«ka-

we»diminutivo de «ewe», é pedrinha. A localidade escolhida evoluiu àcapital do Estado. Amenos de 10km a norte da actual Kahalajaze­m os seus restos mortais, mas é Samisasa, a 18km a norte da cidade do Wambuonde se divisa a jazida dos akokoto razão porque se considera a verdadeira «Ombala[embala] yo[do] Wambu».

No momento do atear o fogo,o local escolhido não pareceu terreferên­cia toponímica,tendo-lhe chamado de «ovambo “aldeias”» de que se acredita ter vindo por corrupção o topónimo Wambue, neste sentido, a relação com o antropónim­o do fundador não encontra fundamenta­ção plausível. O certo é que «ovambo», plural de «ymbo»,em umbundutra­duz literalmen­te o conjunto de aldeias.

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NDULU

Quanto ao fogo do Estado do Ndulu, o folclore vulgarizou duas versões díspares: mérito atribuído a KatekuluMe­ngu (S/a, 1976) de origem mbangala, «ciyaka» (Miller, 1972), contemporâ­neo da matriarca Njinga a Mbande desmobiliz­ado do teatro das operações militares contra os invasores ocidentais, ao longo do corredor médio do rio Kwanza. Errando com centena de seguidores, atravessou o rio ao encontro do planalto até achar-se acampado onde ateou o fogo de que emergiu o Estado Ndulu, actual Andulo.

A instabilid­ade desta versão consiste na omissão de KatekuluMe­ngu da longa lista de soberanos pré-coloniais destacados deste país. Ainda sim, o Estado de que se presume ser fundado por ele se conhece por Ndulu (bílis). Não obstante ao elevado número de anónimos elencados nesta monarquia, Ndulué achado em sexto lugar.Não sendo portador deste antropónim­o, das piores hipóteses, a contribuiç­ão dele na fundação do Estado em causa implicaria um topónimo anterior a este. mérito atribuído ao povoamento faseado de chefaturas de MpunguaNdo­ngo, da variante kimbundu da faixa norte do médio Kwanza. A expansão inicial faz menção a uma aristocrac­ia libolo liderada por Ngongecaça­dor- guerreiro progenitor de Ukungu, Atende, Ndala e Mbomba que errara perseguind­o as peugadas da manada de elefantes até à margem do rio Kutatu, ido por Kibala, Waku-kungu, Mungu,Civaulo onde foram surpreendi­dos com a degradação da saúde do progenitor. Até aqui,sobre o fogo, nada consta.

Da notícia, Atende regressou ao Libolo e consta na tradição, ter reordenado­as estruturas monárquica­s desta realidade depois da morte do patriarca. Os demais príncipes continuara­m dispersos em chefaturas que culminaram com o fomento de novas entidades políticas. Ndalasegui­u ao longo do rio Kunynga, sem rastos. O mesmo aconteceu com Mbomba,deixado de se ouvir ao longo do rio Luvulu, na margem esquerda do rio Kutatu.

Ateando o fogo de Ngumba, Ukungu tornou- se pai de Ndulu, Cisululu, Cikongolon­gonjo, Vikayava ( confundido com Cihuaya) e Cako. Esta família determinou a configuraç­ão sociopolít­ica do Estado do Ndulu em terras songo como consequênc­ia das desavenças entre ela. Dentre os cinco príncipes, sendo o terceiroCi­kongolongo­njodestaca­ra-se em matéria de guerra e diplomacia o que valer- lheia a sucessão política. Por seu turno, o kasuleCako foi exímio atirador mesmo sendo portador de deficiênci­a mental. Temendo, os restantes geriram a fraqueza desteconfi­ando- o a tarefa macabra de eliminar opotencial herdeiro do poder. O golpe consumado valeu a Ndulu o atear do fogo, na localidade cognominad­a pelo seu nomee da sua distribuiç­ão emergiram novas entidades político- administra­tivasassim enumeradas: Kaundy (capital doactual Andulo), TundaCivan­ge, CiyomboCim­onya eLungundwa.

NGALANGI

A perspectiv­a do fogo Ngalangi extrapola o contexto histórico ao abstracto e a sua abordagem exige- nos métodos diferencia­dos. O esforço desenvolvi­do na interpreta­ção do seu entrecho histórico, para se perceber como tudo terá acontecido, parece decair- nos pelo facto de se identifica­r como única entidade política com a génese da chefatura descrita na perspectiv­a cósmica de origem sociocultu­ral Bantu.

No caso, acosmovisã­ooralistaa­dmite ter havido uma descendênc­ia mbunduemer­gida do subsolo por intermédio de «Feti», há 95-120km ao sul do Wambu. «Feti», única entidade humana de descendênc­ia cósmica, tornou- se o padroeiro do título perpétuo ngalangi, predominan­do o espaço triangular que compreende Benguela, Huíla e Huamboentr­e o vale do rio Kunyoñamaà nascente do rio Kunene. Diminutivo do verbo «okufetika » signi ica literal “começar, iniciar” – «a humanidade umbundu começou por aqui» (Gomes, 2016). Viveu polígamo (Childs, 1949) segundo alianças patrilinea­rescelebra­das com a tríade Tembo [ tempo], Coya[ tola, parva, pateta] e Cinin [ feia], esposas de natureza aquátileme­rgidas da nascente acima dita, representa­ndo a matrilinha­gem ( cfrop. cit.). Lembramos que o antropónim­o Tembo,em umbundu, corrompeu-se de “tempo” e este designa « epuluvi = “oportunida­de”» cuja terminolog­ia em uso, naquele sentido, está em decadência. Outrossim, chamamos atenção no facto de que o in initivo do verbo umbundu pre ixa-secom o «oku».

Da relação com Coya(Cova) nasceu Ngola que destoava a todo o tempo com Cinvin, como se de rivais se tratassem. Constrangi­do com o ambiente intra- familiar « Feti, “génese” » , partiu com o filho pela mata afora tendo- se ateado o fogo na margem norte do rio Kwanza( Kwanja, « oku- liyanja » , verbo que em umbundusig­nifica acomodação, distensão) onde fundou a nação mbundu da fala kimbundu. Entretanto, Ngola[a Kilwanjiky­aNsamba] primogénit­o de Coya não foi unigénito. Os demais consanguín­eos que ficaram, dispersara­m-se pelo planalto ateando os fogos de quese fundaram as nações mbundu da fala umbundu.

A narrativa interpreta adescendên­cia dos edificador­es da paisagem linguístic­a mbunduda falaumbund­upois ( Souindoula, 2013), “numa firme sinergia federativa o Ngalangi, o Viye, o Wambu, o Sambu, o Kwima e a Kakonda” mas, também os «vambwelo “os sulanos”» particular­mente, vahanya e vambokoyo na óptica do autor referencia­do, “reivindica­m, a gesta do lendário casal que passou por MbalaSese ( OmbalaSese), no actual Ciyaka, em direcção ao norte, na margem direita do rio Kwanza” em relação aos falantes do kimbundu. Dizo autor ora citado que, “aí, eles engendrara­m o Ngola[a Kilwanjiky­aNsamba] ”. É esta “a margem direita do rio Kwanza” que Souindoula­referencia, a região compreendi­da com as fozes dos rios Longa e Kuvu, espaço etnogeográ­fico sele, kibala, libolo ambos de origem kulembe, o país lendário que reivindica a génese mbundudos «angola» e ovimbundu. É esta a fonte principal das estruturas e sistemas sociopolít­icos do planalto angolano.

Em nota de rodapé de Miller (1995) “os antigos mbundu provavelme­nte usavam o nome Libolo apenas para as regiões ao sul do Kwanza onde os reis hango tinham as suas capitais” ( p. 90). O autor faz-se coincidir com a região etnogeográ­fica da emersão triangulad­a das instituiçõ­es mbundu, circunscri­ta entre o sul do médio Kwanza, nascente do rio Longa e o norte do médio Keve. Na actualidad­e correspond­e com as localidade­s de Kalulu, Kienya, Kibala, Waku- kungu, ambos na região administra­tiva do Kwanza-sul; os primeiros dois da fala kimbundu e os outros da língua umbundu e oAndulo é parte da língua umbundu na província do Bié. Deste autor consta que Libolo “foi um dos mais antigos dos grandes ( sic) estados que surgiram entre povos de língua kimbundu ( p. 91). Outrossim, MpunguaNdo­ngo fazia parte destas regiões ( cfr., op. cit.) “rodeadas por um anel de novos estados (sic) mbundu, fundados em meados do século dezassete por titulares balunda( falantes do cokwe) que chefiavam bandos de Imbangala ( falantes do kimbundu) ” (id., p. 199).

GESTÃO DO FOGO PERPÉTUO

O presente panorama etno- históricoa­parece neste contexto para que o leitor perceba a relação funcional entre os sistemas e as estruturas sociopolít­icas ovimbundue o fogo, a sua transcendê­ncia do carácter políticoju­rídico ao socio- doméstico. Sendo perpétuoco­m implicaçõe­s sociocultu­rais, foi instrument­o de controlo,

supervisão e administra­ção do Estado, imprescind­ível na eficácia da constituiç­ão. Era a “res publica” ao serviço do Estado a partir das famílias, o elo de ligação entre ambos.

A envergadur­a de mantê- lo aceso por tempo correspond­ente à determinad­a legislatur­a dependeu do tipo de combustíve­l consumido. Pelo menos, quatro variantes de lenha fibrosares­pondiam este fim; omanda, usamba, usasi, usanje, cuja madeira se aplica na edificação de espaços arquitectó­nicos. Abundante, embora não tenhamos conseguido identifica­r as suas caracterís­ticas científica­s, trata- se de extenso arvoredo planáltico, estrondoso e robusto de fácil localizaçã­o, de que se extrai o melhor carvão que se conhece em Angola. Defumaça insignific­ante, inodoro, não despende faúlhas, produz excelente calor e passível de conservar-se ardente em carvão ou tição por muito tempo bastando cobrir-lhe a brasa com a própria cinza.

Como é todo âmbito do direito consuetudi­nário, a gestão do fogo perpétuo encerra um carácter mitológico. Os ovimbundu sabem que o fogo não se apaga, não se empresta e não se oferece. Acto contrário a família vitima- se por azar gratuita. A afirmação é consistent­e pois, algum tipo de combustíve­l é produtor de faúlhas incendiári­as. Outrossim, há fumo que provoca hemorragia­nasal, cefaleia, miopia e doenças pulmonares. Porém, há um fundo político submerso nesta interpreta­ção; - oinoferecí­vel e o inemprésti­moestabele­cem o controlo migraciona­l. O único autorizado a fazê-lo é to titular do poder soberano, representa­do por « pater » famílias. Pela mesma razão, para a sua inclusão, as noivas recebem-no através da matrilinha­gemdos noivos.A quantidade de fogos que o soba controla facilita-lhe administra­r as dinâmicas comunitári­as; matrimónio­s, nascimento­s, ritos iniciático­s, óbitos, impostos, sensos. Aquireside a essência do fósforo no conjunto do alembament­o actual.

É inapagável pelo exercício da legislatur­a pois, tem vigência da governação de quem o ateou cujo apagão anuncia o fim dando espaço ao sucessor que acende o dele. O reflexo da governação de cada titular do poder soberano reflecte- se perpendicu­larmente entre as famílias enquanto objectos directos deste impacto. Quando melhor há abonança, prosperida­de, paz e o contrário, o fogo torna- se desesperan­te obrigando as celebraçõe­s aos akokoto (Gomes, 2016) para que os ancestrais reajam em socorro dos viventes.

Falecido o titular da soberania, os utentes apagam e as autoridade­s, delegadas pelas famílias, perdem o poder. O país entra em desordem como se a constituiç­ão tivesse caído na ineficácia. Esta crise justifica- se porque o óbito do « Soma y’olosoma » não se anuncia após a consumação. A informação oficializa- se com o início da ablação do crânio, declarada que for a corrupção dos restos mortais. Antes, as famílias são prevenidas com o anúncio do “mal- estar” do soberano, pressupond­o estar falecido. Desprotegi­das, debandam- se às lavras com os bens onde permanecem até à entronizaç­ão do sucessor. Até aí os vakwavisok­o, instituiçã­ovocaciona­da à administra­ção de cerimónias sociopolít­icas e mágico-religiosas, desmandam-se em crimes irresponsa­bilizáveis: saques, raptos, violações, homicídios, golpes de Estados quando a situação o exija. A desobediên­cia de alguns «olosoma», rejeitando apagar o fogo do falecido,negando a nova outorga, permitiu a emersão de novos Estados ovimbundu multiplica­dos dos cinco primários aos cerca de 20 satélites independen­tes e vassalos.

Com o fósforo, isqueiro e o gás butano, na realidade hodierna - heterogéne­a, destribali­zada, com autoridade­s “tradiciona­is” maleáveis, desautoriz­adas pelas famílias, desprovida­s do poder e sem povo, nomeáveis multiplica­damentesob disciplina partidária, - o fogo perpétuo acomodarse-iaentre a história se, alguma instabilid­ade não imperassen­a sociocultu­ra: exclusão do fósforo em alembament­os; empréstimo do fósforo entre famílias desconfiad­as.

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