O fogo perpétuo
“Ôndàlú y’ôvísíla”
Observandoo contexto hodierno, curiosamente em cerimónias matrimoniais muito frequentes na perspectiva do direito consuetudinário angolano e bastante concorridas entre os mais diversi icados estratos sociais, apelidadas de “pedidos de noivados”, entre as várias componentes do conteúdo da carta-lista de alembamento, chama atenção a presença da caixinha de fósforos. Aparentemente insigni icante, sem valor expressivo, nem explicação de realce, a sua omissão do conjunto dos esponsais exigidos pela parentela matrilinear da noiva, pode ser motivo de con litos por vezes incaucionáveis, sem explicações plausíveis. Todos a irmam:
- É tradição!Sempre foi assim! Os mais velhos já o izeram!
Trata-se da simbólica transmissão do fogo perpétuo, instituição inclusiva do poder parental umbundudesignadade «ôndàlúy’ôvísíla»,como se percebe em Gomes (2016:196-199).Algo similar ao “matrimoniumcummanu”, na perspectiva romana. Em cerimónias matrimoniais planálticas, ao noivo se exige a cedência do direito inclusivo à noiva através do que os romanos chamavam de «manusmaritalis» do «pater» famílias cujo acto é conhecido, entre nós os Bantu (Altuna, 1993), por “pedido da mão da noiva – «okukwataekalyandombwa»”.
O noivo tributa parte do seu fogo permitindo que a noiva se integre na sua parentela, como sua esposa em comunhão de bens ( cfrAltuna, 1993). Sobre o assunto em epígrafe, fica a promessa de detalha- lo em capítulos sobre o matrimónioumbundu. Por ora descreremos a pertinência do fogo como ponto de partida da ordem político-tradicional endógena do planalto angolano.
COMPLEXIDADE ETIMOLÓGICA
Há alguma complexidade etimológica na desconstrução do fogo perpétuo enquanto instituição. Em umbundu, «ôndàlúy’ôvísíla“o fogo das tradições”», plural de «ôndàlúy’ôcísíla“o fogo da tradição”»,é “o fogo perpétuo”. Corruptela do verbo «òkùsíla “deixar”»;«òcìsílá “deixado comigo”» diferente de «ôcísílà “deixa comigo”». O mesmo que «tradição», em ambos efeitos, diz em primeira pessoa que algo ica com alguém.
A signi icação de «ondalu “o fogo”» lexibiliza-se em função do contexto em que se aplica. «Ondaluimwamwe (imosi) “o mesmo fogo”» interpreta o lar, família, geração, nação; «okutumãlãp’ondalu “sentar-seao lado do fogo”», querdizer descontrair-se, divertir-se; «k’ondaluy’omwenyo “perante o fogo da vida”»,o mesmo que cami- nho da vida, útero, designação dada aos órgãos reprodutivos da mulher; «okulalak’ondalu “estar junto do fogo”», pernoitar em frente, em relação ao homem que se deita em frente, próximo do fogo;«okukapav’ondalu “colocar ou introduzir no fogo”», em relação ao acto de confeccionar alimentos;«k’ondalu, “ao fogo”», o mesmo que nos órgãos reprodutores do homem, etc. (Gomes, 2016:315-318). A aplicação do plural - «olondalu “os fogos”», não sendo frequente,caracteriza uma patologia de índole “mitológica”,inibidor do exercício sexual furtivo de maridos que vivem com gestantes ou latentes. Diz a crença que a relação extra-conjugal provoca queimaduras fatais aos entes ora ditospor causa do calor trazido do ambiente estranho.
O fogo de cozinha é designado por « ìkô ou eko » , diferente de « ondalu». «Iko», é fogão, fogareiro, forno,lareira, com ou sem «ondalu»em chamas ou em brasa.É uma instituição socioeconómica cuja estrutura implica o uso de três pedras alojadas no chão sobre as quais assenta o recipiente. O fogo (ondalu), encerra consigo o sentido de unidade, inclusão, idelidade, lealdade, fraternidade, irmandade, solidariedade, camaradagem e delimita uma realidade de in luência sociojurídicae etnolinguística. É uma instituição sociopolítica. Dávitalidade naquele e ambas asseguram o processo educacional tradicional endógeno veiculando a segurança matrimonial. No seu conjunto são permanentes no «njango» e de estreita relação com as cerimónias funerárias, terapias medicinais e os distintos rituais de iniciação.Porque a vida insepara- sedo fogo! O certo é que a realização de processos educacionais em torno do fogo perpétuo, mesmo estando aparentemente em desuso, por se tratar de dinâmicas meramente rurais para uma realidade não industrial como é angolana, representa um valor endocultural peculiar.
Esclarecemos entreparêntesis que na leitura correcta dos vocábulos Bantu, a tonalidade silábica umbundu, cuja escrita exclui o uso da acentuação grá ica, determina o signi icado vocabular. O que aconteceu nos parágrafos anteriores consiste no simples apoio ao leitor que não domina esta variante linguística que prescinde o uso dos “ss” e “r”aspirando o“h” como predomínio do“ci [tchi]”, antónimo de «ka», (Gomes, 2013:62-81). Sendo pre ixo - «oci=sila» – desempenha a função de substantivo que quali ica a grandeza,isto é, o grau aumentativo.
HISTÓRIA DO FOGO PERPÉTUO
Ainda que em decadência, a história dofogo perpétuoé vastapelo que não prescindimos de o sintetizar. Trata-se de uma instituiçãosob controlo da autoridade tradicional endógena repre- sentada por seu titular soberano, «Osomay’olosoma “soba dos sobas”»,autoridade monarca na perspectiva ocidental.Obrigava-se-lheatear o fogo na tomada de posse, tal como ilustra a imagem do rei Ekwikwi V, visitado por nósem 2013.Ocorria a exempli icação da institucionalização política dos Estados primários planálticos; Mbalundu, Ekovongo (Viye), Wambu, Ndulu e, também, Ngalangi.
Como em África Bantu (Niane, 2010), concorreram na emersão da cultura planálticaumbundu, os factores relativos à (i) procura e exploração da metalurgia, (ii) identi icação melhores condições de vida,em função do desenvolvimento das forças produtivas tributárias, (iii) dissidênciasconsequentes de con litos das cisões político-uterinas,(iv) deserções militares na resistência à penetração cristã,e (v) ao desenvolvimento mercantil intercontinental. Aos poucos, variantes etnolinguísticas Bantu -songo, ngangela, lwimbi, nkhumbi, cokwe, etc., viram-se inclusas em realidade sociocultural miscigenada com a designação genérica de «mbundu “nevoeiro”», resultante do êxodo populacional periférico, particularmente das áreas abundantes de nevoeiro, os ovimbundu, “gente originária das áreas de nevoeiro”(Gomes, 2016:25-165).
No enredo do fogo perpétuo consta que odo Mbalunduin lamou-sepor Mbulu (Kajinga a Mbulu), patriarca da chefatura kibalade proveniência kulembe (Miller, 1995:98), contemporâneo de NgolaaKilwanjikyaNsamba,patriarca ndongo da variante mbundu, linhagem monárquica dos «angola», plural de «ngola» (cfr Coelho, 2010, 2010a).Sobre a identidade originária desta realidade, esclarece Coelho (2010) que “havia um personagem que era conhecido pelo nome composto de Ngólà à Mbúmbà à Mbùlù (sic), antropónimo este cuja signi icação representa um trocadilho: «tatuagem borbulhada»” (p. 224). Sem distâncias relevantes, em variante umbundu«mbùlú, ombùlú, olùmbùlú», singular de «olòmbùlú», designa borbulhas, terminologia aplicável no plural que no singular «olumbulué “tumor, inchaço de pus”».
Assim se conhece Mbulu,porqueno planalto «Kajinga» é impronunciável. O sujeito tem se confundido com Civilaou Cingala. Reza a tradição que, desmobilizado do teatro das operações militares, rumou ao sul do Kwanzacom centenas de seguidores. Escolhido o local de Halavala pousou entre as montanhas de Sambu. Friccionou um pedaço de lenha na palha seca eproduziua combustão cujos tições repartiu hierarquicamenteentre os seus mais próximos colaboradores: Civila, Cingala, Ndalu e Kaluweluwe(NgombeyaCitungu)sendo este, progenitor do lendárioKatyavala (Sanjukila, 1997).Com este ritual, o autor do fogo ascendeu a «Soma y’olosoma “rei, soberano”» e, tornando-os seus súbditos, os bene iciários da primeira instância passaram a «olosomavinene“sobas grandes”», plural de «osomainene“regedor”» no português angolano. Proclamado, investia-se o núcleo instalador das autoridades do poder endógenoMbalundu. No seu nível, aos súbditos autorizara seleccionar os colaboradores directos mediante a outorga do poder (usoma) através da partilha do fogo.
Aos novos titulares chamaram-se «olosoma “os sobas”», singular de
«osoma “o soba”» eportaram o fogo até aos «olosekulu», similares aos “pateresfamiliae”. Sem medir as distâncias, com eles, o fogo chegava aos núcleos familiares. A imagem ao lado, gravada em 2010, na periferia de Balombo, ilustra o atiçar antes de simular a sua distribuição.
Por lapso,Mbulufoisuplantado por lendas de Katyavala queem desavenças com o seu pai Kaluweluwe(NgombeyaCitungu), andara a monte entre montanhas e vales adjacentes,sem que seguidores lhe faltassem. Ali avivou e distribuiu o seu fogo servido de reordenamento das estruturas do poder político Mbalundu «va(ba)lundu “nas montanhas”», topónimo adoptado de «alundu “montanhas”».
Ekovongo (do verbo «okukovonga, okukovenga», “convocar”) toponímia da realidade sociopolítica com envergadura histórica mbundudespontada do desenvolvimento das forças produtivas tributárias de origem nkhumbi, (s/a, 1976:12-140), cujas consequências provocaram rupturas políticas e deram origem ao êxodo de uma franja populacional ao encontro de outras motivações.
CivavaNdalu ( Malumbu, 2005), exímio caçador-guerreiromunkhumbi,identificado por Vingolombada, liderou o êxodo supracitado tornando-se o titular do fogo do referido Estado. Reza a tradição que, perseguindo aspeugadas da manada de elefantes, errou a escassos quilómetros ao sul da cidade do Kwitu, área capitalizada por vasongo (Duarte, 1975:60), subvarianteda variante etnolinguística kimbundu( Redinha, 1970& Lima, 1964), o que permitiu celebrar aliança matrimonial com a princesa Kahanda acabada de se iniciar. Nestas circunstâncias o fogo não foi constituinte por causa da pertinência inclusiva. Sendo a exogamiauma aliança de trato familiar, ao CivavaNdalu se obrigou fazer recurso do seu fogo uterino que se tornou numa encomenda nkhumbi.
Ocaçador- guerreiro não ascendeu ao « Osomay’olosoma » , não perdeu a titularidade de fundador e a sucessão constrangeu- se sendo progenitor de um albino. Ambos perderam a cidadania e consequentes direitos políticos. Com o fogoda herança matrilinear, incircunciso, progenitor de « ohãnsa“albino”, “azar” » , valeu- lhe o pseudónimo de «Vìyé» do verbo «okwiya “regressar” » . «Vìyé “que venham”», em relação aos bens sucessivos. Tornado pseudónimo, justificava a manutenção da herança na relação continuada com a realidade sociopolíticankhumbi onde era cidadão. Em sua homenagem, o centro geodésico angolano se conhece pelo topónimo de Bié.
A proveniência do fogo perpétuo,carente de originalidade, tornou maleáveis as estruturasmonárquicas do Ekovongo,permitindo a presença incómoda e descontrolada de estrangeiros:baluba, europeus, árabes, norteamericanos, (cfrHeintze, 2004). Lem- bra o povoamento de mestiços, as circunstâncias da morte de Silva Porto, o conluio entre árabes e missionários na captura portuguesa de Ndunduma (Gomes, 2016:79-98) e, por conseguinte, reduzida resistência à ocupação colonial. O Estado prosperou tornando-se referência no comércio internacional(Heintze, 2004)mas não escapou à pesada factura de golpes de Estado, instituições políticas enfraquecidas, elevada corrupção, pelo que não podia prescindir dacelebraçãode nova aliança da dissidência Cinguli da Lunda.
Em curta estadia,este deixou «ocinganji» e contribuiu na melhoria da «okaviyula», instituições de importantes sociedades secretas no reordenamento sociopolítico e mágico-religiosoplanáltico. Em troca levou «okasanji» do Ekovongo,ente daarte mágico-mili- tar imbuída na pedagogia de «ocilmbo, “o kilombo”, “acampamento”».
Doétimo «sanji “galinha”», pre ixando-o o «ka»,«ka-sanji» designa o frango (okasanji “o frango”). Conjunto de amuletos que, alojados em cestinhosde palha suspensos sobre as principais entradas dos «ovilombo “quartéis”»,serviram-se de sentinelas. Com estes valores Cinguliembateu-se contra os portugueses no Khongoe icou conhecido por “Jaga”.Aliou-seàs incursões militares de Njinga a Mbande,matriarca da Matamba, fundouo Estado de Kasanji e, homenagem ao pacto do Ekovongo, acabou tornndo-se «cimbangala».
YAKA
Cinguli,antropónimo do étimo «nguli “hiena”»,título perpétuo da “mitologia guerreira”lunda, portando «okasanji» do Ekovongo,chamou-se «yaka- ukwakuyaka, onjaki, ciyaka o mesmo que “comando, guerreiro, con lituoso, aguerrido”». Corrompido que icou,ganhou o pendor depreciativo de “jaga” (homúnculo, duende, antropófago) em função do êxito da táctica de guerra praticada em assaltos surpreendentes às estruturas ocidentais e perseguições de tipo “mamba”. A rapidez e astúcia, a unção do óleo purgativo sobre a nudez da soldadesca, a maquilhagem de cinza, a aplicação da máscara de barros, a camu lagem de ramos, a técnica de raptos, gritaria e o tocar em latas, tambores, batuques produzindo sons contundentes adicionados à velocidade, pontaria e segurança no manuseio da lecha, azagaia e katana,acima de tudo, o elevado índice motivacional pro issionalizante, foi o que o caracterizara e su iciente para aterrorizar o inimigo.
Eram bravas comunidades compro- metidas a viver da guerra,em muitos casos sem ligações, crentes na imortalidade depois de rituais terapêuticos em que se submetiam segundo o preceituado do «ocilombo» do Ekovongo, ministrados por «ovimbanda “kimbandas”» que os portugueses chamaram de feiticeiros. Sacri icavam-se através de banhosmedicinais com soluções orgânicas e inorgânicas;incisão de produtos similares à mistura; proibições e cumprimento de dietas catalogadas;porte de amuletos ito-biológicos.É o que na actualidade chamam de “blindagem”, terapias repelentes das balas inimigas.
Por disciplina espartana, tornaramse famosos ao longo de muitos séculos. Especializados em teatros de operações militares, bene iciando-se do clima e das condições geográ icas, constituíam batalhões rigorosamente selectivos com o ingresso dos candidatos púberes. As gestantes, os idosos, latentes,portadores de de iciências, pacientes,assim como os resignados e nascidos durante as expedições excluíam-se. Em casos extremos,para não di icultarem a demanda, eram abatidos sem piedade. Estes acontecimentos foram aproveitados pela propaganda ocidental caracterizando-os de antropófagos,“jagas”, na perspectiva de promover descrédito em duelos africanos (cfr Parreira, 1998).
A tradição atribui o mérito da fundação do Wambu aum «ciyaka» de proveniência mbangala, caçador-guerreiro dos descritos em parágrafos antecedentes, portanto, «jaga». Trata-se de WambuKalunga, autor do reordenamento das estruturas político-administrativas do Estado em epígrafe. «Wambu» elenca-se na onomástica planálticaao contrário de «Kalunga» que em umbundu designa oceano, in- inito, eternidade, morte.O antropónimo em si - WambuKalunga, coube ao líder (Santos, MCMLXVI) “de um numeroso grupo de gentes que mais tarde receberam o nome de Jingas” (p. 30)subvariante da variante etnolinguística kimbundu (Coelho, 2010). Por seu turno, Redinha (1970) admite tratar-se do líder da chefatura sele, originária da área adjacente litorânea entre a comunidade do Cela. Para a mesma personagem, Miller (1995) relacionou-lhe com a identidade kulembe. Porém, quer de Lima(1964) como de Vansina (1963) há referências de origem mbangala de Kasanji.
Vozes folclóricas clamam-lhe de «ciyaka», temido com ligações ao título difusionistaCingulido vale da foz do Kuvu que, acampando por dissidência, fundou Mbola, entre duas monumentais e lendárias pedras conhecidas por (Souindoula, 2013) ngandalakawe (nganda ekawe). Emumbundu«ka-
we»diminutivo de «ewe», é pedrinha. A localidade escolhida evoluiu àcapital do Estado. Amenos de 10km a norte da actual Kahalajazem os seus restos mortais, mas é Samisasa, a 18km a norte da cidade do Wambuonde se divisa a jazida dos akokoto razão porque se considera a verdadeira «Ombala[embala] yo[do] Wambu».
No momento do atear o fogo,o local escolhido não pareceu terreferência toponímica,tendo-lhe chamado de «ovambo “aldeias”» de que se acredita ter vindo por corrupção o topónimo Wambue, neste sentido, a relação com o antropónimo do fundador não encontra fundamentação plausível. O certo é que «ovambo», plural de «ymbo»,em umbundutraduz literalmente o conjunto de aldeias.
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NDULU
Quanto ao fogo do Estado do Ndulu, o folclore vulgarizou duas versões díspares: mérito atribuído a KatekuluMengu (S/a, 1976) de origem mbangala, «ciyaka» (Miller, 1972), contemporâneo da matriarca Njinga a Mbande desmobilizado do teatro das operações militares contra os invasores ocidentais, ao longo do corredor médio do rio Kwanza. Errando com centena de seguidores, atravessou o rio ao encontro do planalto até achar-se acampado onde ateou o fogo de que emergiu o Estado Ndulu, actual Andulo.
A instabilidade desta versão consiste na omissão de KatekuluMengu da longa lista de soberanos pré-coloniais destacados deste país. Ainda sim, o Estado de que se presume ser fundado por ele se conhece por Ndulu (bílis). Não obstante ao elevado número de anónimos elencados nesta monarquia, Ndulué achado em sexto lugar.Não sendo portador deste antropónimo, das piores hipóteses, a contribuição dele na fundação do Estado em causa implicaria um topónimo anterior a este. mérito atribuído ao povoamento faseado de chefaturas de MpunguaNdongo, da variante kimbundu da faixa norte do médio Kwanza. A expansão inicial faz menção a uma aristocracia libolo liderada por Ngongecaçador- guerreiro progenitor de Ukungu, Atende, Ndala e Mbomba que errara perseguindo as peugadas da manada de elefantes até à margem do rio Kutatu, ido por Kibala, Waku-kungu, Mungu,Civaulo onde foram surpreendidos com a degradação da saúde do progenitor. Até aqui,sobre o fogo, nada consta.
Da notícia, Atende regressou ao Libolo e consta na tradição, ter reordenadoas estruturas monárquicas desta realidade depois da morte do patriarca. Os demais príncipes continuaram dispersos em chefaturas que culminaram com o fomento de novas entidades políticas. Ndalaseguiu ao longo do rio Kunynga, sem rastos. O mesmo aconteceu com Mbomba,deixado de se ouvir ao longo do rio Luvulu, na margem esquerda do rio Kutatu.
Ateando o fogo de Ngumba, Ukungu tornou- se pai de Ndulu, Cisululu, Cikongolongonjo, Vikayava ( confundido com Cihuaya) e Cako. Esta família determinou a configuração sociopolítica do Estado do Ndulu em terras songo como consequência das desavenças entre ela. Dentre os cinco príncipes, sendo o terceiroCikongolongonjodestacara-se em matéria de guerra e diplomacia o que valer- lheia a sucessão política. Por seu turno, o kasuleCako foi exímio atirador mesmo sendo portador de deficiência mental. Temendo, os restantes geriram a fraqueza desteconfiando- o a tarefa macabra de eliminar opotencial herdeiro do poder. O golpe consumado valeu a Ndulu o atear do fogo, na localidade cognominada pelo seu nomee da sua distribuição emergiram novas entidades político- administrativasassim enumeradas: Kaundy (capital doactual Andulo), TundaCivange, CiyomboCimonya eLungundwa.
NGALANGI
A perspectiva do fogo Ngalangi extrapola o contexto histórico ao abstracto e a sua abordagem exige- nos métodos diferenciados. O esforço desenvolvido na interpretação do seu entrecho histórico, para se perceber como tudo terá acontecido, parece decair- nos pelo facto de se identificar como única entidade política com a génese da chefatura descrita na perspectiva cósmica de origem sociocultural Bantu.
No caso, acosmovisãooralistaadmite ter havido uma descendência mbunduemergida do subsolo por intermédio de «Feti», há 95-120km ao sul do Wambu. «Feti», única entidade humana de descendência cósmica, tornou- se o padroeiro do título perpétuo ngalangi, predominando o espaço triangular que compreende Benguela, Huíla e Huamboentre o vale do rio Kunyoñamaà nascente do rio Kunene. Diminutivo do verbo «okufetika » signi ica literal “começar, iniciar” – «a humanidade umbundu começou por aqui» (Gomes, 2016). Viveu polígamo (Childs, 1949) segundo alianças patrilinearescelebradas com a tríade Tembo [ tempo], Coya[ tola, parva, pateta] e Cinin [ feia], esposas de natureza aquátilemergidas da nascente acima dita, representando a matrilinhagem ( cfrop. cit.). Lembramos que o antropónimo Tembo,em umbundu, corrompeu-se de “tempo” e este designa « epuluvi = “oportunidade”» cuja terminologia em uso, naquele sentido, está em decadência. Outrossim, chamamos atenção no facto de que o in initivo do verbo umbundu pre ixa-secom o «oku».
Da relação com Coya(Cova) nasceu Ngola que destoava a todo o tempo com Cinvin, como se de rivais se tratassem. Constrangido com o ambiente intra- familiar « Feti, “génese” » , partiu com o filho pela mata afora tendo- se ateado o fogo na margem norte do rio Kwanza( Kwanja, « oku- liyanja » , verbo que em umbundusignifica acomodação, distensão) onde fundou a nação mbundu da fala kimbundu. Entretanto, Ngola[a KilwanjikyaNsamba] primogénito de Coya não foi unigénito. Os demais consanguíneos que ficaram, dispersaram-se pelo planalto ateando os fogos de quese fundaram as nações mbundu da fala umbundu.
A narrativa interpreta adescendência dos edificadores da paisagem linguística mbunduda falaumbundupois ( Souindoula, 2013), “numa firme sinergia federativa o Ngalangi, o Viye, o Wambu, o Sambu, o Kwima e a Kakonda” mas, também os «vambwelo “os sulanos”» particularmente, vahanya e vambokoyo na óptica do autor referenciado, “reivindicam, a gesta do lendário casal que passou por MbalaSese ( OmbalaSese), no actual Ciyaka, em direcção ao norte, na margem direita do rio Kwanza” em relação aos falantes do kimbundu. Dizo autor ora citado que, “aí, eles engendraram o Ngola[a KilwanjikyaNsamba] ”. É esta “a margem direita do rio Kwanza” que Souindoulareferencia, a região compreendida com as fozes dos rios Longa e Kuvu, espaço etnogeográfico sele, kibala, libolo ambos de origem kulembe, o país lendário que reivindica a génese mbundudos «angola» e ovimbundu. É esta a fonte principal das estruturas e sistemas sociopolíticos do planalto angolano.
Em nota de rodapé de Miller (1995) “os antigos mbundu provavelmente usavam o nome Libolo apenas para as regiões ao sul do Kwanza onde os reis hango tinham as suas capitais” ( p. 90). O autor faz-se coincidir com a região etnogeográfica da emersão triangulada das instituições mbundu, circunscrita entre o sul do médio Kwanza, nascente do rio Longa e o norte do médio Keve. Na actualidade corresponde com as localidades de Kalulu, Kienya, Kibala, Waku- kungu, ambos na região administrativa do Kwanza-sul; os primeiros dois da fala kimbundu e os outros da língua umbundu e oAndulo é parte da língua umbundu na província do Bié. Deste autor consta que Libolo “foi um dos mais antigos dos grandes ( sic) estados que surgiram entre povos de língua kimbundu ( p. 91). Outrossim, MpunguaNdongo fazia parte destas regiões ( cfr., op. cit.) “rodeadas por um anel de novos estados (sic) mbundu, fundados em meados do século dezassete por titulares balunda( falantes do cokwe) que chefiavam bandos de Imbangala ( falantes do kimbundu) ” (id., p. 199).
GESTÃO DO FOGO PERPÉTUO
O presente panorama etno- históricoaparece neste contexto para que o leitor perceba a relação funcional entre os sistemas e as estruturas sociopolíticas ovimbundue o fogo, a sua transcendência do carácter políticojurídico ao socio- doméstico. Sendo perpétuocom implicações socioculturais, foi instrumento de controlo,
supervisão e administração do Estado, imprescindível na eficácia da constituição. Era a “res publica” ao serviço do Estado a partir das famílias, o elo de ligação entre ambos.
A envergadura de mantê- lo aceso por tempo correspondente à determinada legislatura dependeu do tipo de combustível consumido. Pelo menos, quatro variantes de lenha fibrosarespondiam este fim; omanda, usamba, usasi, usanje, cuja madeira se aplica na edificação de espaços arquitectónicos. Abundante, embora não tenhamos conseguido identificar as suas características científicas, trata- se de extenso arvoredo planáltico, estrondoso e robusto de fácil localização, de que se extrai o melhor carvão que se conhece em Angola. Defumaça insignificante, inodoro, não despende faúlhas, produz excelente calor e passível de conservar-se ardente em carvão ou tição por muito tempo bastando cobrir-lhe a brasa com a própria cinza.
Como é todo âmbito do direito consuetudinário, a gestão do fogo perpétuo encerra um carácter mitológico. Os ovimbundu sabem que o fogo não se apaga, não se empresta e não se oferece. Acto contrário a família vitima- se por azar gratuita. A afirmação é consistente pois, algum tipo de combustível é produtor de faúlhas incendiárias. Outrossim, há fumo que provoca hemorragianasal, cefaleia, miopia e doenças pulmonares. Porém, há um fundo político submerso nesta interpretação; - oinoferecível e o inempréstimoestabelecem o controlo migracional. O único autorizado a fazê-lo é to titular do poder soberano, representado por « pater » famílias. Pela mesma razão, para a sua inclusão, as noivas recebem-no através da matrilinhagemdos noivos.A quantidade de fogos que o soba controla facilita-lhe administrar as dinâmicas comunitárias; matrimónios, nascimentos, ritos iniciáticos, óbitos, impostos, sensos. Aquireside a essência do fósforo no conjunto do alembamento actual.
É inapagável pelo exercício da legislatura pois, tem vigência da governação de quem o ateou cujo apagão anuncia o fim dando espaço ao sucessor que acende o dele. O reflexo da governação de cada titular do poder soberano reflecte- se perpendicularmente entre as famílias enquanto objectos directos deste impacto. Quando melhor há abonança, prosperidade, paz e o contrário, o fogo torna- se desesperante obrigando as celebrações aos akokoto (Gomes, 2016) para que os ancestrais reajam em socorro dos viventes.
Falecido o titular da soberania, os utentes apagam e as autoridades, delegadas pelas famílias, perdem o poder. O país entra em desordem como se a constituição tivesse caído na ineficácia. Esta crise justifica- se porque o óbito do « Soma y’olosoma » não se anuncia após a consumação. A informação oficializa- se com o início da ablação do crânio, declarada que for a corrupção dos restos mortais. Antes, as famílias são prevenidas com o anúncio do “mal- estar” do soberano, pressupondo estar falecido. Desprotegidas, debandam- se às lavras com os bens onde permanecem até à entronização do sucessor. Até aí os vakwavisoko, instituiçãovocacionada à administração de cerimónias sociopolíticas e mágico-religiosas, desmandam-se em crimes irresponsabilizáveis: saques, raptos, violações, homicídios, golpes de Estados quando a situação o exija. A desobediência de alguns «olosoma», rejeitando apagar o fogo do falecido,negando a nova outorga, permitiu a emersão de novos Estados ovimbundu multiplicados dos cinco primários aos cerca de 20 satélites independentes e vassalos.
Com o fósforo, isqueiro e o gás butano, na realidade hodierna - heterogénea, destribalizada, com autoridades “tradicionais” maleáveis, desautorizadas pelas famílias, desprovidas do poder e sem povo, nomeáveis multiplicadamentesob disciplina partidária, - o fogo perpétuo acomodarse-iaentre a história se, alguma instabilidade não imperassena sociocultura: exclusão do fósforo em alembamentos; empréstimo do fósforo entre famílias desconfiadas.