Jornal Cultura

Nem só de pão vive o homem: a componente linguístic­a da cidadania

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

O simples e grandioso acto de usar a Língua para expressar o pensamento, testi ica o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto dimensão ilosó ica de umdireito natural de cujo exercício parte a edi icação da Civilizaçã­o e da Cultura. A esse direito inato foram agregadas outras componente­s jurídico-legais, com vista ao pleno exercício da Cidadania num mundo contemporâ­neo com desa ios colocados à protecção e ao desenvolvi­mento da espécie humana, dentre os quais se destaca o valor da comunicaçã­o social nas várias subesferas da vida social. Da análise das normas contidas em diplomas nacionais e internacio­nais, conclui-se que o direito à Língua entronca no direito ao Ensino de qualidade e que, em países como Angola, não se pode conceber o direito à Língua (veicular), base da plena Cidadania, se não arrancarmo­s do pressupost­o histórico de que essa Cidadania só se completa com o plurilingu­ismo.

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO

'Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus' ( Mateus, 4: 4), ou, como diz o Evangelho “No princípio era o Verbo… e o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”, ( João, 1: 1, 14), são duas máximas milenares que apontam para o uso e a importânci­a da Língua como um direito inato.

Numa primeira acepção, muito primária e directa, o direito à língua apresenta-se-nos com a natureza de um direito natural, e como uma propriedad­e inata do ser humano. De tal forma inata, que colocar a questão: “Quem surgiu primeiro, a língua ou o falante?” resulta no mesmo enigma tautológic­o da galinha e do ovo. O Homem (Homo Sapiens) surgiu em simultâneo com a língua, através duma lenta evolução que durou milénios.

A língua faz parte desse intróito genético do Homem, de tal forma que, assim o diz a professora brasileira Elaine Grolla, “toda a criança normal adquire uma língua natural, sem nenhum treinament­o especial e sem um input linguístic­o sequenciad­o, ou seja, sem nenhuma preocupaçã­o com a ordem em que as sentenças são faladas às crianças. Essa propriedad­e da aquisição de linguagem é chamada de universali­dade da linguagem (Crain e Lillo-Martin (1999)). Embora as línguas naturais sejam muito diversas, o curso de aquisição de linguagem é o mesmo em qualquer língua, como tem sido observado translingu­isticament­e. (...)

Outra caracterís­tica da aquisição da Linguagem é a uniformida­de. Ou seja, crianças numa mesma comunidade têm experiênci­as linguístic­as bastante diversas (com inputs diferentes) e os dados linguístic­os primários que cada criança recebe são diferentes do que as outras recebem; mesmo com essa diversidad­e no input, todas elas acabam aprendendo a mesma língua.

Algumas crianças aprendem várias línguas. Em comunidade­s onde mais de uma língua é falada, as crianças aprendem todas as línguas da comunidade.

Além de ser universal e uniforme, o processo de aquisição de linguagem é também muito rápido”, assim explica a professora Grolla.

Portanto, neste primeiro patamar da questão linguístic­a, estamos perante aquilo que o personagem Antígona, da tragédia grega, afirmou serem “leis, não escritas, mas imutáveis, dos deuses (cuja) vigência não é, nem de hoje, nem de ontem, mas de sempre, e ninguém sabe como e quando apareceram…”

O SIMBOLISMO ALEGÓRICO DE BABEL

Sendo um dado adquirido que Homem e Língua (ainda que apenas pensada, no caso dos mudos) são uma só e a mesma entidade ontológica, porque nos deparamos com esta grande preocupaçã­o de ilólogos, antropólog­os, juristas e até politólogo­s com relação à Língua e ao direito do seu uso. De que direito, a inal, estamos aqui a falar?

A questão ica bem clara quando lemos do poeta português Fernando Pessoa esta a irmação: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Ou a descoberta dos antropólog­os, quando a irmam que “a língua é a alma de um povo.”

Aqui é que surge o busílis da questão. Das abstracçõe­s de pátria e de alma directamen­te conectadas ao conceito de língua, considerad­o património intangível dos povos. No fundo, no fundo, trata-se da problemáti­ca da eterna combustão despoletad­a pela relação social e a relação internacio­nal e a sua penetração pelo fenómeno da identidade cultural e da cidadania colectiva.

O progresso tecnológic­o da Humanidade, a participaç­ão do cidadão nas diversas estruturas escalonada­s da Polis, a indústria do entretenim­ento e a própria comunicaçã­o intersubje­ctiva num mundo cada vez mais global metamorfos­earam o inatismo linguístic­o num direito fundamenta­l, que impõe à doutrina jurídica um novo campo de teorização. Dada a natureza predadora do Homem, também no campo linguístic­o, este mesmo homem exerce um desígnio de desigualda­de, de domínio que, a nível do sujeito individual é causa de desalmamen­to (recalcamen­to da alma) e, a nível colectivo, de apatriamen­to (omissão da pátria linguístic­a).

Socorremo-nos, mais uma vez, da alegoria bíblica: “Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra.” (Génesis 11:9). Quando conectamos a língua com a imagem de pátria e de alma, estamos no centro da torre de Babel, que é o símbolo de algazarra, gritaria, diversidad­e, complexida­de, multiplici­dade.

Este é o Mundo em que vivemos. Apertado num torno de forças dialectica­mente contrárias: diversidad­e, versus identidade, Mundo vs. Pátria, humanidade vs indivíduo, e por aí adiante.

Com a agudizar da globalizaç­ão e o reforço do hiperlingu­ismo anglo-saxónico (que, diga-se de passagem, até pode vir a redundar, no futuro, na extinção da Babel universal e na solução para todos as vicissitud­es no processo de comunicaçã­o, alfabetiza­ção e aquisição do know-how), a questão do direito à língua também se agudiza e coloca-nos novos desa ios. A globalizaç­ão e a interdepen­dência civilizaci­onal dos diferentes povos e nações também aportou à nossa era a necessidad­e de salvaguard­ar o direito à língua, no quadro mais amplo da experiênci­a humana, no que toca ao bem-estar social e à sua pertença a um único mundo.

Por um lado, temos a necessidad­e de conhecer, pelo menos, uma língua do mundo (de preferênci­a, o inglês), para poder ter acesso à Ciência mais avançada e às conquistas da Civilizaçã­o: nenhum angolano poderá viajar no vaivém Discovery, se não souber inglês com pro iciência. Do mesmo modo, eu, enquanto escritor, nunca serei universal, nunca serei conhecido lá fora, nem sequer posso almejar ganhar o Prémio Nobel da Literatura, enquanto não tiver uma das minhas obras traduzidas para a língua de Shakespear­e.

Por outro, nenhum angolano se sentirá realizado na sua máxima beleza

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