Nem só de pão vive o homem: a componente linguística da cidadania
O simples e grandioso acto de usar a Língua para expressar o pensamento, testi ica o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto dimensão ilosó ica de umdireito natural de cujo exercício parte a edi icação da Civilização e da Cultura. A esse direito inato foram agregadas outras componentes jurídico-legais, com vista ao pleno exercício da Cidadania num mundo contemporâneo com desa ios colocados à protecção e ao desenvolvimento da espécie humana, dentre os quais se destaca o valor da comunicação social nas várias subesferas da vida social. Da análise das normas contidas em diplomas nacionais e internacionais, conclui-se que o direito à Língua entronca no direito ao Ensino de qualidade e que, em países como Angola, não se pode conceber o direito à Língua (veicular), base da plena Cidadania, se não arrancarmos do pressuposto histórico de que essa Cidadania só se completa com o plurilinguismo.
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO
'Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus' ( Mateus, 4: 4), ou, como diz o Evangelho “No princípio era o Verbo… e o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”, ( João, 1: 1, 14), são duas máximas milenares que apontam para o uso e a importância da Língua como um direito inato.
Numa primeira acepção, muito primária e directa, o direito à língua apresenta-se-nos com a natureza de um direito natural, e como uma propriedade inata do ser humano. De tal forma inata, que colocar a questão: “Quem surgiu primeiro, a língua ou o falante?” resulta no mesmo enigma tautológico da galinha e do ovo. O Homem (Homo Sapiens) surgiu em simultâneo com a língua, através duma lenta evolução que durou milénios.
A língua faz parte desse intróito genético do Homem, de tal forma que, assim o diz a professora brasileira Elaine Grolla, “toda a criança normal adquire uma língua natural, sem nenhum treinamento especial e sem um input linguístico sequenciado, ou seja, sem nenhuma preocupação com a ordem em que as sentenças são faladas às crianças. Essa propriedade da aquisição de linguagem é chamada de universalidade da linguagem (Crain e Lillo-Martin (1999)). Embora as línguas naturais sejam muito diversas, o curso de aquisição de linguagem é o mesmo em qualquer língua, como tem sido observado translinguisticamente. (...)
Outra característica da aquisição da Linguagem é a uniformidade. Ou seja, crianças numa mesma comunidade têm experiências linguísticas bastante diversas (com inputs diferentes) e os dados linguísticos primários que cada criança recebe são diferentes do que as outras recebem; mesmo com essa diversidade no input, todas elas acabam aprendendo a mesma língua.
Algumas crianças aprendem várias línguas. Em comunidades onde mais de uma língua é falada, as crianças aprendem todas as línguas da comunidade.
Além de ser universal e uniforme, o processo de aquisição de linguagem é também muito rápido”, assim explica a professora Grolla.
Portanto, neste primeiro patamar da questão linguística, estamos perante aquilo que o personagem Antígona, da tragédia grega, afirmou serem “leis, não escritas, mas imutáveis, dos deuses (cuja) vigência não é, nem de hoje, nem de ontem, mas de sempre, e ninguém sabe como e quando apareceram…”
O SIMBOLISMO ALEGÓRICO DE BABEL
Sendo um dado adquirido que Homem e Língua (ainda que apenas pensada, no caso dos mudos) são uma só e a mesma entidade ontológica, porque nos deparamos com esta grande preocupação de ilólogos, antropólogos, juristas e até politólogos com relação à Língua e ao direito do seu uso. De que direito, a inal, estamos aqui a falar?
A questão ica bem clara quando lemos do poeta português Fernando Pessoa esta a irmação: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Ou a descoberta dos antropólogos, quando a irmam que “a língua é a alma de um povo.”
Aqui é que surge o busílis da questão. Das abstracções de pátria e de alma directamente conectadas ao conceito de língua, considerado património intangível dos povos. No fundo, no fundo, trata-se da problemática da eterna combustão despoletada pela relação social e a relação internacional e a sua penetração pelo fenómeno da identidade cultural e da cidadania colectiva.
O progresso tecnológico da Humanidade, a participação do cidadão nas diversas estruturas escalonadas da Polis, a indústria do entretenimento e a própria comunicação intersubjectiva num mundo cada vez mais global metamorfosearam o inatismo linguístico num direito fundamental, que impõe à doutrina jurídica um novo campo de teorização. Dada a natureza predadora do Homem, também no campo linguístico, este mesmo homem exerce um desígnio de desigualdade, de domínio que, a nível do sujeito individual é causa de desalmamento (recalcamento da alma) e, a nível colectivo, de apatriamento (omissão da pátria linguística).
Socorremo-nos, mais uma vez, da alegoria bíblica: “Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra.” (Génesis 11:9). Quando conectamos a língua com a imagem de pátria e de alma, estamos no centro da torre de Babel, que é o símbolo de algazarra, gritaria, diversidade, complexidade, multiplicidade.
Este é o Mundo em que vivemos. Apertado num torno de forças dialecticamente contrárias: diversidade, versus identidade, Mundo vs. Pátria, humanidade vs indivíduo, e por aí adiante.
Com a agudizar da globalização e o reforço do hiperlinguismo anglo-saxónico (que, diga-se de passagem, até pode vir a redundar, no futuro, na extinção da Babel universal e na solução para todos as vicissitudes no processo de comunicação, alfabetização e aquisição do know-how), a questão do direito à língua também se agudiza e coloca-nos novos desa ios. A globalização e a interdependência civilizacional dos diferentes povos e nações também aportou à nossa era a necessidade de salvaguardar o direito à língua, no quadro mais amplo da experiência humana, no que toca ao bem-estar social e à sua pertença a um único mundo.
Por um lado, temos a necessidade de conhecer, pelo menos, uma língua do mundo (de preferência, o inglês), para poder ter acesso à Ciência mais avançada e às conquistas da Civilização: nenhum angolano poderá viajar no vaivém Discovery, se não souber inglês com pro iciência. Do mesmo modo, eu, enquanto escritor, nunca serei universal, nunca serei conhecido lá fora, nem sequer posso almejar ganhar o Prémio Nobel da Literatura, enquanto não tiver uma das minhas obras traduzidas para a língua de Shakespeare.
Por outro, nenhum angolano se sentirá realizado na sua máxima beleza