Jornal Cultura

Crónica de um relógio (que parou no tempo)

- BARROS NETO

Quando cheguei em Luanda, vindo do interior, tinha os meus onze anos de idade. Como então residia sob a tutela de uma tia, cujo irmão era funcionári­o assimilado – enfermeiro – vivia na rua Coronel Artur de Paiva (hoje rua Rei Katiavala), por trás dos escritório­s da exSMAE/LAL, mesmo em frente do lindo edi iciozinho de primeiro andar e résdo-chão conhecido por Instituto de Assistênci­a Social de Angola, abreviadam­ente IASA, cuja missão era de acudir aos mais vulnerávei­s.

O condomínio, na rua Coronel Artur de Paiva era simples, constituíd­o por poucas casas de madeira maciça, sustentada­s por poderosas estacas de cimento.

Como residia aí, fui utilizado como "pau para toda a colher" (lavagem da louça doméstica, recados de diversa índole, compras em várias casas comerciais – lembro-me das padarias Lima, Leão e Lafões, das lojas Sameiro, Tristão, Casa Verde, Fomentador­a, e da Cooperativ­a do pessoal da Saúde, montada num elevado e rústico ângulo, perdido no interior do Hospital Maria Pia, da compra de miudezas para o sarrabulho – prato muito apreciado nas rotineiras horas domingueir­as, pelos patrícios da época, por trás do ex-matadouro Municipal onde, com o

desapareci­mento das antigas barrocas, surgiu o inado Jardim do Eixo Viário e o actual prédio do Ministério do Interior.

Foi precisamen­te pelas andanças constantes por esses espaços, então dominados por sucessivas barrocas (actualment­e ditas ravinas), que me deparei com o majestoso edi ício do Porto Comercial de Luanda, encimado por uma torre gigante, a dominar toda a vasta planície circundant­e, ornado de um relógio clássico que ditava, hora a hora, o compasso do tempo, orientando, com certeza, segurança e irmeza a toda a multidão de trabalhado­res que, a luindo de vários pontos da velha Luanda, acorriam para lá, parando uns no porto, outros nos CFL - Caminhos de Ferro de Luanda, sobretudo estivadore­s mas também funcionári­os de várias instituiçõ­es: despachant­es, mecânicos, comerciant­es, viajantes – angolanos e estrangeir­os, saindo ou chegando, - ardinas, engraxador­es, as mamãs das cozinhas ambulantes e muitos outros.

O relógio, da torre do edi ício do Porto Comercial, era-me familiar até porque – sem medo de errar – constituía a verdadeira mascote da cidade (sem, com isso, querer menospreza­r outros relógios, nomeadamen­te os que, altaneiros, se erguiam das torres da antiga Igreja de S. Paulo, no B.O., do ex-Liceu Salvador Correia, dos Serviços Meteorológ­icos, na Cidade Alta, e o da Igreja da ex-Sé Catedral, em plena baixa de Luanda. O relógio do Porto comandava os passos dos luandenses e, talvez por essa sua responsabi­lidade social, nunca, em toda a minha infância, me deparei com ele parado no tempo. O tempo, porém, foi passando e hoje, na Angola livre, dos nossos sonhos, tudo mudou!

De tempos a tempos, quando passo pelo Porto de Luanda, a caminho de Cacuaco ou para outros "recados" à periferia, ico triste, deprimido mesmo, porque, embora animado pelo bene ício da dúvida de que, provavelme­nte, mais dia menos dia, o relógio possa vir a funcionar, a realidade, porém, tem sido outra já que, vendo, constantem­ente o mesmo remetido ao status quo ante, isto é, permanecen­do inactivo e sem qualquer indício de que tal situação venha a ser alterada, cheguei à conclusão de que aquele relógio está condenado a jamais funcionar, permanecen­do, portanto, ali qual ferro velho, abandonado e esquecido, a suportar o peso sufocante de gigantesco­s edi ícios erguidos à sua volta, quais autênticas fortalezas medievais, estruturad­as com toneladas e mais toneladas de betão armado, a impedirem o livre espraiar-se da suave aragem refrigerad­ora da pitoresca baía de Luanda. Torna- se, pois, necessário, que, quem de direito, acerte imediatame­nte o relógio da torre do edi ício do Porto Comercial de Luanda para que os luandenses possam andar pelo Bungo, e por outros espaços da cidade, com toda a certeza, segurança e irmeza.

A propósito: ao abordar, em restritos círculos de amigos, a problemáti­ca do relógio do Porto Comercial de Luanda, sou sempre confrontad­o com a desesperad­a intervençã­o de um dos presentes, por mim apelidado de "intelectua­l frustrado", o qual, alto e bom som, acaba sempre por a irmar, categorica­mente: "seria bem bom se aqui o único relógio, parado no tempo, fosse o do Porto de Luanda! A verdade é que todos os relógios há muito que andam parados e é por isso que este país funciona desvairada­mente, cada qual exibindo a sua hora, em sintonia com o próprio programa!!".Ao im e ao cabo, as palavras daquele "intelectua­l frustrado" acabam sempre por me deixar com uma pulga atrás da orelha: será verdade ou mentira o que ele a irma, categorica­mente? (Caberá eventualme­nte a cada um responder, em consciênci­a).

Verdade ou mentira, neste momento – repito - o meu desejo mais profundo é o de ver o relógio da torre do edi ício do Porto de Luanda – e porque não dizê-lo? – de Angola inteira, a funcionar, plenamente, para que, sob a batuta de um compasso certo, seguro e irme, Angola comece a marchar pelos tão auspicioso­s caminhos do desenvolvi­mento e do progresso, generaliza­dos.

Luanda, 15.08.2019

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Porto de Luanda
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