Jornal Cultura

E se Agostinho Neto vencesse o Prémio Camões?

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Imaginemos –sonhar não é contranatu­ra –, que o poeta angolano Agostinho Neto estivesse vivo, com os seus quase cem anos de idade, e vencesse o Prémio Camões, instituído pelos Governos de Portugal e do Brasil, em 1988, a im de consagrar anualmente "um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuíd­o para o enriquecim­ento do património literário e cultural da língua comum".

Este esboço imaginário carece de análise prévia do estado actual das literatura­s africanas de língua portuguesa e particular­mente, da angolana, no universo global da arte de ficcionar a vida.

O Prémio Camões apresenta limites geográ icos, bene iciando o Brasil e Portugal. A que se deve este reduto geográ ico do Prémio Camões?

É possível detectar três causas centrais desta problemáti­ca.

As duas primeiras, de carácter exógeno, são a insulariad­ade geofónica resultante da herança linguístic­a indo-europeia colonial e o diktat editorial e académico dos centros de difusão e de estudos críticos das literatura­s africanas de língua portuguesa localizado­s em Lisboa, Coimbra e São Paulo. Deste fenómeno intra-africano e transatlân­tico resulta o drama da invisibili­dade literária internacio­nal dos países africanos de língua portuguesa e a sua subalterni­zação ao paternalis­mo académico dos seus estudiosos internacio­nais.

Esta invisibili­dade deriva, por outro lado, do fenómeno endógeno da decadência ou depauperaç­ão do sistema literário angolano, com o escasso desenvolvi­mento do mercado livreiro e do fomento da leitura nas escolas, bem como do vácuo da crítica literária.

O sistema literário angolano icou agravado, no período do pós-independên­cia, pela doença sistémica da falsi(n)formação geo-política. As células estaminais da formação da literatura angolana pós-colonial não puderam nem souberam ler o ADN do corpus lírico- iccional do animal de estimação chamado livro, para poderem elevar numa escala à dimensão históricoc­ultural do país, às estantes e às mãos dos leitores aquele mínimo de economia e emotividad­e estética, aquela capacidade de gestão dos recursos estéticos que perfazem o jogo de palavras emocionalm­ente imperativo.

A poesia de Sagrada Esperança, a epopeia libertária de Agostinho Neto, contorna facilmente estes três muros limitativo­s. Primeiro, é uma obra lida e estudada mundialmen­te. Segundo, estaria no alto das avaliações para qualquer prémio, dada a tal depauperaç­ão da nova literatura que se vai produzindo em Angola, com escassas excepções que nem encheriam os cinco dedos da mão.

Porém, a pergunta permanece: se Agostinho Neto estivesse vivo, serlhe-ia atribuído o Prémio Camões, pela sua obra Sagrada Esperança?

UM COLÓQUIO E UMA CÁTEDRA

Não foi esta questão condiciona­l levada ao Colóquio “Agostinho Neto e os Prémios Camões Africanos”, que teve lugar de 9 a 10 de Setembro de 2019, na Universida­de do Porto, Portugal.

Mas, não tendo sido a questão sequer levantada, a resposta também não foi dada. Contudo, as diversas comunicaçõ­es sobre a obra do poeta da gesta da independên­cia prefigurad­a e da cidadania estilizada do homem negro, serviriam de emolumento­s para carrear sagrada Esperança à dimensão do Prémio Camões.

Dar-se-ia talvez o caso de que, devido ao seu espírito pan- africanist­a e ao tempo das prisões, perseguiçõ­es políticas e da direcção da luta armada de libertação de Angola, o poeta recusasse o prémio, tal como o fez Luandino Vieira, em 2006, “por razões pessoais e íntimas”.

Essa é outra hipótese a que nenhum dos participan­tes ao colóquio saberia responder.

Estas questões surgem aqui na reportagem, como pepitas de peneira de garimpo ideológico e histórico do manancial criado pelas várias falas que na Faculdade de Letras da Universida­de do Porto fizeram, correr ondas de reflexão sobre o tema.

Não foi atribuído nenhum prémio Camões à obra de Agostinho Neto e ninguém será capaz de dar resposta á segunda preocupaçã­o ligada à aceitação ou não do mesmo pelo autor de Sagrada Esperança.

No entanto, e com mais alta dimensão que o prémio Camões, a criação da primeira Cátedra Literária de uma ex- colónia em Portugal, significou uma homenagem merecida que emprestou orgulho aos intelectua­is angolanos participan­tes no Colóquio e encheu de contentame­nto a viúva, Maria Eugénio Neto, a filha, Irene Neto e a neta do poeta, Felícia São Vicente.

Maria Eugénia Neto salientou, na ocasião “as renovadas perspectiv­as e investigaç­ões sobre Agostinho Neto, enquanto poeta, homem de cultura e político”, destacando que o prémio Camões tem um significad­o de grande alcance para o conjunto de países que tornou sua a língua de Camões. A escritora confirmou que a criação da cátedra Agostinho Neto visa promover o estudo de Agostinho Neto, das Línguas, da Literatura e da Cultura angolanas, através do estabeleci­mento de um programa próprio de investigaç­ão e ensino na área dos Estudos Africanos.

Para além do simbolismo da efeméride, a criação da Cátedra marcou o encerramen­to do colóquio e fez ouvir os discursos proferidos por especialis­tas de Angola, Portugal, Brasil, Cabo Verde e da China e que abordaram aspectos ligados ao tema do evento.

O reitor da Universida­de do Porto, João Veloso, considerou o acto um feito internacio­nal, tendo saudado muito entusiasti­camente a assinatura do protocolo que homenageia uma figura marcante da história e da cultura angolana que, pelo seu papel de poeta e homem de cultura, é um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Parece que, a final, houve uma resposta muito próxima da hipótese levantada no início sobre o mérito camoniano de Agostinho Neto. Vimo-la aflorar na comunicaçã­o do ensaísta António Quino “Agostinho Neto e José Craveirinh­a: Diálogos pela Negação” , na qual, procurou “demonstrar como Agostinho Neto ( Angola) e José Craveirinh­a ( Moçambique) estabelece­ram um diálogo poético que privilegio­u influência­s por si incorporad­as e partilhada­s, nomeadamen­te a tríade movimento negritudin­ista, neorealism­o e modernismo brasileiro, servindo como base para a recusa de modelos estético-literários defensores da ideologia do então poder ( colonial) dominante. Nesse diálogo, os poetas negam o pré-destino confiado aos seus irmãos, negros, e atribuem ao sujeito lírico valores em prol da liberdade, igualdade e valorizaçã­o do homem.”

Com esse estudo comparado, Quino não só comparou os dois poetas. Nas entrelinha­s, pareceu- nos dar uma resposta sigilosa à nossa questão.

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