E se Agostinho Neto vencesse o Prémio Camões?
Imaginemos –sonhar não é contranatura –, que o poeta angolano Agostinho Neto estivesse vivo, com os seus quase cem anos de idade, e vencesse o Prémio Camões, instituído pelos Governos de Portugal e do Brasil, em 1988, a im de consagrar anualmente "um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum".
Este esboço imaginário carece de análise prévia do estado actual das literaturas africanas de língua portuguesa e particularmente, da angolana, no universo global da arte de ficcionar a vida.
O Prémio Camões apresenta limites geográ icos, bene iciando o Brasil e Portugal. A que se deve este reduto geográ ico do Prémio Camões?
É possível detectar três causas centrais desta problemática.
As duas primeiras, de carácter exógeno, são a insulariadade geofónica resultante da herança linguística indo-europeia colonial e o diktat editorial e académico dos centros de difusão e de estudos críticos das literaturas africanas de língua portuguesa localizados em Lisboa, Coimbra e São Paulo. Deste fenómeno intra-africano e transatlântico resulta o drama da invisibilidade literária internacional dos países africanos de língua portuguesa e a sua subalternização ao paternalismo académico dos seus estudiosos internacionais.
Esta invisibilidade deriva, por outro lado, do fenómeno endógeno da decadência ou depauperação do sistema literário angolano, com o escasso desenvolvimento do mercado livreiro e do fomento da leitura nas escolas, bem como do vácuo da crítica literária.
O sistema literário angolano icou agravado, no período do pós-independência, pela doença sistémica da falsi(n)formação geo-política. As células estaminais da formação da literatura angolana pós-colonial não puderam nem souberam ler o ADN do corpus lírico- iccional do animal de estimação chamado livro, para poderem elevar numa escala à dimensão históricocultural do país, às estantes e às mãos dos leitores aquele mínimo de economia e emotividade estética, aquela capacidade de gestão dos recursos estéticos que perfazem o jogo de palavras emocionalmente imperativo.
A poesia de Sagrada Esperança, a epopeia libertária de Agostinho Neto, contorna facilmente estes três muros limitativos. Primeiro, é uma obra lida e estudada mundialmente. Segundo, estaria no alto das avaliações para qualquer prémio, dada a tal depauperação da nova literatura que se vai produzindo em Angola, com escassas excepções que nem encheriam os cinco dedos da mão.
Porém, a pergunta permanece: se Agostinho Neto estivesse vivo, serlhe-ia atribuído o Prémio Camões, pela sua obra Sagrada Esperança?
UM COLÓQUIO E UMA CÁTEDRA
Não foi esta questão condicional levada ao Colóquio “Agostinho Neto e os Prémios Camões Africanos”, que teve lugar de 9 a 10 de Setembro de 2019, na Universidade do Porto, Portugal.
Mas, não tendo sido a questão sequer levantada, a resposta também não foi dada. Contudo, as diversas comunicações sobre a obra do poeta da gesta da independência prefigurada e da cidadania estilizada do homem negro, serviriam de emolumentos para carrear sagrada Esperança à dimensão do Prémio Camões.
Dar-se-ia talvez o caso de que, devido ao seu espírito pan- africanista e ao tempo das prisões, perseguições políticas e da direcção da luta armada de libertação de Angola, o poeta recusasse o prémio, tal como o fez Luandino Vieira, em 2006, “por razões pessoais e íntimas”.
Essa é outra hipótese a que nenhum dos participantes ao colóquio saberia responder.
Estas questões surgem aqui na reportagem, como pepitas de peneira de garimpo ideológico e histórico do manancial criado pelas várias falas que na Faculdade de Letras da Universidade do Porto fizeram, correr ondas de reflexão sobre o tema.
Não foi atribuído nenhum prémio Camões à obra de Agostinho Neto e ninguém será capaz de dar resposta á segunda preocupação ligada à aceitação ou não do mesmo pelo autor de Sagrada Esperança.
No entanto, e com mais alta dimensão que o prémio Camões, a criação da primeira Cátedra Literária de uma ex- colónia em Portugal, significou uma homenagem merecida que emprestou orgulho aos intelectuais angolanos participantes no Colóquio e encheu de contentamento a viúva, Maria Eugénio Neto, a filha, Irene Neto e a neta do poeta, Felícia São Vicente.
Maria Eugénia Neto salientou, na ocasião “as renovadas perspectivas e investigações sobre Agostinho Neto, enquanto poeta, homem de cultura e político”, destacando que o prémio Camões tem um significado de grande alcance para o conjunto de países que tornou sua a língua de Camões. A escritora confirmou que a criação da cátedra Agostinho Neto visa promover o estudo de Agostinho Neto, das Línguas, da Literatura e da Cultura angolanas, através do estabelecimento de um programa próprio de investigação e ensino na área dos Estudos Africanos.
Para além do simbolismo da efeméride, a criação da Cátedra marcou o encerramento do colóquio e fez ouvir os discursos proferidos por especialistas de Angola, Portugal, Brasil, Cabo Verde e da China e que abordaram aspectos ligados ao tema do evento.
O reitor da Universidade do Porto, João Veloso, considerou o acto um feito internacional, tendo saudado muito entusiasticamente a assinatura do protocolo que homenageia uma figura marcante da história e da cultura angolana que, pelo seu papel de poeta e homem de cultura, é um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Parece que, a final, houve uma resposta muito próxima da hipótese levantada no início sobre o mérito camoniano de Agostinho Neto. Vimo-la aflorar na comunicação do ensaísta António Quino “Agostinho Neto e José Craveirinha: Diálogos pela Negação” , na qual, procurou “demonstrar como Agostinho Neto ( Angola) e José Craveirinha ( Moçambique) estabeleceram um diálogo poético que privilegiou influências por si incorporadas e partilhadas, nomeadamente a tríade movimento negritudinista, neorealismo e modernismo brasileiro, servindo como base para a recusa de modelos estético-literários defensores da ideologia do então poder ( colonial) dominante. Nesse diálogo, os poetas negam o pré-destino confiado aos seus irmãos, negros, e atribuem ao sujeito lírico valores em prol da liberdade, igualdade e valorização do homem.”
Com esse estudo comparado, Quino não só comparou os dois poetas. Nas entrelinhas, pareceu- nos dar uma resposta sigilosa à nossa questão.