Jornal Cultura

...e o beija-flor, que canta cantos de encantar!

- FERNANDO NEYA HUILIPENY

Passavam já 3 dias do concerto. O músico e cantor decidiu icar mais um pouco nas Terras Altas do Sudoeste para se sentir em harmonia com o lugar e consigo mesmo. Como ele gosta de fazer. Deixando o seu coração se abrir para o mundo, e a mente ao universo. Que dali, daquelas alturas, lhe pareceu estar mais perto. Como quando, na noite anterior, icara a contemplar o céu estrelado que só a Humpata oferece... O CONCERTO

Para ele e para os músicos, teriam gostado mais que tivesse sido um concerto ou, como se gosta de chamar cá na terra: um show, um espetáculo, mas saíram de lá com o sentimento de ter-se icado um pouco com o gosto de uma animação de jantar. Mas no inal não se importou muito com isso, "já estamos habituados a confundir e baralhar os géneros". Coisas da nossa terra. O importante foi, como sempre, a música. E a música, pelo que icara a perceber do que espelhou a alma dos que lá estavam, foi boa. O palco estava bom. Confortáve­l e sóbrio. "Gostámos da simplicida­de e do fundo preto, da ausência de artefactos". O som estava também bom, muito bom: a técnica, assegurada pelo Jorge Daniel Boano, foi das melhores... E a disposição da cena contribuiu de maneira especial para o espírito que progressiv­amente foi nascendo da música que saía daquele agrupament­o inesperado de músicos. Sob a iluminação daquela noite havia seis "instrument­os" apenas: duas violas-solo que, de esquebra, faziam ritmo; dois pares de congas – uma delas acompanhad­a pela dicanza e uma cozinha de percussões ligeiras (caxixi, shekere, afoché, triângulo...) –, uma bateria e uma viola-baixo. Mais a viola acústica de Mbanza Congo.

Como em todos os concertos, o tempo parou exactament­e naquele esperado momento em que se sabe que o som vai começar. Com os sete músicos instalados no palco, os nossos olhos ainda procuravam identi icar quem é quem, enquanto o cantor se acomodava, sentando-se num tabouret e nos distraía com um baile gestual improvisad­o ao tentar acertar a teimosa gola da sua camisa com a alça que lhe segurava a viola. Mal acabou de se acomodar, foi com um breve arranjo introdutór­io em Sol, Ré e Lá que a sua viola abriu o som. E logo a seguir, aquela sua voz de beija- lor, límpida e expressiva, familiar de qualquer um dos presentes na sala, melodiou, sem nos deixar respirar: "Nas margens da minha terra.../ Nas margens do rio Congo..." E, desde esses instantes, qualquer coisa nos indicou que o enigma daquela sala haveria de ser descoberto nessa noite. Mas nada assegurava ainda o que haveria de acontecer. O púbico estava ansioso, e ainda não imaginava o que estava para lhe ser oferecido.

Como não desejar que já se pudesse – com palavras cuidadosam­ente tecladas uma-a-uma – fazer reviver o som de um concerto e transmitir os sentimento­s irrepetíve­is como os que se viveram naquela noite de sexta-feira... à medida que os olhos percorrem essas palavras...? Que fosse já realidade o sonho de que um dia a tecnologia vá permitir que uma tal "transposiç­ão musical" produza esse milagroso efeito e que, ao se deixar conduzir por um texto como este, o leitor conseguiss­e "escutar" junto com a imagem que a leitura produz, o exacto som produzido no evento que se relata... ?

Mas por enquanto apenas dá para continuar a tentar contar classicame­nte o que aconteceu naquela noite de cacimbo no Lubango... e quando o cantor e os seus seis músicos subiram ao palco, já passava das 22h de um concerto anunciado prás 19h. E já haviam sido generosame­nte cantadas, durante cerca de hora-e-meia, uma quinzena de temas pelos miúdos do grupo Lev'Arte do Lubango (...a noite tinha, na verdade, começado com o pré-encanto de os ouvir cantar. Nem o barulho dos talheres nos pratos e das conversas desprendid­as puderam impedir que sentíssemo­s a emoção causada pela escolha que izeram para iniciar a sua introdutór­ia actuação: saiu um conseguido "O que eu quero", canção que teima tanto em levar às lágrimas aqueles que gostávamos tanto do tão querido arquitecto-músico... E a cidade é orgulhosa daqueles seus miúdos que se reúnem todas a semanas, feitos pirilampos, e insistem em levar a arte para si e levar a arte para todos os que dela precisam, lutando por dias de sol mais quente, raiando paz pão e amor. São uns miúdos bonitos, simpáticos, motivados pelo que fazem, humildes e carregando consigo as esperanças e as angústias pelas inaceitáve­is di iculdades com que toda a sua geração é – dolorosame­nte, depois de 44 anos de independên­cia – obrigada a viver e que, ainda assim..., são tão bons a cantar.

"Ai ai ai, ié.../ Nas margens do rio Zaire/ Nas margens da minha terra/ Nasceu a mulher mais bela, mulher mais linda...". Prosseguia o canto, como um lamento, e icou-se com a nítida sensação que algo especial estava a acontecer. Como se, sonhando, estivéssem­os a ver o colibri a bater as suas asas para se imobilizar no ar e desatar a cantar em pleno meio da noite. Os nossos sentidos estavam convocados. Os ouvidos se predispuse­ram. Os corpos na plateia ajeitaram-se nas cadeiras para melhor escutar. E quando se chegou à última estrofe daquela primeira parte cantada ("Não tenho poema para te dedicar/ é só o ritmo que eu tenho pra te dar..."), os instrument­os calaram-se, sincroniza­dos, para uma brevíssima pausa, um, dois, três segundos..., e nem tivemos tempo para manter a respiração suspendida. Começara a luir um som cujo ritmo aos poucos foi de inindo a caudamusic­al daquela melodia com que o concerto nascia. Já não viria mais voz, apenas os sete instrument­os. Que se apoderaram do tempo e parecia que se deixavam levar pelas águas do majestoso rio-fronteira que artisticam­ente decidiu desviar-se do seu leito e passar pelo local onde a Rainha Ginga nasceu. Retomada a respiração, reparámos que os olhos de Teddy Nsingui se ixaram no sorriso apenas disfarçado de Botto Trindade, sentados lado a lado, suas quatro mãos dialogando com uma cumplicida­de comovente: as guitarras de Benguela e de Maquela do Zombo tinham começado ali a celebrar as suas origens. O som dos solistas foi logo-logo acompanhad­o por uma batida alegrement­e "congolesa" que o Dinho Silva conseguiu tão bem gerar, acariciand­o apaixonada­mente com as baquetas as caixas e os pratos da sua bateria. A cobrir o fundo do ritmo, agitando-se atrás do cantor, como que para lhe manter a alma aquecida ao longo do concerto, as 4 mágicas mãos de Joãozinho Morgado e de Mick Trovoada afagavam as congas com o consolidad­o andamento e as variantes que traziam de longínquos carnavais do BêÓ, e das margens do Rio Cavaco. E no seu cantinho, de onde podia olhar para todos os seus mais velhos companheir­os no palco, também sentado, especialme­nte concentrad­o na sua sobriedade e na sua responsabi­lidade de conduzir o compasso daquela coda musical, Mias Galheta sabia que o destino daquele concerto dependia da a inação, da harmonia e da satisfação em que aquela primeira música resultasse: to

dos con iavam na sua arte de pautar o ritmo com o som da sua viola-baixo, que lhe saía como a água profunda, a que corre viscosa, raspando o leito do rio.

A cauda do vestido da nossa Raínha icou sublimemen­te de inida, os minutos prolongara­m-se como uma desejada a inação de instrument­os, de respiraçõe­s e de aqueciment­o no palco. Na platéia, pararam todos de comer e até as crianças se encostaram ao colo dos seus pais e familiares. Viraram-se os olhos todos para o palco. Estava claro, ninguém estava à espera que se nos fossem brindar, "de repente", com uma saudação assim. A boa música tem essa vantagem exclusiva e poderosa de penetrar-se-nos pelos ouvidos. E de mobilizar cada célula do nosso corpo. Todos os ouvidos se concentrar­am naquele ritmo de guitarras africanas e de batidas da nossa terra. Até a vinda-de-tão-longe Nossa Senhora do Monte – quem, que remédio, também icou a ser da nossa terra –foi apanhada despreveni­da. Mesmo fora da sala, foi vista a balancear-se na rigidez da sua estátua. Juram os miúdos que estavam lá perto: conseguia gingar. Os espectador­es e convivas esqueceram-se, como que mágicament­e, das vicissitud­es de tudo, das malambas das suas vidas, e só não se emocionou quem não podia mesmo.

Waldemar Bastos só sabia que voltar ao Lubango neste Agosto tinha inevitavel­mente de signi icar algo de especial. Não tinha tido tempo de perceber bem o que era, só o sentiu no dia anterior, quando aterrara na Mukanka. E naquele momento em que o concerto arrancou, soube perfeitame­nte que não precisava de voltar a colocar a voz naquele intróito. Sentado no seu tabouret, diante daquela "velha guarda" de músicos de excepção, fechou os olhos e sorriu apenas. Mas apesar de se ter calado, continuava a soar uma "voz". Nítida, deitada sobre a aconchegan­te harmonia que produziam os seus músicos. Todos percebemos: quem continuava a cantar era a sua guitarra de Mbanza Congo, de ali... de onde, segundo ele, nasceu a música africana. E quando já soavam os últimos acordes da cauda daquela primeira peça musical, quando o volume dos instrument­os carinhosam­ente baixava, nós vimos: os músicos olharam-se todos uns para os outros e parecia que concluíam, sem se falarem, que estava garantido o sucesso daquele concerto. Os corações icaram avisados. Algo de excepciona­l se haveria de produzir nessa noite. Quando a música é assim...! Quem sabe, se à leitura destas linhas já alguns leitores consigam antecipar a tecnologia de algum amanhã e consigam ter estado naquela sala e agora ouvem a música que aqui se tenta escrever... (a composição "Rainha Ginga" foi pela primeira vez gravada em Nova York, em 1997, como parte do álbum "Preta luz", ou "Black light").

O resto do concerto, as duas horas e tal de sons e de música, foi apenas daqueles momentos em que nos congratula­mos de termos podido estar lá, como quando se cruza sem querer com a felicidade. Nos sete pares de mãos que izeram soar aqueles instrument­os durante cerca de 2 horas e meia, circula um sangue carregado da arte e da sabedoria musical da nossa terra. Músicos de primeira. Desde as mesas da plateia, icámos simplesmen­te maravilhad­os.

O concerto teve lugar na sexta-feira 9 de Agosto, na localmente conhecida sala Enigma, um formato de sala de bailes e de cerimónias sociais, na cidade do Lubango. Sala que tem um toque arquitectó­nico que se insere bem no que esta cidade quase sempre nos acostuma: o bom gosto. Sala que vem prestando muitos serviços à cidade, ao longo dos últimos anos.

WALDEMAR BASTOS E O LUBANGO

A canção "Lubango" – que acabaria naturalmen­te por ser cantada várias vezes naquela noite – foi composta há 40 anos, durante uma visita que izera à província da Huíla. Mas só quando, poucos anos mais tarde, chegou ao Brasil, é que a juntou a sete outras canções que, em momentos diferentes ao longo daqueles anos, se foram armando, e que resultaram no seu primeiro disco. Que integrou ao todo 8 temas musicais: quatro no "Lado A" e quatro no "Lado B", oferecidas com uma capa de praia e juventude.

Reconforto­u-nos ver que mantém a mesma tranquilid­ade e a mesma sabedoria, quando anunciou ao público que o veio ver: "vou cantar-vos algumas músicas do novo disco que estou a preparar para este ano, para ver como vocês, público, reagem..., para ver se gostam. Vou cantar as músicas antigas que não posso deixar de cantar aqui, mas quero experiment­ar umas novas, de um álbum que já tenho quase pronto e que sairá ainda este ano. Já tenho o título, mas não vos vou revelar ainda...". Acabou por cantar apenas duas novas canções.

A meio do concerto, quando terminou a primeira das vezes em que cantou "Lubango" parecia que o víamos meditar e perguntar-se: "Mas porquê aqui? Porquê o Lubango?". Vimo-lo a sorrir. Coisas inexplicáv­eis, mistérios da sua existência que começaram com o legado de tocar guitarra de uma certa maneira que lhe deixou Mbanza Congo, à sua nascença. Reacomodou-se no tabouret e reconforto­u-se pela sensação de felicidade que lhe davam os dias recentemen­te – e inalmente – passados a visitar a cidade onde nasceu, quando ainda se chamava São Salvador do Congo, e onde não tinha podido regressar ainda. Fechou mais uma vez os olhos e reviveu os momentos em que se ajoelhou, ao pisar a terra que em seguida beijou. A humidade do ar quase subequator­ial que ali o invadira trouxera-lhe uma sensação nunca vivida antes, de pertença e de liberdade. "O mundo tem sido generoso para mim... Como tantos outros, sofri e sofreram os meus, chorei e revoltei-me, mas há uma razão para o sofrimento, que tentei explicar num discurso diplomátic­o que me convidaram a proferir há alguns anos em Berlim, onde regressei com gosto. Socorri-me do poeta carioca do século XIX, Francisco Octaviano de Almeida Rosa: 'quem passou pela vida e não sofreu/ só passou, mas não viveu'". E as lágrimas que de repente lhe humedecera­m o rosto obrigaram-no a parar a música. Mas já tinha avisado o público daquela noite: havia algo de especial que trazia dentro de si e que ele queria contar. Que o público não se deixasse enganar. Não conseguiu evitar que a longa caminhada, que o levara tão longe na sua carreira, lhe trouxesse as lágrimas ao estar ali. Carregavam sem dúvida o sal de todas as di iculdades que temperaram a sua vida, as incompreen­sões e infortúnio­s vividos, as tragédias que afectaram a sua família, mas eram lágrimas de felicidade. Nos disse sem dizer. Lágrimas que re lectiam o orgulho de uma vida persistent­emente construída, e ao mesmo tempo abençoada. Lágrimas que brilhavam especialme­nte nessa noite por querer anunciar ao seu público que estava a vir ao mundo, naquele mesmo momento do concerto, o seu primeiro neto, lá longe em Los Angeles. Mas secaram-se-lhe quase de seguida ao sentir, vindo de traz de si, a vibração silenciosa dos acordes que lhe enviavam os seis músicos: todas aquelas doze mãos tinham de repente parado quando ele começara a falar e não tinha havido som por uns instantes, as cordas de todas as guitarras se imobilizar­am, as congas repousaram, e as baquetas nem se mexiam. Tentou contar ao público o que sentia naquele momento da sua vida e as palavras saiam desajeitad­amente. E depois, com pudor, sem desculpas, a música recomeçou devagarinh­o e o concerto prosseguir­a. O público estava com ele. Se o Lubango tem morango...

A vez anterior que estivera no Lubango havia sido em 2005, levando a Banda Maravilha consigo. Haviam tocado no pavilhão desportivo da cidade e regressara­m com o sabor estranho de se ter mobilizado um público tão reduzido. Também desta vez foi pouco mais de uma centena e meia de pessoas que assistiram ao concerto. Quem sabe se um dia não haverá de sair de Mbanza Kongo pela estrada e cantar no Ambriz, em Catete, no Dondo, na Gabela e em Porto Amboim. Novamente cantar no Lobito e em Benguela, cantar no Chongorói, em Caluquembe e em Cacula, para terminar na Mapunda do Lubango, um concerto na Tundavala, oferecendo-nos uma versão de Lalipô em nyaneka!? Tournées que se espera ser possível fazer no país um dia, com os companheir­os de música que queiram e possam, e que lhe proporcion­em o contacto directo com a população, para permitir à música realmente desempenha­r o papel que ele gostaria que desempenha­sse.

Podemos nos orgulhar, como país, por termos músicos com um talento tão grande e que aperfeiçoa­ram a sua arte como uma necessidad­e vital, como um dever de existência, como uma postura ética na vida. Muitos têm de fazer da arte musical, dos discos, dos concertos, uma forma de trabalho, para viver, para subsistir. Mas trabalhar a produzir arte e música de qualidade devia ser algo diferente. O nosso mundo artístico deveria permitir mais do que o modelo comercial e de protagonis­mo onde subir à ribalta é mais importante que seguir um caminho, um projecto artístico. A ideia de homenagear a guitarra africana é um caminho que Waldemar Bastos escolheu para um dos seus projectos, talvez o principal. Juntar o talento de guitarrist­as nossos e de além, de diferentes origens e de diferentes estilos, e embrenhar a música de uma africanida­de que, segundo ele, nasceu em Mbanza Congo. Há variadas maneiras de valorizar a nossa música e dela extrair a mensagem que pode levar. Às almas carentes de espiritual­idade e embrenhada­s de uma ocidentali­dade resistente­mente dominadora. O que faz falta é que o trabalho, a dedicação, a profundida­de e a sinceridad­e prevaleçam. Quantos projectos destes fazem falta! Que exponham e potenciem o talento e o amadurecim­ento que só se consegue com carreiras temperadas pelo tempo. E que têm muito para ensinar. Para nos dar.

Os músicos que Waldemar Bastos trouxe ao Lubango e que permitiram este concerto têm em si mesmos a capacidade individual e colectiva de representa­r o que de mais importante há no nosso sentimento de angolanida­de. Alguns

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