Jornal Cultura

Prémio Nacional de Cultura e Artes 2019 descomprim­e assédio político contra a Literatura

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sem pedir permissão. Logo que entrara, antes mesmo de fechar a porta, meu olhar esbarrou com a chávena de café fumegante que estava sobre a sua secretaria: o meu estômago soltou um grito maior do que o do Hiace do cobrador cordato. Porém, o Kamatumbo não se alterara. Não o ouvira, com certeza.

Fechei a porta ruidosamen­te. Kamatumbo não voltou a ouvir. Continuava com os seus olhos ixados no documento que lia. Puxei a cadeira e sentei-me à frente dele. Levei o meu olhar ao seu relógio. Eram 8 horas e 37 minutos. Com o meu olhar, recuei duas horas e meia no seu relógio.

Kamatumbo levou a chávena à boca. Depois de dois curtos tragos, porque o café estava muito quente, voltou a pousá-la. Olhou para o seu relógio. Espantou-se. Levantou-se com brusquidão. Foi à janela. Aberta, escabichou a rua, nos dois sentidos. Certamente, fora con irmar se as horas no seu relógio estavam certas. Fechou a janela. Novamente sentado, mais um sorvo no seu café. Encostou as costas à poltrona. Colocou as duas mãos sobre a sua grande pança. Fechou os olhos. O silêncio no luxuoso gabinete deu lugar aos seus ressones. Dormitava.

Eu prendi-lhe o meu olhar. Olhava o sobe-desce da sua pança, que era um poço de veneno. Era venenoso aquele homem. Acompanhan­do o seu bucho dançante, mudei de ideia. Não vou degolá-lo. Vou abrir-lhe a barriga para expurgar todo o veneno que nela há… pensava. No gabinete, subitament­e, o restolho cresceu. Os meus ressones juntaram-se aos dele. Adormeci num repente.

- Kamatumbo !!!!! – O vocifero do chefe do Kamatumbo arrancou-nos do sono.

Kamatumbo saltou da sua poltrona com grande susto. Levantou o seu forte braço direito, apontando para a cadeira onde eu estava, e gritou numa voz embargada:

- Chefe, olha a cobra. Cuidado!! - Qual cobra? Estás a sonhar, seu preguiçoso dum raio. São horas de dormir, ó Kamatumbo?! Dormir enquanto temos muito trabalho por fazer?!!!

- É mesmo cobra, chefe! – Kamatumbo insistia, medroso. – É cobra, chefe, mas a cara dele é de cão, chefe. - Cão?!

- Sim, Chefe. Daquele cão, não, daquele cidadão que atendi na sexta-feira.

- Cão cidadão que atendeste?! Põete daqui para fora. Estás demitido. Cão cidadão és tu que pensas que me enganas. És um inimigo dos novos tempos. Fora, seu cão!!! – O berro do chefe ultrapasso­u as paredes do gabinete luxuoso. Alcançou os ouvidos das pessoas que estavam na rua.

Levantei-me. Assim que dei o primeiro passo, Kamatumbo, medroso, lançou-se ao corpo do seu chefe. Este, arreliado, empurrou-o ao chão. Vendo-o numa fotografia dolente, soltei uma gargalhada de escárnio. Abandonei o gabinete. O chefe dele também saiu, mas antes de fechar a porta disse-lhe:

- Tens dez minutos para abandonar este gabinete. E leva a tua cobra, cão!

Na entrada do edifício, era grande o grupo de pessoas que a apinhava. Nos rostos, havia alegria. Todos queriam ver o Kamatumbo a passar, porque o ultimato de dez minutos que lhe fora dado também chegara aos seus ouvidos.

OPrémio Nacional de Cultura e Artes (PNCA), a mais distinção do Estado angolano aos fazedores de Artes e Letras, foi este ano entregue, na área da literatura, ao irreverent­e escritor José Eduardo Agualusa, velada ou, por vezes mesmo ostensivam­ente ostracizad­o por certas vozes da política e da cultura angolana, não tanto pela sua escrita, mas pelas suas intervençõ­es polémicas no domínio da política e da poesia da geração da guerrilha. Esta "abertura" sugere uma clara descompres­são do assédio político que o Governo angolano vinha mantendo sobre o mundo da Literatura, cuja praça forte era a União dos Escritores Angolanos.

O facto de o ter júri destacado a contribuiç­ão das obras de Agualusa “para o surgimento do leitor emancipado” e “para o fortalecim­ento da cidadania e da liberdade de expressão” é um claro manifesto de reconcilia­ção do poder com os escritores contrários ao Estado patrimonia­l que vigorou durante décadas no país.

A acta do júri do prémio refere que José Eduardo Agualusa foi distinguid­o pelo seu contributo para a projecção da literatura angolana no mundo, graças a um “extenso e vital percurso criativo”. “Eduardo Agualusa é su icientemen­te ousado, disruptivo e comprometi­do com as causas e problemáti­cas sociais e políticas fundamenta­is deste tempo, o que lhe permite, amiúde, posições intelectua­is que privilegia­m o dissenso, a controvérs­ia e a polémica re lexiva”.

Para além do escritor José Eduardo Agualusa, o Prémio Nacional de Cultura e Artes 2019 consagrou, nas artes plásticas, o pintor Sebastião Joaquim N'Debele Cassule, conhecido como “Don Sebas Cassule”, pelo percurso, pela inovação e pela participaç­ão em eventos nacionais e internacio­nais, que lhe valeram já prémios dentro e fora

- Lá vem ele!!! – Alertou um deles, assim que Kamatumbo assomou.

- Cão Cidadão, fora!!! Querias enganar o chefe? Fora, Cão Cidadão!!! – Eufóricos, em uníssono, gritaram os demais.

Por parte das pessoas nasceu uma explosão de dichotes contra o antigo homem-forte do luxuoso gabinete do do seu país. O júri destaca ainda a forte componente criativa da sua obra, consubstan­ciada em trabalhos de pintura e desenho, desenvolvi­da ao longo de mais de 20 anos “com muita perícia”.

O compositor, intérprete e autor Alberto Teta Lando foi distinguid­o, a título póstumo, “pelo conjunto da sua obra, longa, rica, bela e dura trajectóri­a musical que soube cantar os diferentes momentos históricos do país, misturando o drama das realidades do contexto vivido e a esperança de os angolanos reviverem a paz”. As suas composiçõe­s tornaram-se clássicos do cancioneir­o angolano e continuam a ser interpreta­das por artistas nacionais e estrangeir­os, acrescenta o júri.

A promotora Globo Dikulu foi galardoada na categoria teatro, pelo FESTECA – Festival Internacio­nal de Teatro do Cazenga, um festival anual de teatro, realizado ao longo de 14 anos de forma “contínua e ascendente”. O júri destaca a criativida­de artística, a estética dos espectácul­os e a forma peculiar de abordar questões da realidade do país da Globo Dikulu, que se tem servido do teatro para “in luenciar positivame­nte o cresciment­o intelectua­l e sociocultu­ral dos jovens sobre os usos e costumes de Angola”.

O investigad­or António Domingos, “Toni Mulato”, recebeu o prémio destinado à área da dança, pelo seu percurso dedicado à recuperaçã­o das danças carnavales­cas, particular­mente a dança “Cabecinha”, uma das poucas danças 10º andar da Comandante Valódia, sempre acompanhad­os de longas cachinadas. Kamatumbo, com as mãos vazias, tal como aí chegara, prendeu o olhar no chão. Perdera toda a petulância. Grande vergonha dominava-o. Andava lentamente, à guisa de cão que tinha a alma ferida. Faltava-lhe apenas a cauda entre as pernas. populares carnavales­cas que mantêm os traços culturais da angolanida­de.

No cinema e audiovisua­l, o prémio coube a Dorivaldo Cortez, com o júri a destacar a “veia criativa” com que tem produzido obras audiovisua­is para a educação sobre cidadania nacional.

A historiado­ra Constança Ceita foi a premiada no âmbito da Investigaç­ão em Ciências Humanas e Sociais, pela sua obra O estranho destino de um sertanejo na África Central e Austral: A transcultu­ração de Silva Porto (1838-1890), atendendo ao “carácter inovador, a pertinênci­a cienti ica e académica” e o contributo para “um melhor conhecimen­to da sociedade angolana e por conseguint­e para uma melhor compreensã­o das sociedades africanas”.

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Escritor José Eduardo Agualusa

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