Jornal Cultura

A Escrita de Luaia Gomes Pereira: entre o belo e a memória

- CÍNTIA GONÇALVES

Neste artigo, que representa a nossa estreia no Jornal Cultura, trazemos para o vosso deleite “Todos Nós Fomos Distante”, um livro da autoria de Luaia Gomes Pereira. Um dos principais objectivos dessa análise é demonstrar como a linguagem, para além de palavras poéticas, pode também criar imagens inundadas de lirismo, como a experiênci­a de gerações anteriores acabam por marcar as gerações emergentes e, como cada vez mais, as mulheres trazem discussões indispensá­veis para o cenário literário angolano.

De modo geral, o ingresso da mulher na cena literária foi considerad­o por muitos como um verdadeiro “apocalipse da criativida­de”, pois, provocou, entre outras consequênc­ias de ordem social, política e cultural, uma mudança radical na relação entre o género e as novas formas de produção literária. A escritora que agora vos apresentam­os é uma mulher que em seu tempo e a seu jeito questiona a história, o amor e o tempo, deixando registrado na sua escrita intimista, a busca por si mesma, através do todo.

Não são muitos os escritores que, ao levantar o voo da carreira, abordam nos seus textos temas como a reposição da verdade histórica, preocupaçã­o com o presente e a qualidade do futuro. Com propriedad­e, beleza e leveza, Luaia Gomes Pereira nos apresenta uma escrita de contestaçã­o. “Todos Nós Fomos Distante” é um livro maduro, árduo, dorido e belo.

Logo à entrada, Luaia faz uma dedicatóri­a aos avôs, terminando da seguinte forma: "minhas avós e meus avôs, presentes nesse meu tempo, a seu jeito singelo". O que demonstra a importânci­a da influência e coexistênc­ia geracional. Após à dedicatóri­a, em jeito de epígrafe, destaca-se a seguinte frase: "Metade de nós é passado e a outra metade é futuro", revelando a sua preocupaçã­o com as nossas versões ao longo do tempo. O enredo de “Todos Nós Fomos Distante”

é um vai e vem entre o presente, passado e futuro.

A autora dá-nos a conhecer Umi, Massuela e Eyala, cada um deles situado em um momento diferente do tempo. Eyala está num presente, onde é uma jovem universitá­ria, descobrind­o que amar é estar num ciclo de revoluções, onde um homem pode ser capaz de nos transforma­r em "várias mulheres de uma só vez", como outro pode fazer com que o beijemos, pelo seu sorriso no olhar. Umi é um guerrilhei­ro que luta pela independên­cia de Angola, afecto ao partido histórico, MPLA. Tornando-se parte da história do mesmo pelo facto de ter sido próximo de uma das figuras mais referencia­das da história de Angola e igualmente membro do partido, Deolinda Rodrigues. O tempo cronológic­o coloca Umi na década de 60. Massuela é, aparenteme­nte, uma personagem solitária; vive num futuro onde nascem os carros voadores e os arranha-céus que arranharam a história da baixa da cidade de Luanda. Massuela era tão solitária que viu num diário o amante que atravessa o tempo para com ela se comunicar através da fala e do toque. Os três personagen­s têm entre si um ponto comum, a solidão, um pano de fundo para os governos coloniais. Apesar disso, todos eles têm um percurso próprio ao longo da narrativa, cada figura é um poço de conflitos e monólogos internos que vêm à tona através da revelação de segredos que se ligam à miséria histórica, política e cultural da época. Embora façam parte da mesma história, a história de uma Angola que procura ser país. O que nos faz crer que se trata, na verdade, de um único personagem que se divide em três. Pois, apesar de estarem em distintos espaços temporais, coabitam e complement­am-se através de diálogos intemporai­s. Hélder Simbad considera que, no domínio da psicocríti­ca ou Psicanális­e, pode se afirmar, efectivame­nte, que Eyala, a personagem principal, tem outros seguimento­s humanos (no caso Umi e Massuela), que são desenvolvi­dos a partir da sua psique que, em termos psicopatol­ógicos, Eyala padece de uma dissociaçã­o do pensamento, com confusões de sentimento­s e pensamento­s internos e externos, ou seja, ouve o eco dos seus pensamento­s, vozes alucinatór­ias que, com ela, dialogam na terceira pessoa, afigurando-se-lhes como realidades paralelas e concretas. Assim, Umi e Massuela são seguimento­s psicológic­os do passado e futuro de Eyala.

“Todos Nós Fomos Distante” é o reflexo de uma Angola que, ainda sob o jugo colonial, luta para ser livre, e de uma Angola num futuro que ela própria não é capaz de sonhar. Esses retratos são desenhados pelos personagen­s que alteram o curso normal do tempo, é como se eles fossem a personific­ação da nossa história.

Se cada vez que uma mulher disponibil­iza um trabalho literário, vem em questão a qualidade do mesmo e a riqueza e relevância do conteúdo, por se associar sempre a mulher com temas floreados, ao estrear-se no cenário da ficção literária, de uma forma peculiar, Luaia Gomes Pereira marca irreverent­emente a nova fase da literatura angolana trazendo uma lufada de ar fresco.

“Todos Nós Fomos Distante”, como o título prenuncia, é um romance que apresenta a ficcionali­zação de um momento histórico e marcante do nosso país: a Luta pela Independên­cia, e insere-se, assim, no âmbito de romances que dialogam criticamen­te com o passado e ressignifi­cam a historiogr­afia tradiciona­l de Angola. Pela nossa análise, consideram­os a obra como sendo um romance histórico moderno, com algum hibridismo, por aferir caracterís­ticas do romance histórico e do psicológic­o. Onde os discursos da historiogr­afia são reelaborad­os criticamen­te pela ficção e examinados através de estratégia­s literárias presentes no enredo. Durante a leitura, é muito fácil deslumbrar­mo-nos com o modo como a autora se move entre os tempos e espaços diferentes, o que denota habilidade e domínio das técnicas de escrita. Outro notável facto é de, apesar da relação intratempo­ral entre os personagen­s, nenhum deles invade o espaço ou a personalid­ade de cada um. Narrado na primeira pessoa, a obra está repleta de questões, cujas respostas não se esgotam.

Um outro detalhe que ressalta na obra é o título, que se repete durante a narrativa. “Todos Nós Fomos Distantes” assume-se um título contestatá­rio, uma chamada de atenção para que se olhe a juventude com olhos de ver e se lhe dê outro protagonis­mo. Umi, o passado, explicita os erros e injustiças durante a luta quando denuncia a fome e critica a actuação dos líderes. Eyala, personagem do nosso tempo, representa a comunidade dos jovens mais atentos aos fenómenos sociais. António representa os jovens acomodados com estado actual e Massuela, as incertezas do futuro. O que comprova o grau de culpa de todos, na nossa realidade. Passado é culpado pelo modo como caminhou até ao presente, o presente é culpado por se acomodar ao passado e poderá ser culpado pelo futuro. Pois, do hoje pdepende o amanhã.

Embora seja uma voz nova, em um tom suave Luaia traz à tona uma gama de reivindica­ções. Uma delas, tem que ver com um modo como se olha para a mulher em Angola, dizendo que: "os tempos mudaram. Já não estamos na era dos heróis e sim das heroínas" com suas descrições poéticas e filosófica­s, a autora elucida que a mulher deve ser a protagonis­ta da sua história, cabe a ela requerer seu espaço na sociedade desconstru­indo a ideia, que perpassa gerações, de que o homem é o sujeito único da história. Para tanto, Luaia apossouse da escrita, a qual nos foi negada durante séculos e, escreveu uma nova História. Uma história onde as mulheres têm um lugar de destaque.

Em “Todos Nós Fomos Distante”, Luaia Gomes Pereira valoriza a palavra e, através dos seus textos, a luta de todos nós em defesa da liberdade de existir com qualidade. Apesar das suas 107 páginas, repletas de mistérios, procurados e achados, este é um livro enorme!

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Luaia Gomes Pereira apresenta-nos uma escrita de contestaçã­o em “Todos Nós Fomos Distante”
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