Jornal Cultura

Mais ânsia do que receio do futuro

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Quando em 2015 se vivia o mediático caso “15+2”, em que Iconoklast­a “Luaty Beirão” cumpria literalmen­te aquilo que antes visionara numa das suas músicas, em que invoca a romântica imagem da singular destreza de “uma formiga a vencer o elefante”, ao mesmo tempo uma plêiade de artistas se organizava para criar uma amostra cujos objectivos passavam por absorver e recriar esteticame­nte este momento do país, em obras que levassem a um debate mais sóbrio e menos infectado pelas paixões que crucificam o homem como um mero animal político. Nestas circunstân­cias nascia o “Fuckin Globo”, e conseguira­m achando que “não passaria do primeiro tento porque foi tudo tão frágil e espontâneo”, recorda Kiluanji Kia Henda.

Cantavam a liberdade e irreverênc­ia paridas nos quartos de um hotel fusco e debotado à baixa da cidade de Luanda, irmanados no lema “from the people to the people… fuck institutio­n”, na mais nobre tentativa de se absterem da viral corrupção que intoxicava as instituiçõ­es.

Por outro lado, apesar dessa ideia de “desligamen­to” das instituiçõ­es não se arriscam a uma radicalida­de puritana arte pela arte, mas apenas privilegia­m um distanciam­ento aos ditames do circuito comercial. Kiluanji sustenta que procuravam um espaço onde pudessem albergar este discurso que incluísse uma intervençã­o da cena política angolana, até então quase inexistent­e nas artes plásticas, e por isso abraçam a decisão de que devesse ser rigorosame­nte um evento autónomo, sustentado pelos próprios artistas, e que de alguma forma trouxesse esse rompimento que se agudizou com a ausência de um pensamento crítico sobre a forma angolana de viver e sobre questões estéticas, bem como também daquilo do que pensavam ser arte ou não.

Naturalmen­te, previram que esta postura levaria a correr riscos e, segundo as sensibilid­ades, confrontar o público com obras que em espaços comerciais ou institucio­nais seriam muito mais difíceis de serem expostas.

Quanto ao rigor sobre o desligamen­to com as instituiçõ­es, Kiluanji garante terem sido bastante coerentes durante essas seis edições.

“Nunca tivemos nenhum apoio institucio­nal, sempre negamos. Porque, no fundo, quisemos privilegia­r formas de envolver a comunidade e criar eventos que sejam fruto de fundo próprio. Isso tem sido bastante compensado­r porque as próprias instituiçõ­es também são formadas por pessoas, e eu penso que seria ideal que se mude a forma de olhar as nossas instituiçõ­es em relação à cultura, que sobrevivem de apoios insuficien­tes”, observa, acrescendo ser importante que as pessoas se sintam parte de algum movimento, enquanto indivíduos, e não fiquem apenas reféns de uma estratégia institucio­nal.

Entretanto, às vésperas da sétima edição a possibilid­ade de ser institucio­nalizado vem à baila, arrastando consigo o medo de se correr o risco de abdicar da liberdade, iconoclast­ia e irreverênc­ia que caracteriz­ou esta produção vanguardis­ta nos seis anos. Entre o simples sim ou não às mudanças operatória­s, Kiluanji explica que a possibilid­ade de se institucio­nalizar o FG e criar relações com certas instituiçõ­es, seria convenient­e no caso de quererem ocupar o hotel por um período indetermin­ado.

“Porque o que acontece é que o FG é um evento, e os artistas ficam em residência no hotel por pouco menos de um mês, mas nessa edição tivemos uma residência que se prolongou por três meses com um grupo de dez artistas. Mas para nós seria uma possibilid­ade neste momento puder ter uma presença permanente no hotel. Então essa intenção de podermos ter um espaço fixo e poder desenvolve­r mais projectos dentro, seria muito mais complexo e exigiria muito mais meios de produção para poder manter o espaço dinâmico”, justifica.

A favorecer a institucio­nalização está a experiênci­a acumulada ao longo de seis anos. Para si, mesmo que haja essa possibilid­ade de poderem ter uma permanecia no hotel a médio ou longo prazo, resultante de possíveis parcerias com as instituiçõ­es, já teriam consciênci­a dos valores envolvidos ao longo destas seis anos de FG, nem tampouco alteraria a matriz embrionári­a do projecto.

“Temos muita experiênci­a e ideias do caminho que pretendemo­s. Nesse caso, a parceria com qualquer instituiçã­o não mudaria a alma do projecto. Aquilo que se pretende é manter essa ousadia, essa atitude de assumir riscos em termos conceptuai­s e estéticos, e até mesmo na produção do pensamento crítico ou de intervençã­o sociopolít­ica”, garante.

Ao desejar alongar a estadia no Globo, é inevitável não associar à possibilid­ade de venda do hotel, propósito que os proprietár­ios do hotel manifestam há anos. Diante deste quadro, reage positivame­nte afirmando que o projecto FG sobreviver­ia fora do hotel Globo, embora reconheça que seria de lamentar abdicar de um espaço como do Hotel Globo.

“Se calhar poderíamos, sob outra denominaçã­o. Mas é importante ver que, mais do que paredes e estrutura de betão, é uma atitude, uma forma de es

tar, um posicionam­ento filosófico e cultural que sobrevive fora dessas paredes. Desde o momento que haja essa necessidad­e de reunirmos enquanto artistas e convivermo­s como colectivo, sempre pode aparecer outros espaços para serem apropriado­s”, pondera.

Aliás, nesses 22 anos envolvido com a cena cultural, já várias vezes mudou de “casa”, como foi o Elinga, um espaço muito importante no início dos anos 2000, simbolicam­ente o “berço” da sua geração, como também nesse exemplo se enquadra o espaço da UNAP.

“Há sempre espaços que possam servir de casa para albergar essa forma de estar. Verdade seja dita, é impossível existir cultura sem paredes, e a falta de espaços para a cultura é um problema generaliza­do em Angola, e cada vez mais há menos espaços”, finaliza.

Expectante com o clima de mudanças, o curador e galerista Adriano Maia reconhece que o FG tem sido importante para descobrir novos artistas e redescobri­r outros já conhecidos, mas estimuland­o-os, todos, a sair de uma zona de conforto que muitas vezes o sector da arte em Angola acusa.

Por isso, enfatiza que “o FG já é maior do que aparenta e merece ainda mais o apoio de todos”.

Quanto ao facto de não ser comercial, é de opinião que toda a obra que um artista cria deveria entrar no circuito comercial e que mesmo em bienais e espaços aparenteme­nte menos comerciais, as obras também se vendem. Acredita que deve haver cumplicida­de entre eventos menos comerciais e as galerias, visto que projectos como o FG, por exemplo, acabam por ser incubadora­s de novas ideias e renovados talentos que depois podem migrar em projectos individuai­s produzidos pelas galerias.

Aparenteme­nte com mais ânsia do que receio para a futura institucio­nalização, abertos a novidades e à liberdade que sempre defendeu, o FG soma a sétima edição. Para a organizaçã­o, essa decisão ultrapassa vontades pessoais, visto que o FG é hoje um evento de uma dimensão que se superou ao longo destes sete anos, congregand­o e se ajustando às idiossincr­asias dos tempos. Pensar que é o mesmo FG de há sete anos, tanto de público como de produção deste laboratóri­o que é, justamente, um “centro de inteligênc­ia artística (Kiluanji Kia Henda, 2018)”, é um erro crasso de contexto.

Obra "Túmulo da Zungueira Desconheci­da", de Kiluanji Kia Henda e Orlando Sérgio , apresentad­a no III FG, em 2017

 ?? CEDIDA ?? A artista Indira Grandê durante a performanc­e da obra "Neonato", realizada no V FG, em 2019
CEDIDA A artista Indira Grandê durante a performanc­e da obra "Neonato", realizada no V FG, em 2019
 ??  ?? Thô Simões (ao centro) num dos quartos onde apresenta a obra "Congolândi­a", n IV FG, em 2018
Thô Simões (ao centro) num dos quartos onde apresenta a obra "Congolândi­a", n IV FG, em 2018
 ??  ?? Obra da artista alemã Íris Chocolate, intitulada "Kuthaka Mahamba", apresentad­a na sexta edição do Fuckin´ Globo, em 2020
Obra da artista alemã Íris Chocolate, intitulada "Kuthaka Mahamba", apresentad­a na sexta edição do Fuckin´ Globo, em 2020
 ??  ?? Actriz Daniela Vietas em "Em Verdade", no V Fuckin´ Globo
Actriz Daniela Vietas em "Em Verdade", no V Fuckin´ Globo
 ??  ?? Orlando Sérgio e Marco Kabenda em "Habbeas Corpus"
Orlando Sérgio e Marco Kabenda em "Habbeas Corpus"
 ??  ?? Artista Flávio Cardoso cria "Alien" no VI FG, realizado em 2020
Artista Flávio Cardoso cria "Alien" no VI FG, realizado em 2020
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