A dança sagrada nos consagrados voos da autora
Há cerca de seis meses lemos e relemos o poemário de Olinda Beja. Logo, fizemos um juízo de primeiro mergulho, sentida que foi a bênção das suas poéticas águas. Com tempo, deixamos que assentassem as ideias e partimos para uma mais incisiva leitura e releitura da DANÇA SAGRADA DO FALCÃO. Hoje, traçamos estes singelos parágrafos onde, sem receio algum, vimos reconhecer a épica pitada de sal no conjunto das poéticas páginas desta autora que é nossa confreira há já longa data.
Lendo, mergulhamos na sugestiva dança das palavras e, poeticamente, embebedamonos com o ritmado som “dos clássicos e infernais instrumentos africanos de percussão com destaque para os bumbos, tambores, canzás e etc…”
Sentimos a vitalidade e a força espiritual do KILÊLÊ, a outra proibida dança tradicional africana cuja dimensão telúrica é simplesmente incomensurável, em razão do seu desaparecimento, como consequência de uma acção administrativa ainda no primeiro quartel do século passado nas sagradas terras de S. Tomé e Príncipe.
Entretanto, é por demais consabido que a cultura de um povo não nasce nem morre por decreto e, na realidade, acaba sempre ignorado todo o agente estatal que ousa decretar a extinção das mais íntimas manifestações da alma de qualquer que seja a comunidade, assente num determinado espaço geo-histórico que, alimenta e suporta um sentido sentimento de pertença.
Quanto a obra, deparámonos com uma profunda e telúrica construção poética no Proémio. Segue-se-lhe uma outra perspectiva. A do resgate de uma certa ancestralidade, não menos conseguida, mas que em jeito coloquial sugere interacção e diálogos Entre Margens, associando e dando voz aos trisavôs, bisavôs, avôs e muitos pais. Muitos filhos e muitos mais netos e bisnetos.
Noutros segmentos do livro, Entre fado e o batuque, como os falcões, a autora ensaia voos e nos Silêncios recorre aos rios da memória viajando em Noites de riso largo como quem, em função do passado, procura «delícias de vinho de palma fermentado na dança dos quintés/nos quadris sedentos de bulawês e puítas».
A premonição também é motivo presente na Esperança de sempre regressar aos locais sagrados de quem, por exemplo, partiu um dia -criança e inocente! -rumo aos grandes mundos para lá do mar deixando sua Ilha distante. Depois as Imaginações de tudo e mais alguma coisa. As danças dos corpos cheios de curvas e requebros, os cheiros, as localidades, as florestas, as roças, os rios e suas margens, os frutos silvestres os sotaques, as vozes dos animais, o canto das aves, as verdejantes dimensões ambientais, o orvalho das distantes manhãs, as chuvas eternas, as plantações, o ambiente das empolgantes colheitas e etc. Imaginações próprias de quem esperançadamente sonhou e sonha.
É certa e justamente isso que faz deste título um singular, verdadeiro e incomparável achado da santomensidade no, conteudístico e formal, universo das belas letras africanas e não só.
No plano da argumentação, despertou-nos a atenção, a colocação e o alcance dos versos de Sophia de Melo B. Andresen: «Feliz aquela que efabulou o romance/depois de o ter vivido/a que lavrou a terra e construiu a casa/mas fiel ao canto estridente das sereias/amou a errância do caçador e a caçada…».
Na mesma senda, os versos de uma Maria de Lourdes Horta que nos diz: «A minha pátria sim, por certo, é também aquela ilha caverna/dentro de mim lugar onde/é possível revisitar sempre o êxtase da fábula da infância/ ouvindo a música secreta dos temporais do génese/no paraíso perdido».
E, não descoramos o facto de que ambas, (as citadas referências) aparecem no livro, precedidas de uma sublime pérola da sabedoria africana em razão da necessidade de um certo aprendizado e uma certa adaptação do Ser, no caso os leitores, pois estas… orientam a postura, os comportamentos e, até mesmo, os gestos e as nossas acções.
Não raras vezes temos dito que, para nós, a apreciação e a leitura do livro, inicia com um atento olhar pela capa e, finaliza na contracapa. Neste, o título é sem sombra de dúvidas um metafórico achado total e, desde já os parabéns a autora. Temos o Falcão como um importante motivo identitário e cultural do povo das ilhas do Rei Amador.
O vaidoso voo de um falcão remete-nos e sugere neste livro a excessiva carga erótica das danças africanas sendo que dançando, em pares ou mesmo individualmente, os actores apresentam-se sempre de forma garbosa. Muito elegantes e descontraídos.
Assim, Olinda Beja, propõenos também uma poética de afirmação, de confirmação e de resgate cultural. Manifesta a sua sensibilidade, e exala um visível domínio na cultura da versificação. É justamente o que lhe permite fazer diferente. Totalmente solta. Livre e africanamente criativa, buscando, afirmando e reafirmando um estilo com identidade própria, enfrentando os desafios e sempre predisposta para novos voos.
Finalmente, não sendo este, um ensaio crítico e porque sinto que já vou relativamente longo, resta-me lembrar que, Olinda há muito deixou de ser uma neófita literata e/ou uma simples amante da literatura. Olinda é uma das mais representativas escritoras de S. Tomé e Príncipe, dentre as raras vozes femininas no seu contexto literário sendo a autora que mais vezes se apresenta em nome da terra além mar onde está domiciliada e onde acabou por sofrer na infância, por imposição, um feroz processo de aculturação do qual há já algum «muito» tempo se livrou desde quando em 1986 se consumou a primeira viagem de regresso ao solo sagrado do qual, haviam algumas décadas, se tinha separado ou melhor dizendo… lhe tinham separado. Malhas que, então, tecia o império!