Um golpe à soberania do Jindembu e ao projecto "Residem"
Omês de Outubro de 2021 teve um mau começo para a corte de Kibaxi Kia Mubemba e para o Projecto RESIDEM com a morte aos oitenta e oito anos de idade do Príncipe dos Jindembu. Nascido aos 7 de dezembro de 1933, na aldeia de Kifulo, António Salvador, pertencente a linhagem de Kinambua, foi o vigésimo sétimo soberano dos descendentes de Mwene Nimi Ya Lukeny a governar as terras dos Jindembu e o sexto desde que se institucionalizou o cargo de Príncipe dos Jindembu, cujo poder tem como sede a Mbanza de Kibaxi Kia Mubemba Kongo, nome de um dos filhos do fundador do Reino do Kongo, um dos maiores e poderosos Estado pré-colonial da África Ocidental.
Carpinteiro de profissão, António Salvador foi antecedido no trono por 26 soberanos provenientes de diversas linhagens, designadamente Kibaxi kia Mubemba Kongo, líder da geração, cujo antropónimo acabaria por se converter no topónimo da actual vila de Kibaxi, por Minguedi Ya Pinchi da geração de Kiximbi, Mbondo ya Fosso e Macolome Mbengula, da geração de Kissalafina, Fosso dya Munhongi e Bombo Fula, da geração de Kinambua, Ngonga Munda, da geração de Kimbando, Xidi-ya Mukingi, da geração de Mene Tonga, Mbondo ya Mulango, da geração Kinzumba, Mene ya Kungi – Kimbaxi, Petolo ya Xidi – Kanoka, Francisco Sardinha, Kessongo e Sebastião F. Sardinha, da geração de Kanoka.
Exerceram igualmente a soberania a partir da Mbanza de Kibaxi Cassule Meno, da geração de Kinquezo, Falo ya Nginga, da geração de Kinambua, Cassule Meno-b, da geração de Kinquezo, Mbeji ya Fosso, de Kinzembele, Lourenço Muginga, de Kimbaxi, Falo dia Ntony, de Mene Tonga, Cassule-ngombe, de Kissalafina, José Simão (primeiro príncipe da região), de Kaculo Kaximba, Lourenço João Augusto, de Kabo-neyango, João Manuel Paca de Kinzumba, José Bibi, de Kimadia e de João Baptista Pedro, de Kicongo.
Antes de ser Príncipe dos Jindembu, António Salvador, exerceu de 1986 a 1999, a função de soba da aldeia de Imbundo, actual Kamboma, tendo sido coroado como Príncipe no ano de 2000, funções que exerceu até ter sido declarado morto a 1 de outubro. Embora ostentando a função de Príncipe do Jindembu, que corresponde a Ndembu dos Jindembu, a geografia do seu poder não alcança a generalidade dos soberanos que ostentam o título de Ndembu, dado o facto de ser na região dos Jindembu, espaço onde se esbatem as fronteiras linguísticas e culturais entre os povos de língua Kimbundu e Kikongo (embora a dinâmica das migrações forçadas e voluntárias tenham introduzido franjas étnicas de Ovimbundu e Cókwe) e politicamente repartida desde os seculos XV e XVI por soberanos com maior ou menor poder que respondiam pelo título de Ndembu, em que uns declaravam-se ser filhos do Kongo, caso de mwene Kibaxi Kia Mubemba Kongo e outros filhos dos Jingola (Ndongo), a exemplo de Kakulo Kangola (António Angola) e Zombo a Ngola, só para citar, embora existam outros que consideram-se filhos do Kongo, concebidos no ventre da Rainha Njinga Mbandi.
Embora polissémica, a expressão Jindembu, é a forma original e genuína da designação dos líderes, dos territórios por eles governado e da população. Porém, a origem do termo se associa à existência no território de chefes locais com o apelido de Ndembu, cuja categoria político-social é superior à dos sobas. Na chegada dos Portugueses ao reino do Kongo,
cabia a alguns Jindembu, parentes próximos do soberano Konguês, guardar as fronteiras meridionais do Estado.
As frequentes alterações na divisão político-administrativa operadas pelo Estado colonial, que como se sabe, nunca obedecia as fronteiras encontradas, desarticularam em certa medida, o exercício do poder local na região, deixando de existir na maior parte dos casos, subordinação hierárquica directa entre as regiões controladas pelos diversos Jindembu, embora alguns perdessem o estatuto de superioridade que ostentavam no período pré-colonial, por supostamente se terem rendido ao colonialismo, durante as guerras de ocupação.
O interesse pelo conhecimento do passado histórico dos Jindembu teve a sua géne
se em 2014, quando a ânsia de frequentar o doutoramento em Ciências Históricas pela Universidade de Oriente, República de Cuba, remeteu-nos à necessidade de conceber um projecto de investigação que sustentaria a tese. Estando a trabalhar como docente na Escola Superior Pedagógica do BenGO, SENTIMO-NOS DESAFIADOS EM compulsar os distintos programas de história aos mais variados níveis de ensino, tendo sido constatadas algumas lacunas no conhecimento que se tinha sobre a resistência contra o avanço colonial travada no território dos Jindembu, que de resto, correspondem a 90% do espaço da actual província do Bengo, embora em termos culturais e populacionais, os Jindembu abrangerem também as províncias do Uíge e Cuanza-norte, conforme A CONFIGURAÇÃO DOS MAPAS Actuais. Porém, é no território do Bengo, onde estão maioritariamente distribuídos. Assim nasceu o projecto RESIDEM, destinado ao estudo da Resistência dos Jindembu, que em 2015 evoluiu para projecto institucional, inscrito no Observatório da Educação e Desenvolvimento Social (OBEDS), plataforma que congrega e promove projectos virados não só à inVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA MAS Também à extensão universitária realizada na Escola Superior Pedagógica do Bengo.
Desde a sua conversão em projecto institucional, o RESIDEM tem sido um catalisador para a produção de artigos CIENTÍFICOS ALOJADOS EM BASES de dados indexadas e um mecanismo para operacionalização da cadeira de Seminário Especializado por parte dos estudantes do 3º e 4º ano do curso de Licenciatura em Ensino da História e, cumulativamente, uma via para a realização de TRABALHOS DE fim DE CURSO, EM que mais de quarenta estudantes obtiveram as suas licenciaturas, defendendo monografias COM TEMÁTICAS QUE RETRATAM aspectos políticos e sócio -económicos dos Jindembu.
A nível das pós-graduações, o projecto já gerou uma tese de doutoramento, sobre a “estratégia de resistência dos Jindembu contra a penetração portuguesa (1872-1919) ”, e conta com três projectos de dissertação aprovados pelo Conselho CIENTÍFICO DO MESTRADO EM Ensino da História, que decorre no ISCED de Luanda.
OS INGENTES DESAFIOS A QUE O projecto apresentava, levaram o seu coordenador executivo à busca de parcerias com várias entidades singulares e colectivas que se tornaram colaboradores do RESIDEM. Foi neste contexto que Dom António Salvador, tornou-se num parceiro de excelência do Projecto, tendo participado nos fóruns estudantis realizado pelo projecto e recebido na sua corte, dezenas de estudantes do projecto e reencaminhado outros para os seus ministros que constituem a sua extensa mas funcional estrutura do poder local, designadamente: Mé Massa, Mé Capita (Masculino), Mé Capita (feminino), Mé Issenguele, Mé Lumbo, Mé Seme, Mé Mídio, Mé Mambo, Mé Hapa, Mé Mbanji, Mé Kalufele, Mé Kassanda, Mé Sakala, Mé Nguindo, assim como aos seus conselheiros, Mé Katende, Mé Pungo, Mé Mukiama, Mé Kuma, Mé Fulo e Mé Kapandanda.
Não obstante a riquíssima documentação histórica disponível no Arquivo Nacional de Angola e nos Arquivos Portugueses (Militar, Torre do Tombo, Ultramarino, Diplomático…) os testemunhos que têm sido colhidos a partir das tradições e fontes orais, assim como também aos estudos históricos e etnológicos dos povos da região, feitos durante os trabalhos de campo e submetidos a uma cuidadosa crítica histórica, têm contribuído para a triangulação das fontes informativas e proporcionado, noções fundamentais para colmatar as lacunas ainda existentes no vasto manancial de fontes escritas, por um lado, e por outro, têm permitido a desconstrução de certos equívocos e preconceitos construídos na perspectiva eurocêntrica bem como facilitar a construção de uma nova perspectiva histórica, que se anseia continuar a publicar, sempre que existirem apoios, sempre com o espírito de tentar contribuir para a preservação dos valores culturais dos Jindembu, que se encontram progressivamente em declínio.
Jindembu dispunham de uma riqueza em termos de rituais, dentre eles se destacam os fúnebres e os de sucessão ao trono. Rezam as tradições que quer a morte como a sucessão, eram acontecimentos bastante ritualizados, com ligeiras variações procedimentais, de região para região mas com vários aspectos comuns.
O poder dos Jindembu, se enquadrava nos princípios da realeza sagrada, o que quer dizer ao Ndembu se devem cuidados muito especiais, quer na saúde como na doença, sendo que em caso de doença, devem ser os membros da corte, os makotas, a zelarem pelo seu estado de saúde, estando a população impedida de ter conhecimento da situação, salvo uma mera informação que dá conta que o Ndembu está constipado. Em caso de morte, cuja primazia no conhecimento é da exclusividade de Mé Massa, Mé Pungo e Mé Katende, que comunicavam o falecimento, depois de transcorrer dois ou três meses após o enterro do Ndembu, altura em que se conhece o seu sucessor. Enquanto isso, a comunidade apenas saberia que o Ndembu tem constipação grave.
A morte do Ndembu nem sequer poderia ser do conhecimento de sua esposa, que era afastada do contacto com o esposo em caso de doença, estando o Ndembu sob cuidado dos membros da sua corte, designadamente Mé Pungo e Mé Katende, cumulativamente responsáveis pelo anúncio da gravidade do Ndembu, pela realização dos rituais fúnebres, geralmente feitos antes do corpo ser entregue à família e responsáveis temporários do “Lumbo” até ao empossamento do novo Ndembu, de tal sorte que, para os que integravam a corte, logo já davam conta da real situação, isto é a consumação da morte do Ndembu, cujo corpo era conservado numa tarimba (armação de paus onde as pessoas armazenam a loiça), até o dia do enterro.
A morte de um Ndembu que poderia ocorrer de forma natural ou pela violação das normas de sua comunidade, tinha um tratamento especial e diferenciado dos restantes membros da comunidade e da corte. Todos rituais relacionados com a morte eram cumpridos com rigor, sendo os funerais realizados à meia-noite ou à madrugaDA (SIMBOLIZANDO O fim DE UM ciclo governativo ou o nascimento de outro ciclo de poder). Os restos mortais dos soberanos transportados de tipoia da Mbanza de Kibaxi até um cemitério próprio situado na região de Ngombe do Kibaxi que dista a cerca de 18 km da sede, e enterrados, na mesma cova onde foram sepultados todos os que já passaram no trono. Neste caso, tiravam-se os ossos dos primeiros que eram embrulhados num pano ou cobertor e de seguida colocados numa esteira e só depois enterrava-se o outro.
Durante séculos, Jindembu mantiveram bem sólidas, todas as suas estruturas culturais, que não desmoronaram com as diversas lideranças que detinham, o que pressupõe dizer que a sucessão ao trono era feita com base a requisitos esPECÍFICOS QUE SE CONFORMAM com a sua cultura, cuja dinâmica resulta do período pré-colonial e que acabaria por ser alterada durante o período colonial em que se assistiu a uma transmutação radical no prestígio e papel desempenhado pelas lideranças comunitárias não só em Angola mas sobretudo nos territórios africanos administrados com recurso ao sistema de administração directo em que a África é assaltada, para além da sua soberania e sua independência, mas também em seus valores culturais que acabariam por ser abalados, tendo o colonialismo deixado marcas que tiveram implicações no modo de viver e pensar das comunidades, sobretudo por parte das autoridades do poder local.