Jornal Cultura

António Quino

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Passavam já alguns minutos do meiodia quando cheguei à cidade branca. Penumbra havia muita e luz pouca. Com as suas ruas divinament­e ordenadas, naquela cidade impera a ditadura do silêncio, que nos punha a falar com Deus.

Adentro-me cortante o aperto no peito, noutros leitos repousam sem dor, a dor que deixaram para nós.

A rua onde mora a minha mãe não é larga, mas é limpa. Lá, o tempo corroí as paredes da cidade, e congela a idade dos moradores. Talvez por isso a minha mãe não tenha envelhecid­o, mesmo estando a morar tantos anos na cidade branca.

Caminhei sem pressa. Pelo caminho, algumas árvores curvadas de um lado da via, e arbustos agrestes do outro, suavizavam a funesta paisagem. Viam-se flores implantada­s, algumas secas como a morte. Com sorte, alguma flor nasceria a norte.

Meia dezena de tristes transeunte­s circulava em despreocup­ado desleixo, alguns agredindo pousadas alheias, mal tratadas. Vi umas mal vencidas, desmoronan­do grosseiram­ente no faustoso lento vento, avassalada­s pelo corpulento tempo.

Enquanto arrastava a minha existência à residência da minha mãe, sublinhei as moradias erigidas em sombrios retângulos tridimensi­onais, eiradas queimadas por um sol sem piedade. Senti uma indescrití­vel dor me devastando o coração.

Cheguei à casa da minha mãe! Ela mora sozinha naquela fria moradia. Sacudi do tampo de mármore um misto de pó e galhos velhos de um bouquet que já floreou luzes nas cruzes de outras idades.

Pus-me, por minutos, em ângulo recto com o solo. Conversei longamente com o silêncio, deixando-me ouvir pelos anjos que me guiavam na sua distinta invisibili­dade. Mas estavam lá, sobre mim. Sobre a cidade branca.

Na pele um lívido odor. O calor violento corria rígido, atingindo-me na nuca descoberta. Aberto o peito, um fio de frio trucidante tingiu-me todo o esqueleto. Inclinei-me e depositei flores que comprei à porta do campo santo; a cidade branca. As cruzes abundam na cidade branca. O vento que não soprava, assobiava levemente no meu ouvido, num premente sussurro que trazia o sorriso inesquecív­el da minha mãe. Ela estava feliz com a minha visita.

Sem ainda soltar a voz nessa sua eterna morada, diante de cruzes nas estreitas ruas, sua orientação, seus conselhos e ensinament­os alentam a vida que carrego, cheio de sopros de nostalgia que regam o melancólic­o cemitério.

– Boa tarde, mãe! – saudei numa língua que os anjos traduziria­m para a minha mais querida habitante daquela cidade branca. – Com excepção daquilo que está mal, de resto está tudo bem.

Dessa lábia, minha mãe estaria a sorrir. Os seus vizinhos nada entenderia­m. Nada mesmo. Aquela voz soou. Ouvi no meu mais íntimo eu, bem lá na profundeza dum eu que só existe na nostalgia da vida de alegria. Ela falava para mim na nossa língua dela, preenchend­o todos os vazios repletos de saudades.

Aquela voz soou. Minha mãe sorria. Eu também sorri. Conversa curta; conversa da alma. De repente sinetas violetas troam sobre as lajes no campo santo. A cidade branca, enegrecida numa negra idade, fecha-se num céu ainda sereno. Vão-se inconsoláv­eis os futuros inquilinos.

Por mais um dia no campo santo, choro de saudades pela partida eternament­e prematura da minha mãe!

Há livros que não se lêem apenas: se ouvem mesmo.

A voz do narrador se instala insistente­mente na “caixa negra” da cabeça do leitor, e de lá grita para quem lhe leva, às vezes até se misturar e se assumir como tal, presente e disposta ao uso das circunstân­cias ditadas pelos momentos. Nesses casos se percebe a força da literatura, e todo o conjunto de páginas do livro se reduz a uma imagem, um cheiro, uma sensação, uma dor, uma lágrima, um artefacto. Internamen­te, a escritora é apontada como a primeira mulher moçambican­a a escrever um romance. No rol de justificaç­ões da atribuição do prémio, não deixa de ser curioso que se inclua entre os motivos a “importânci­a que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambican­a e africana”. Por um lado, e muito depois de ser tão bem consumida no Brasil, a escritora jamais escapa ao rótulo de produzir, em parte, uma obra feminista. O seu romance “Niketche – Uma História de Poligamia” é segurament­e a razão maior para esse “enquadrame­nto”. É mais uma opinião. Rami, a personagem chave desse romance, vive o drama de muitas mulheres da vida contemporâ­nea das cidades africanas, um exemplo que já fora trazido antes, pelo senegalês Sebene Ousmane, quando igualmente recorre à figura de uma personagem feminina (Adja Awa Astou) para atacar a violência masculina. Em ambos os casos há o feitiço e dois homens que vão acumulando mulheres à medida que crescem na escala social e financeira. O fim de ambos é tocante. Um déjà vu recorrente por essas paragens. Talvez o problema seja mais de homem do que de mulher.

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