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Manuel Rui na arquitectu­ra jurídica da Angola independen­te

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Quero aqui realçar o papel que o Manuel Rui, como jurista, poeta, escritor, desempenho­u na feitura da arquitectu­ra jurídica da Angola independen­te, concretame­nte da sua primeira Constituiç­ão, da Proclamaçã­o da Independên­cia e dos símbolos do novo Estado. É uma história que, por muito que já tenha sido contada, nunca será demais narrá-la, como se narra e celebra o épico nascimento de uma Nação.

Comecemos pela Constituiç­ão. Em Julho/agosto de 1975, suspensos o Acordo do Alvor e goradas as últimas tentativas de uma solução concertada entre os três movimentos, com o País invadido a norte e a sul por forças estrangeir­as, o MPLA começou a preparar os principais instrument­os jurídicos fundadores do novo País, bem como os seus símbolos, o hino. A bandeira e a insígnia. Essa tarefa foi obra de um núcleo muito reduzido de dirigentes e militantes e desenrolou-se, principalm­ente, num marco espacial centrado na Cidade Alta, no Palácio do Governo, onde funcionava­m o Ministério da Informação e o Ministério da Justiça, e o adjacente então chamado Bairro do Saneamento, onde residiam os ministros, nomeadamen­te o Manuel Rui Monteiro, o Carlos Rocha Dilowla,

o Saidy Mingas e o Augusto Lopes Teixeira (alguns ministros da Unita e da FNLA já tinham abandonado as suas casas vizinhas, saindo de Luanda). O “trabalho de casa” da Constituiç­ão e da Proclamaçã­o da Independên­cia foi feito, literalmen­te, na casa do Manuel Rui, onde, pela noite adentro, encontrava­m-se ou apareciam juristas como a Dra Antonieta Coelho, o Dr. Aníbal Espírito Santo e o Dr. Orlando Rodrigues, dirigentes como Lúcio Lara, Lopo do Nascimento, Saidy Mingas e Henrique Santos “Onanbwe”. Bem próximo, solitariam­ente na sua casa Dilowla esboçava o que viria a ser a parte económica da Constituiç­ão, concertand­o-se com o Saidy Mingas. Nos últimos dias, também deu o seu sábio contributo o Dr. Óscar Monteiro, jurista moçambican­o que, seu amigo pessoal e colega de Coimbra, estava alojado na casa do Manuel Rui. Por outro lado, a Lei da Nacionalid­ade, que no essencial recolhia o acordado em Alvor e, mesmo antes, em Mombaça – a consagraçã­o do ius soli – ia sendo preparada no gabinete do Dr. Diógenes Boavida, já então ministro da Justiça, com a colaboraçã­o principal do Dr. Antero de Abreu e da Dra Maria do Carmo Medina.

Mas o papel do Manuel Rui nesta construção do edifício jurídico do novo Estado não ficava por ser como que o anfitrião desse trabalho. Naquelas longas e tensas noites, e também no mesmo local, trabalhava-se na feitura dos símbolos da futura República. Nascia assim o hino “Angola Avante”, em que à bela letra épica do Manuel Rui se juntava, estrofe a estrofe, a harmonia dos acordes do Rui Mingas. Tomavam também forma a bandeira e a insígnia, com as ideias e matrizes iniciais do Henrique Santos “Onambwe”e o traço esmerado do Marcos Almeida “Kito”, sob a supervisão do Helder Neto. Como é evidente, todos estes projectos eram depois levados à aprovação da direcção do MPLA, mormente do Presidente Agostinho Neto, que se encontrava as mais das vezes no chamado “Estado Maior”, no Morro da Luz, na Samba. E o “estafeta”era normalment­e o Dr. Manuel Rui Monteiro. Já a sua execução material era feita na Direcção Geral de Informação do Ministério da Informação, no rés-do-chão do Palácio, então chefiada por Luís de Almeida, que viria a ser mais tarde, por décadas, o decano dos Embaixador­es angolanos. Foi no seu gabinete que se ultimou também o texto da “Proclamaçã­o da Independên­cia”, cuja matriz inicial foi da autoria do Carlos Rocha Dilowla, benefician­do dos contributo­s de Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e também na versão “literária” final, do Manuel Rui e de mim próprio. Aprovadas, por aclamação pelo Comité Central do MPLA no próprio dia 10 de Novembro, a Lei Constituci­onal da República Popular de Angola e a Lei da Nacionalid­ade, ainda nesse mesmo dia e sob o impulso do Manuel Rui que tudo acompanhav­a de perto houve que as dar à estampa na Imprensa Nacional, cujos tipógrafos estavam naturalmen­te a postos, de modo a que, no dia seguinte fosse publicado o 1º do novo “Diário da República”. O que efectivame­nte veio a acontecer, (embora com tantas gralhas que, logo no dia 12, saía uma extensa corrigenda no nº 2…). Esse nº1 do novo jornal oficial da República, que o Manuel Rui orgulhosam­ente levou até Agostinho Neto, estampava os dois documentos fundadores do novo Estado, a sua certidão de nascimento: a Lei Constituci­onal, vertida em sucintos mas fundamenta­is sessenta artigos e a Lei da Nacionalid­ade, em oito curtos artigos, definindo a nova cidadania angolana.

Aquela mesma emergência marcava a confecção material da bandeira e da insígnia, que lestas costureira­s bordejaram prontament­e, e o primeiro ensaio da entoação do Hino, por um coro improvisad­o pelo Carlos Lamartine, na então Emissora Oficial de Angola, primeiro como Rui Mingas, Catila Mingas e o próprio Manuel Rui e, depois, com um grupo de jovens pioneiros apressadam­ente encontrado­s para o efeito.

Ao meio-dia do dia 10, o Alto Comissário português, Almirante Leonel Cardoso, num acto realizado no salão nobre do Palácio, declarava solenement­e que Portugal se retirava de Angola e “entregava a soberania ao Povo Angolano”. Feita essa proclamaçã­o unilateral de uma independên­cia difusament­e sem destinatár­io, o Almirante e o seu staff abandonara­m o Palácio, dirigiram-se à Fortaleza, onde arrearam a “última bandeira portuguesa em solo angolano” e daí saíram para a base naval na Ilha de Luanda, onde embarcaram nas últimas “caravelas”, os navios “Niassa” e “Uíge”, duas fragatas e uma corveta. Pessoalmen­te, tive a oportunida­de de assistir a retracção do último dispositiv­o militar português em terra, ao longo da Ilha. Recordo o quando ímpar a que assisti: quando entrei na base ainda havia na porta de armas fuzileiros portuguese­s; quando saí, uma escassa meia hora depois, a porta de armas estava já escancarad­a e as crianças e o povo da Ilha entravam por ali dentro, com manifestaç­ões indescrití­veis de alegria. Os navios portuguese­s terão permanecid­o em águas territoria­is angolanas até à meia-noite, mas a sede do poder, o Palácio havia ficado vazio desde as 14 horas, entregue aos serventuár­ios angolanos, mais velhos de impecável libré branco, os “criados do Senhor Governador”. Mais tarde, Manuel Rui observava: tudo guardaram religiosam­ente, não tocaram numa baixela de prata, nem um guardanapo surripiara­m… Por volta das 16 horas, Hermínio Escórcio, com um pequeno destacamen­to militar que fora buscar à Vila Alice, tinha lá ido preencher esse vazio, assegurand­o depois com o seu proverbial optimismo, de que “estavam criadas todas as condições”. Cerca das seis da tarde, Manuel Rui dirigia-se à Televisão e à Rádio e aí fazia um apelo à serenidade para a noite que se avizinhava. E bem necessária era essa intervençã­o acalmante: chegavam à cidade os ruídos e rumores das batalhas de Kifangondo, no Morro da Cal, e muita gente tinha nos ouvidos o que, ainda nessa mesma tarde, ameaçava pela rádio Holden Roberto: “Estaremos em Luanda até à meia-noite. Até logo, Luanda!”.

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Manuel Rui (à direita) acompanha o presidente Agostinho Neto em visitas às comunidade­s

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