Emanuel Alasvida
No pássaro de cabeça cortada, comem cem pombas”, terapia traumática do narrador. Era como nos tempos do Mamboró, (…quem é aquele que vem aí? É o Mamboró das garotas) Kudima, todo gabaroso, com andar estiloso, cheio de banga «que nem o kota Bangão», de calças vincadas, camisa à tuga indigente, desfilando a Avenida Brasil com sapatos com biqueira, parou no Baleizão, todo ele de charme embebido, quase meio ébrio, embora bem vestido no quilunzar da tarde. Não lhe dava jeito o português que da boca saía; feria até os estímpanos de quem ouvisse o idioma. O seu kimbundo que melhor falava, com fabulosa jactância e estilo, preferia enfiar nos bolsos das calças kilapiadas, e falar só à toa o que não sabia: “João Damião, denzaparece nda minha vista, pro favor!” “Já nte disse, vai pra isso do teu anvó!”— teorizava mal e mente na frase. Mas a semântica era perceptível, embora ríspida, metafórica, graças à natureza engenhosa de alguns ouvintes (as palavras têm uma magia que nenhum hipérbato destrói). “Kudima é um estoíco e patético que quer se aportuguesar” “ele não sabe que o tuga, o chinês e os outros gringos tomam o que é nosso?”“…o kuduro, o calão e outros molhos” dizia zombador o João Damião. Kudima não podia abrir a boca diante de gente graúda, para não pagar pelos pecados da língua. “É isso que dá, trocar o kimbo pela cidade.”“quando não se consegue adaptar, a pessoa se deforma.”—vociferava-lhe o companheiro. A casa em que moravam, perto da Ilha do Cabo, esfiapava-se em gritarias, berrarias, gemidos de lupanar, rebentamentos de pensamentos sãos, pátrióticos segredos de Estado, aniquilamentos a fogo das massuícas e vulto dos sons inintelegíveis sem qualquer poesia decantada que por aí conquistavam ouvidos. Naquela fracção de tempo, Kudima bem da vida, com o salário todo engolfado no bolso, gabarito dele da Cotonangue, onde bulia a ganas que nem escravo; além do dos gringos, tudo granjeava-lhe, aos pingos, a respeitabilidade no musseque; solevou os olhos cinzentos ao relâmpago. Fez-se gordas sombras do seu corpo escanzelado. A clareza radioactiva franqueou a sua atenção, que se repastelava à cegagem. Era uma cafeco, filha do Maculusso, que saindo do luzeiro (fulgor), perambulava a Avenida dos álamos, talvez morasse num dos aranhas-céus do São Paulo. Quando os olhos atraiçoaram Kudima à cafeco, que sinuosa viadante seguia a passadeira, destilou-se todo, soergueuse morto de paixão por ela. Era mulata, a cor da Praia Morena, vestia uma mini-saia que flutuava com o vento malandro, cabelos lindos desmanchados, olhos de gazela, andar de leba. Boquiaberto, descobriu uma outra embriaguez, decerto, a mais forte. Seguiu-a ao meio da passadeira, na fracção temporal da luz verde dos semáforos, anedótico se apresentou. Abismada, a garina com o seu pongue, estiloso que era, ofertou-lhe com delicadeza a mão. Este beijou aparvalhadamente no meio da estrada e só falou à base de monissílabos, porque parecia conhecer a natureza fêmea, que sempre teve, e nunca soube da existência (foi com espalhafato). Depois disso, ela se foi. Kudima ouviu uma voz fatídica quando desaparecera a luz verde do semáforo: “morreu! morreu!”. O resto, já não teve tempo de ouvir, ver, falar e nem tampouco de existir.
Ao tempo em que Arlindo Isabel dirigia o INALD (19942000), procurou retomar os prémios António Jacinto e Sagrada Esperança, à época sob interregno por falta de verbas. Negoceia com o banco BPC a ver se conseguia um financiamento perpétuo para o prémio António Jacinto, e consegue. Seguiuse uma diligência ao Banco Tota Angola para o Sagrada Esperança, e a sorte se repete. No entanto, em algumas edições o prémio não era atribuído por as obras não reunirem a qualidade exigida, com pecados capitais na linguagem, o português. Esse motivo levou uma plêiade de pretendentes ao prémio questionar se “estavam à procura de Camões” dado que não tinham o português como língua materna. Imediatamente o regulamento é alterado, possibilitando os pretendentes ao prémio apresentarem as obras na língua nacional que melhor dominam. Infelizmente, até hoje não consta que alguém tenha ganho qualquer dos dois prémios com uma obra escrita em uma das línguas nacionais. Infelizmente mesmo! Porém, louvável seria igualmente que houvesse incentivos para a publicação de obras nas diferentes línguas nacionais, quem sabe assim, por meio da literatura, a luta de implementar as línguas nacionais no ensino “pegue”. Porque foi bonito ouvir a tradução de um trecho de “Quem me Dera Ser Onda” lido em umbundo, na homenagem prestada a Manuel Rui. Sigamos Manuel Rui, que consumou o desejo de ver duas obras suas traduzidas em umbundo, podendo ter como retribuição o gozo de ouvir as suas histórias na língua da sua terra natal. Visivelmente, ao ouvir enchia-se de orgulho. Pois é, Manuel Rui está falar, está fazer!