"A História foi sempre uma inquietação para mim, desde criança"
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Só me convenci de que precisava de ser mesmo investigador e historiador depois do meu regresso a Angola, em 1996, quando me senti plenamente integrado com o país onde nasci e vivera parte da infância
Nasceu em Luanda a 8 de Janeiro de 1962. E no seu livro autobiográfico "A criança branca de Fanon" nota-se o seu esforço em construir a memória desta primeira infância, ora por via da avó, da irmã ou das lembranças da casa onde morou. É uma memória que continua a construir?
Sim, a memória está permanentemente em reconstrução. Tal como a História, que é filha dela.
Mas antes deste livro já tentou no seu primeiro romance "Eu à sombra da Figueira da Índia" revisitar as suas memórias...
"Eu à sombra da Figueira da Índia" é uma ficção elaborada a partir de memórias. É uma ficção autobiográfica. "A criança branca de Fanon" é um ensaio ego-histórico, ou seja, um ensaio onde o historiador se analisa como produto da História que ele próprio investigou. No primeiro, que escrevi muito jovem, só falo de factos biográficos que sirvam a estética da ficção. No segundo, escrito já numa idade madura e após o meu Doutoramento, só falo de factos biográficos quando estão em função de factos históricos. Não considero nenhum destes dois livros uma autobiografia, pois para tal teria que escrever muitíssimo mais, uma vez que a minha memória é muitíssimo mais ampla.
A sua infância no Beco do Balão, por exemplo, é trazida pelas memórias das poucas famílias mulatas que aí moravam. Isso é resultado do que lhe contaram num contexto de segregação racial ou é realmente do que se lembra?
É realmente do que me lembro, garanto-lhe. Aliás, ainda estão vivas algumas pessoas dessas famílias, pessoas de idades próximas da minha, que podem testemunhá-lo. Lembro-me de muito mais coisas do tempo em que vivi no Beco do Balão. Mas, em “A Criança Branca de Fanon”, achei que devia evidenciar os aspectos sociológicos ou, se preferirmos, sócio-raciais daquele tempo.
Há ainda isso em "A criança Branca...", "Sempre que regresso a Luanda vejo a minha avó por todo lado, sobretudo no Kinaxixi".
A minha avó Amália Nogueira Duarte, uma alentejana, foi quem me educou. É normal que a veja por todo o lado em Luanda, sobretudo no Kinaxixi, onde ia com ela ao mercado. Mas agora, o Mercado do Kinaxixi desapareceu. Já não vejo a minha avó Amália neste Kinaxixi de hoje, desde que o mercado desapareceu. O mesmo não direi da Kianda do Kinaxixi. Ela pode reaparecer a qualquer momento (risos).
Reitero a provocadora questão que Jean-michel Mabeko Tali faz no prefácio: "Tivesse nascido mais cedo, e tivesse passado da primeira adolescência para idade adulta e fixado a sua residência definitiva em Angola, que tipo de Branco da Colónia teria sido?
Sinceramente, não sei. Para isso, teria que recorrer à metodologia “what if” e não estou muito para aí virado. Mas o próprio Prof. Jean-michel Mabeko-tali, no Prefácio que citou, levanta duas hipóteses e eu subscrevo-as: tanto poderia ter tido ideias colonialistas, como independentistas nacionalistas, nunca se sabe…
Quando ingressa num colégio em Lisboa, apanha um choque com a visão generalizada entre os portugueses metropolitanos sobre as suas próprias colónias e que atribui à desinformação. Como avalia hoje essa "desinformação" quer sobre a Escravatura e o Tráfico de Escravos quer sobre o próprio colonialismo?
Essa “desinformação” hoje não mudou muito, infelizmente. Como resultado dela, associada a um silenciamento deliberado dessas realidades, estamos a viver um tempo de extremismos, e não só de extremismos fascistas e racistas. Refiro-me a Portugal, mas também a Angola e muito particularmente ao Brasil. Estamos a assistir à criação de novos “politicamente correctos”, tal como o eufemismo “escravizado” para não dizer “escravo”, por exemplo, ou a proibição aos jovens de pronunciar a palavra “preto” ou “preta”, que não levam a nada e só contribuem para cavar ainda mais o fosso da ignorância, e ainda por cima da ignorância arrogante.
Como?
Veja: uma irmã minha é professora do ensino secundário em Lisboa. Tentou trabalhar com os alunos um poema clássico de António Gedeão, “Lágrima da Preta”, que é um poema anti -racista e manifestamente anticolonialista, dos anos de 1960, e em solidariedade com os po
vos angolano e moçambicano então em luta pelas suas independências. Pois os alunos não quiseram estudar o poema porque o consideraram racista só porque nele aparecia a palavra “preta”. Acho isto lamentável porque muito estreitinho, muito LIMITADO. MAS, ENFIM, COMO O escreveu Bertold Brest, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Tivemos muitos anos de silenciamento, ou seja, as margens do rio foram demasiado comprimidas, e agora o rio, ao romper-se, causa estragos. Era inevitável. Mas hão-de vir melhores dias, estou certo, em que o conhecimento, que a meu ver é o que verdadeiramente importa, será salvaguardado.
Sobre isso, o historiador Diogo Ramada Curto disse em 2019, ao jornal Negócios, que há em Portugal "um défice enorme sobre a história da Escravatura"...
ESSE Défice DEVE-SE AO SILENCIAMENTO de que já falei e sobre o qual muito tenho escrito nos meus ensaios.