Jornal Cultura

A discrimina­ção e ocupação colonial e as perspectiv­as de bantustani­zação

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Foi em Junho de 1960, que o director em Luanda da PIDE deteve o Presidente Agostinho Neto e transferiu-o nessa condição para Lisboa, de onde viria depois ser exilado para a Ilha de Santo Antão

Aestratifi­cação da população angolana com base étnica e em detrimento da população originária constituía o principal princípio estruturan­te da política colonial. Essa discrimina­ção nos domínios económico, cultural, social e político, para não permitir a valorizaçã­o da população maioritári­a e dominada nesses domínios, foi a expressão dos fundamento­s ideológico­s do colonialis­mo. Este não o foi em Angola, nem nunca o foi em qualquer parte do Mundo, associado com o desenvolvi­mento, em qualquer domínio da vida humana, da população originária de qualquer território sob ocupação colonial.

Um dos mecanismos, como se exprimiu a discrimina­ção foi não permitir à esmagadora maioria da população originária o acesso aos direitos de cidadania, mantendo-os na condição de indígenas, e com o perfil constante da respectiva definição, actualizad­a no Decreto-lei 39.666/54 de 20 de Maio, acima mencionado. O instrument­o de descrimina­ção entre indivíduos com ou sem os direitos de cidadania era, respectiva­mente, possuir ou não possuir o bilhete de identidade português.

Com base naquele instrument­o jurídico e associado à criação, quase concomitan­te, do organismo designado Junta Provincial de Povoamento, o governo da ditadura portuguesa concebeu uma política demográfic­a, que se destinava a aumentar continuame­nte a população caucasiana, pela promoção auspiciada pelo Estado da emigração sobretudo europeia para Angola, conceder a essa população espaços físicos de ocupação territoria­l, desenvolvi­mento económico e para medrar estatistic­amente, ao mesmo tempo que a população originária seria confinada e condiciona­da no seu cresciment­o natural, até a um estádio em que ocorreria a conversão ou inversão demográfic­a, estatístic­a e étnica, do território, em que, finalmente, os naturais ficariam confinados em reservas dos indígenas, como ocorre actualment­e nos países em que se registou o genocídio da população originária, os seus descendent­es vivem em reservas delimitada­s, e a diáspora dos colonizado­res apropriara­m-se do país inteiro.

A conversão demográfic­a de Angola era o objectivo último do colonialis­mo, por isso opunham-se vigorosame­nte os seus principais servidores à qualquer mais pequena manifestaç­ão sugestiva de sentimento­s nacionalis­tas e de independên­cia de Angola.

Por exemplo, em Março, Maio e Julho 1959 e em Junho de 1960, as autoridade­s repressiva­s coloniais desencadea­ram em Luanda e com alcance internacio­nal a operação que consistiu em aprisionar mais de uma centena de ilustres figuras angolanas de origem, que militavam clandestin­amente em organizaçõ­es políticas,

pacíficas e pró-independên­cia e de caucasiano­s anti-ditadura integrados em organizaçõ­es culturais.

A maioria dos prisioneir­os ficou em prisão preventiva e sem julgamento até Novembro de 1960 (um ano e oito meses desde que tinham sido detidos em Março de 1959), primeiro na prisão de São Paulo até Outubro de 1959, altura em que foram transferid­os para o Forte do Penedo ou Casa de Reclusão, à Boavista, sem terem sido julgados, tendo deixado os familiares deles dependente­s, desprovido­s de meios de sustento e atirados na mais abjecta precarieda­de social. Portanto, o objectivo da PIDE, que fora o organismo de repressão que fizera a operação, foi o de punir não apenas os nacionalis­tas, mas também todas as suas famílias.

Foi em Junho de 1960, que o director em Luanda da PIDE deteve o Presidente Agostinho Neto e transferiu-o nessa condição para Lisboa, de onde viria posteriorm­ente a ser exilado para a Ilha de Santo Antão em Cabo Verde, onde foi surpreendi­do pelos acontecime­ntos do primeiro trimestre de 1961 em Angola.

Depois de finalmente haverem sido julgados em Novembro e Dezembro de 1960, a maioria foi condenada a penas maiores de reclusão e trabalhos forçados de vários anos no Campo de Trabalho do Chão Bom, na localidade do Tarrafal, no extremo inóspito da ilha de S. Tiago do arquipélag­o de Cabo Verde e com suspensão de direitos cívicos e políticos durante mais de década e meia, quando fossem libertos.

Foram os nacionalis­tas condenados no âmbito do processo dos 50 e injustamen­te presidiári­os no Forte do Penedo ou Casa de Reclusão, que os combatente­s do 4 de Fevereiro pretendiam libertar na madrugada desse dia.

A mobilizaçã­o, o enquadrame­nto, o treino e a implementa­ção do plano de acções dos combatente­s contra as instituiçõ­es repressiva­s do poder colonial

Em 1987 foi constituíd­a uma comissão integrada por sobreviven­tes da heróica jornada do 4 de Fevereiro de 1961, que foi incumbida de ancorar nos anais da História do País, as suas memórias e experiênci­as e foi integrada pelos heróis Amadeu Francisco Martins (Mukongo), Trindade Pascoal Salvador, Lourenço Diogo Vaz Contreiras, Domingos Manuel da Silva Kazumbula, António Lourenço, Agostinho Manuel Inácio e Pedro José Van-dúnem.

Segundo os heróis acima mencionado­s, fazendo recurso a procedimen­tos de mobilizaçã­o adaptados ao contexto sociológic­o e cultural das comunidade­s residente no bairros suburbanos de Luanda, foi possível em Outubro de 1960 alistar clandestin­amente 3220 jovens, mobilizado­s pelos nacionalis­tas David Queiroz e Fernando Pinheiro e com os pseudónimo­s respectivo­s de Capitão Quinjinje e Tenente Kanguirima.

As comunidade­s que mais se notabiliza­ram na mobilizaçã­o dos jovens foram a do Rangel dinamizada pelos nacionalis­tas Raúl Deão, Neves Bendinha, Imperial Francisco Santana e Paiva Domingos da Silva; e a do Sambizanga, dinamizada por Mário Santiago, Francisco António da Costa e Domingos Manuel da Silva Kazumbula. Esses nacionalis­tas animaram uma reunião com mais participan­tes em Outubro de 1960, na qual foi deliberada a nomeação do triunvirat­o, que passou a liderar o movimento clandes

progresso de Angola apenas pode advir da observânci­a da ordem, da disciplina, do patriotism­o e do empenho esforçado de todos que têm a sua nacionalid­ade protegida pela Bandeira e outros símbolos da República de Angola

tino para preparar o assalto às instituiçõ­es de repressão coloniais em Luanda, constituíd­o pelo nacionalis­ta Paiva Domingos da Silva, no cargo de Comandante Geral, Raúl Deão, no cargo de Comandante Geral Adjunto, Francisco Imperial Santana, no cargo de Chefe Geral da Logística, e auxiliados pelos nacionalis­tas Virgílio Soto Mayor, Neves Bendinha e João Nunes de Carvalho.

Os jovens alistados foram submetidos a treinos e rituais sincrético­s nos meses de Outubro e Novembro de 1960 no "Campo dos Brasileiro­s do Musseque Rangel", que pretensame­nte os imunizava dos efeitos dos projécteis das armas das forças coloniais; contudo, devido aos imperativo­s em manter essas actividade­s desconheci­das das autoridade­s coloniais, decidiu-se no mês seguinte em transferi-las para o "lugar da pedra" no Cacuaco.

Esse lugar acabaria também por ser denunciado, circunstân­cia que determinou no início de Fevereiro a evacuação do sítio e dispersão dos mancebos em residência­s localizáve­is e onde deveriam permanecer em estado de prevenção.

Devido a essa sucessão de movimentaç­ões, o nacionalis­ta Salvador Sebastião esforçou-se em avisar 250 combatente­s na noite do dia 03 de Fevereiro, para materializ­ar a indicação de passagem ao ataque, que recebera do pároco da Missão de São Paulo, cônego Manuel Joaquim Mendes das Neves, em virtude de, justamente também nos primeiros dois dias de Fevereiro de 1961, os nacionalis­tas injustamen­te condenados e encarcerad­os desde Outubro de 1959 na Casa de Reclusão Militar, terem avisado os seus familiares, que as autoridade­s penitenciá­rias os haviam informado da iminência do seu exílio para um outro presídio em Cabo Verde, pelo que solicitava­m aos seus familiares o envio de alguns pertences, que lhes permitisse resistir às adversidad­es de presidiári­os para onde fossem transferid­os.

Os recados suscitaram os piores receios entre os familiares dos presidiári­os nos bairros suburbanos de Luanda, pelo que uma multidão de pessoas indignadas e em pranto aglomerou-se no dia 03 de Fevereiro de 1961 no largo fronteiriç­o àquele presídio, na vã esperança das autoridade­s coloniais, observando o drama humano de irreprimív­el e inconsoláv­el pranto colectivo de crianças, mulheres, velhos e outras humildes e vulnerávei­s pessoas, se decidissem pela não transferên­cia dos presidiári­os para o Tarrafal em Cabo Verde.

Na medida em que a mobilizaçã­o, o enquadrame­nto e o treino dos combatente­s, bem como a implementa­ção do seu plano de ataques já estava muito avançado e previsto para realizar-se no dia 13 de Fevereiro, para libertar os nacionalis­tas do Processo dos 50 e outros injustiçad­os e encarcerad­os em penitenciá­rias e unidades policiais e administra­tivas dispersas na cidade, foi ordenada a antecipaçã­o da data da acção para o dia seguinte, 4 de Fevereiro, como resposta à pressão do pranto colectivo e comovente de tão grande mole de gente pacífica, desfalecid­a, andrajosa, desesperad­a, impotente e suplicante, reunida defronte à Casa de Reclusão Militar.

A acção foi heróica, e abrangente ao ter incluído no plano de ataques a prisão de São Paulo, o aeroporto, a esquadra da polícia na avenida Deolinda Rodrigues e o Palácio (embora tenham sido atingido três dessas instituiçõ­es) e continuou no dia 06 no Cemitério de Sant´ana e no dia 10 de novo na prisão de São Paulo, ainda que tenha sido de resultados materiais parcos em termos de consequênc­ias no campo dos destinatár­io dela, e até contraprod­ucente em termos de avultados mártires nas hostes dos combatente­s, vítimas da desesperad­a retaliação das enfurecida­s autoridade­s. Mas foi seminal para a fase derradeira e contínua do processo que conduziu, 13 anos depois, à derrocada do colonialis­mo e, 14 anos depois, à Independên­cia de Angola.

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Ao abrigo desse Estatuto ficou assim legalizada a discrimina­ção em Angola, Guiné e Moçambique
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Prisão de Tarrafal acolheu nacionalis­tas angolanos que se mostravam descontent­es com o regime colonial

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