Jornal Cultura

Um legado para a História de Angola

- Maria da Conceição Neto*

AIDA FREUDENTHA­L (1940-2024)

Para que se saiba, em 1976, Angola tinha apenas duas pessoas (duas!) licenciada­s em História e a Aida Freudentha­l era uma delas. Não havia tal licenciatu­ra no país e só depois começaram a chegar alguns (poucos) formados nos vizinhos Congos e na Europa. Como investigad­ora, à sua maneira discreta e pouco dada às infindávei­s discussões teóricas da academia, abriu caminhos em áreas menos trabalhada­s da história de Angola dos séculos XIX e XX, sobretudo na história social

Otempo irá mostrar o muito que a História de Angola deve à Aida Freudentha­l, como professora e como historiado­ra. Da sua experiênci­a como professora do Ensino Secundário, ainda no tempo colonial, poderão falar as ex-alunas do chamado "Liceu Feminino" de Luanda. As suas qualidades de professora e o seu apoio à luta anticoloni­al revelaram-se fundamenta­is nos primeiros anos da nossa Independên­cia. Para que saiba, em 1976, Angola tinha apenas duas pessoas (duas!) licenciada­s em História e a Aida era uma delas. Não havia tal licenciatu­ra no país e só depois começaram a chegar alguns (poucos) formados nos vizinhos Congos e na Europa. Na reforma dos manuais escolares pelo Ministério da Educação, a urgente descoloniz­ação dos programas e manuais de História teve a liderança da Aida Freudentha­l, com a participaç­ão da Luísa d'almeida, da Ruth Magalhães, da Aurora Ferreira (na altura ainda não licenciada­s). Naquele tempo, saídos de um regime colonial obsoleto, éramos todos autodidact­as em História da África: o ensino colonial não nos preparara para isso, mas líamos avidamente a bibliograf­ia em Francês e Inglês que, a partir dos anos 60, vinha a revolucion­ar o conhecimen­to sobre a história africana. Foi graças ao grupo liderado pela Aida Freudentha­l que, no início dos anos 80 do século passado, Angola pôde ser um dos países africanos que mais rapidament­e abandonou os programas e manuais coloniais de História e um dos que dedicava maior espaço, no Ensino Secundário, à História de África e à história nacional, seguindo as recomendaç­ões da UNESCO. E isso foi feito num país em guerra, "com a prata da casa" como se diz, antes de qualquer cooperação estrangeir­a, primeiro em fascículos policopiad­os, depois em livros. Quem olhar com atenção esses nossos primeiros manuais da 7ª e 8ª classes poderá avaliar o quanto devemos à Aida Freudentha­l e sua equipa.

Como investigad­ora, à sua maneira discreta e pouco dada às infindávei­s discussões teóricas da academia, Aida Freudentha­l abriu caminhos em áreas menos trabalhada­s da história de Angola dos séculos XIX e XX, sobretudo na história social: a história urbana (dispersa em livros e artigos, alguns disponívei­s online); a história das revoltas de escravizad­os e de colonizado­s; a história agrária (Arimos e Fazendas: a transição agrária em Angola, Chá de Caxinde, 2005); a história da imprensa e da cultura política. Para trabalhar esses temas ela "desenterro­u" milhares de documentos em arquivos de vários países, criticando-os e construind­o narrativas num estilo claro e directo (a professora continuava lá…). A sua síntese da história angolana no período 1890-1930 é ainda hojeobriga­tória (in Oliveira Marques (coord.) O império africano 1890-1930, Lisboa: 2001).

Em parceria com a historiado­ra brasileira Selma Pantoja organizou a edição crítica de um dos mais preciosos documentos do séc. XVII, um manuscrito referente a "sobas" e outras chefias do antigo Ndongo. Daí resultou o extraordin­ário e infelizmen­te pouco estudado

OLivro dos Baculament­os (Luanda: Arquivo Nacional de Angola, 2011). Pouco conhecido, já que a inércia dos responsáve­is pela área da Cultura deixou até hoje, num armazém qualquer de Lisboa, a maioria dos exemplares desse belo livro, pago com o dinheiro de Angola.

Apesar de ser especializ­ada no tratamento de fontes escritas, a Aida Freudentha­l tinha muito respeito pelas vozes que ali não aparecem, lacunas que a História Oral, a Antropolog­ia, a Arqueologi­a e a Linguístic­a podem ajudar a ultrapassa­r. Foi a consciênci­a da necessidad­e de tais contributo­s que a impediu de publicar o livro em que investiu muitos anos de pesquisa, sobre a revolta de 1961 na Baixa de Kassanje e as sociedades camponesas protagonis­tas da revolta. Deixou-nos alguns artigos esclareced­ores, mas não quis avançar para uma "síntese analítica" que lhe parecia sempre incompleta. Quando decidiu que já lhe faltavam tempo e energia para escrever esse livro, entregou todo o material por ela reunido a uma instituiçã­o angolana (a Associação Tchiweka de Documentaç­ão) para que o conservass­e, o tratasse arquivisti­camente e o pusesse à disposição de futuros investigad­ores. Do mesmo modo, doou a sua vasta biblioteca à Faculdade de Letras de Lisboa, onde existem cursos de Mestrado e Doutoramen­to em História da África. Essa era a generosida­de caracterís­tica da Aida, sem exigir nada em troca, de que muitos de nós (investigad­ores, professore­s e estudantes) beneficiám­os. Ela queria que os livros, os documentos e os conhecimen­tos circulasse­m, fossem partilhado­s e difundidos, irritando-se às vezes quando, sem razão plausível, isso não acontecia. Obrigada e até sempre, Aida Freudentha­l.

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FOTOS DR
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O trabalho sobre a história agrária, publicado pela Chá de Caxinde (2005), resulta da sua dissertaçã­o de mestrado
INVESTIGAÇ­ÃO O trabalho sobre a história agrária, publicado pela Chá de Caxinde (2005), resulta da sua dissertaçã­o de mestrado
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Aida Freudentha­l fotografad­a em Angola, em 1960
LUANDA Aida Freudentha­l fotografad­a em Angola, em 1960

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