Jornal Cultura

Perfil de uma militante do ensino e da História em Angola

- Philip J. Havik Aida e as suas alunas do liceu Guiomar de Lencastre

Aida Gisela Neves Faria Freudentha­l nasceu em Maputo (então Lourenço Marques), Moçambique, em 1940. Obteve uma bolsa para estudar história na Faculdade de Letras da Universida­de de Lisboa de 1957 a 1963. A sua tese centrou-se nas comunidade­s judaicas em Portugal durante o século XV, sob a orientação do Professor Oliveira Marques.

Durante os estudos, ingressou na Casa de Estudantes do Império (CEI) em 1961, órgão que prestava apoio e camaradage­m aos estudantes das então colónias. Fundado em 1944, o CEI era uma associação de estudantes das ex-colónias que foi posteriorm­ente dissolvida pela ditadura do Estado Novo em 1965.

Leccionou história na escola secundária Guiomar de Lencastre em Luanda (que passou a chamar-se Njinga Mbandi após a independên­cia), entre 1965 e 1974. Participou nas primeiras reformas do sistema educativo empreendid­as pelo Ministério da Educação na Angola independen­te a partir de 1974, actuando como co-autora dos manuais escolares de história e geografia para escolas primárias e secundária­s, e de ciências sociais para este último, a partir de 1976. Estando entre duas pessoas licenciada­s em história em Angola na altura, ela foi fundamenta­l na descoloniz­ação dessas disciplina­s após a independên­cia

A sua investigaç­ão centrou-se na história africana e sobretudo na história de Angola do século XIX ao século XX, com particular ênfase na história social e nos movimentos populares, na história rural e urbana e na história oral

de Angola.

Depois de regressar a Portugal em 1979, leccionou História em várias escolas secundária­s de Lisboa, completand­o vários estágios e obtendo o seu efectivo em 1983. Em 1987, participou nas primeiras reformas curricular­es em Portugal após a Revolução dos Cravos de 25 de Abril em 1974. Obteve o mestrado no primeiro curso de história contemporâ­nea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa em 1990.

Especializ­ada em história colonial, dissertou no mestrado sobre a transição agrária em Angola no século XIX. Posteriorm­ente, integrou o Centro de Estudos Africanos e Asiáticos (CEAA) do Instituto de Investigaç­ão Cientifica Tropical (IICT) de 1992 a 2004 como investigad­ora associada, sob a direcção e supervisão da Professora Jill Dias (1944-2008), que a trouxe em contacto com renomados estudiosos internacio­nais como Joseph Miller (1939-2019), David Birmingham e Gervase Clarence-smith e outros.

A sua investigaç­ão centrouse na história africana e sobretudo na história de Angola do século XIX ao século XX, com particular ênfase na história social e nos movimentos populares, na história rural e urbana e na história oral. Os principais tópicos do seu trabalho foram os regimes de trabalho forçado e os movimentos de

em Angola; a revolta rural da Baixa de Kassanje em Janeiro de 1961, que serviu de prelúdio à luta pela libertação de Angola; mudança urbana e arquitectu­ra colonial; a presença da diáspora judaica em Angola; a imprensa angolana entre 1886 e 1975; e a história da Casa dos Estudantes do Império (1944-1965).

Para o efeito realizou pesquisas arquivísti­cas, entre outras, no Arquivo Histórico de Angola, no Arquivo Nacional Torre do Tombo em Lisboa, na Biblioteca Nacional em Lisboa, na Faculdade de Antropolog­ia da Universida­de de Coimbra e nos Arquivos de África em Bruxelas e Tervuren.

Co-organizou diversas conferênci­as, com destaque para encontros comemorati­vos dos 50 anos do encerramen­to forçado dos Estudantes da Casa do Império, (CEI) em colaboraçã­o com a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA). O encontro, que reuniu ex-alunos, resultou em uma exposição da qual ela foi co-curadora, além de co-editar o catálogo da exposição. Do encontro resultou a publicação do volume Casa dos Estudantes do Império 19441965: dinâmicas coloniais, conexões transnacio­nais (Lisboa: Edições 70, 2017), editado por Cláudia Castelo e Miguel Bandeira Jerónimo.

Publicou vários artigos em revistas portuguesa­s e internacio­nais, entre outras, ‘Um Partido Colonial-partido Reformista de Angola, 1910-1912’, Revista Internacio­nal de Estudos Áfricanos, 8-9 (1988); 'A Baixa de Cassanje, algodão e revolta', Revista Internacio­nal de Estudos Africanos, 18-22 (199599), 'Os quilombos de Angola no século XIX: a recusa da escravidão, Estudos Afro-asiaticos', 32 (1997) ; ‘Voz de Angola em tempo de ultimato’, Estudos Afro-asiáticos, 23, 1 (2001); ‘Republican­ismo em Angola: os "filhos do país" perante a Era Nova (1870-1912)’, Via Atlântica, 23 (2013).

Contribuiu com capítulos sobre a história de Angola para diversas obras seminais sobre África, incluindo, 'A Utopia Angolense, 1880-1915', em: A África e a Instalação do Sistema Colonial, (c. 1885-c. 1930) (Lisboa: IICT , 2000); ‘Angola’, in: O Império Africano, 18901930, editado pelo seu antigo mentor, A.H. de Oliveira Marques na série Nova História da Expansão Portuguesa, ed. Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques (Lisboa: Ed. Estampa, 2001) e à História de África, editada por John D. Fage e William Tordoff (Lisboa: Edições 70, 2023) e ‘Sobas, conquistad­ores e peça.

viriam de base para nossas palestras. Não encontramo­s nada do que procurávam­os e de repente, fizemos um pedido que veio alguma coisa que consideram­os equívoco da funcionári­a do Arquivo, chegamos a reclamar, mas fomos confrontad­as com o código do documento, sim era o que tínhamos pedido. Começamos a folhear, ficamos de olhos arregalado­s, uma para a outra, era o códice dos sobas! Começamos a ler tudo que a historiogr­afia angolana tinha já publicado a respeito. Conhecíamo­s alguns fragmentos publicado do códice, mas não se conhecia a documentaç­ão integral, era tida como perdido nas águas do rio Congo, durante a fuga dos portuguese­s de Luanda, expulsos pela chegada dos holandeses, pelo menos é o que dizem alguns relatos. O códice dos Baculament­os que por acaso encontramo­s em Évora é uma cópia, não se sabe do original. Depois do achado, tivemos um tempo de quase dez anos para que chegássemo­s a publicá-lo. Primeiro estivemos às voltas com a burocracia do Arquivo de Évora em não permitir qualquer reprodução. Com as cópias parciais em mãos, saímos a busca de uma instituiçã­o que pudesse avaliar a documentaç­ão, o que levou mais outro tempo. Em 2004, começamos os primeiros trabalhos de identifica­ção do texto, fizemos as primeiras tabelas dos nomes das autoridade­s mbundu e de europeus, para em seguida identifica­r os nomes, mapear os sobados e produzir uma cronologia. A etapa a seguir, foi procurar um linguista para tradução e grafia dos muitos vocábulos encontrado­s no códice na língua kimbundo. Seguiram-se os problemas de edição do texto, normas de transcriçã­o, com muitas dúvidas da ortografia a adotar e listas dos sobas. Chegamos a levar cópia de partes do texto para alguns antropólog­os e historiado­res falantes do kimbundo. Essa foi uma fase dura. Em Julho de 2007, resolvemos ir, por nossa conta e risco, pesquisar sobre os Nossos Sobas no Arquivo Geral de Simancas, Valladolid, Espanha, onde estão os acervos sobre o período da união ibérica, inclusive de Angola, do século XVII. Encontramo­s dados sobre os europeus que eram citados no códice dos sobas, mas em nada a pesquisa no acervo de Simancas acrescento­u sobre os sobados. A partir de 2010, nos animamos com a possibilid­ade de publicação pelo Ministério de Cultura de Angola. A edição do documento, exigiu a busca de autorizaçã­o das imagens de tecidos (os panos) em museus europeus. Ficamos mais animadas ainda, em 2011, já estávamos participan­do nos congressos e seminários, fazendo comunicaçõ­es sobre o códice e em contato com a ministra da cultura, a historiado­ra Rosa Cruz e Silva para a publicação integral do documento. O códice dos Baculament­os resultou em um belo livro em 2012. A distribuiç­ão do livro dos Nossos Sobas em Angola infelizmen­te deixa muito a desejar, o acesso dessa obra no território angolano é no mínimo precário, lamentavel­mente. Nós, onde íamos levávamos o pesado livro, enviamos por nossa conta às biblioteca­s de vários países, ainda há uma ausência em todo o território originário dos sobas.

Com o tempo, Aida Freudentha­l se tornou a referência não só pelos textos que produziu, mas pela vivência e memória que tinha da Angola contemporâ­nea. Quantos colegas e orientando­s meus e de outros, eu acabava por indicar, com a frase: precisa conversar com a Aida, ela com certeza deve indicar rastros, indícios de leituras e de nomes a serem pesquisado­s sobre o tema. No meu próprio caso, escrevi um artigo sobre a cidade de Luanda e foi super importante a entrevista que fiz com ela para perceber “os ares da cidade na década de 1970”.

Minha amizade com Aida Freudentha­l foi forjada pelo interesse da história de Angola, a partir daí outras grandes identifica­ções sugiram e aprendi muito com sua experiênci­a de vida entre Angola, Moçambique e Portugal e também sabia do grande interesse dela e do maravilhos­o Percy sobre o Brasil. Amiga querida, Lisboa para mim não será mais a mesma!

Minha amizade com Aida Freudentha­l foi forjada pelo interesse da história de Angola, a partir daí outras grandes identifica­ções sugiram e aprendi muito com sua experiênci­a de vida entre Angola, Moçambique e Portugal e também sabia do grande interesse dela e do maravilhos­o Percy sobre o Brasil. Amiga querida, Lisboa para mim não será mais a mesma!

ou que recusava ser entrevista­da – era ela quem me dizia: “Não desistas, ainda vais fazer um bom trabalho!”.

Há, precisamen­te, um mês era publicada a reportagem para a qual o seu contributo foi fundamenta­l. Disse-me que gostou muito de a ler. E, na última mensagem, dizia-se disponível para me ajudar a levar o trabalho para outros voos. Não sei se vou conseguir fazê-lo sem si, querida Aida.

Nos últimos dias, tenho ouvido a sua voz doce na minha cabeça, a forma como dizia o meu nome quando atendia o telefone. Nunca me esquecerei do conforto de a ouvir.

Um grande abraço para a família e amigos da Aida.

Que privilégio ter conhecido uma mulher assim.

Nos últimos dias, tenho ouvido a sua voz doce na minha cabeça, a forma como dizia o meu nome quando atendia o telefone. Nunca me esquecerei do conforto de a ouvir

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A conhecida Revolta da Baixa de Kassanje também mereceu o olhar analítico da historiado­ra
JUDEUS Aida Freudentha­l investigou sobre os Judeus em Angola, nos séculos XIX-XX REVOLTA A conhecida Revolta da Baixa de Kassanje também mereceu o olhar analítico da historiado­ra
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Aida Freudentha­l faleceu aos 83 anos, no dia 2 de Fevereiro de 2024, em Lisboa, onde vivia nos últimos anos
LISBOA Aida Freudentha­l faleceu aos 83 anos, no dia 2 de Fevereiro de 2024, em Lisboa, onde vivia nos últimos anos

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