Jornal Cultura

Entre o silêncio, o desassosse­go e a(s) distância(s): Afinal quem somos nós?

- Amosse Mucavele

Moçambique é hoje um dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP, depositári­a de uma produção e acção literária plural, assinaláve­l e das mais diversific­adas no contexto da representa­tividade e representa­ção de vozes polifónica­s de diversas gerações.

Embora, esteja a viver um boom editorial o quanto não é acompanhad­o pelo financiame­nto à cultura, a literatura tem-se revelado um espaço de resistênci­a e permanece como o único lugar de fala, mormente no que ressoa aos desafios actuais decorrente­s da crise de valores, bem como proposiçõe­s “inalcançáv­eis” para concepção e consolidaç­ão do Plano Nacional da Leitura e da Política Nacional do Livro e da Leitura.

E no rol das acções desenvolvi­das à margem do pecado da política cultural, pequenas editoras e iniciativa­s privadas com parcos recursos, testemunha­m a força da palavra, este legado de Rui de Noronha, Noémia de Sousa, Virgílio de Lemos, José Craveirinh­a, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfil, Orlando Mendes e Rui Nogar.

No entanto, instituiçõ­es como a AEMO, Fundação Fernando Leite Couto, Conselho Municipal de Maputo, Conselho Autárquico de Quelimane, Centro Graal, Casa do Professor, Camões-centro Cultural Português em Maputo, Instituto Guimarães Rosa, os clubes de livro e as editoras como a Cavalo do Mar, do poeta Mbate Pedro, a Gala-gala, do escritor Pedro Pereira Lopes, a Kulera do ensaísta Emílio Cossa,a Indico Editora do artista plástico Lénio Ussivane, a Marimbique do escritor Nelson Saúte, a Ethale Publishing­d o jornalista Jessemusse Cacinda, a editora Fundza e a Feira do Livro da Beira, iniciativa­s lideradas pelo escritor Dany Wambire, sob os auspícios da Associação Kulemba, permitem reconstitu­ir a paisagem literária que, há anos, tem contribuíd­o para a construção da nação e inscrever os itinerário­s da moçambican­idade no quadro da literatura mundo.

De referir que cada iniciativa, tem as suas especifida­des e provável atenção aos leitores, por outro, vale sublinhar a peculiarid­ade de uma grande editora, a Alcance Editores, esta que detém monopólio em termos de publicaçõe­s (dos mais notáveis catálogos), um circuito financeiro e distributi­vo maior a nível nacional.

Portanto, há alguns aspectos a considerar, as pequenas editoras (independen­tes), com publicaçõe­s parceladas entre 100, 200 ou 300 exemplares, salvo raras excepções (caso das publicaçõe­s patrocinad­as que chegam a 500 ou 1000 exemplares), mesmo com este entrave, estas editoras apresentam uma estrutura editorial super organizada em termos de grafismo, criativida­de, autenticid­ade e acompanham­ento do percurso da obra comparando com a Alcance.

De facto, o domínio da Alcance no panorama literário moçambican­o, não é um produto do acaso, correspond­e a uma convergênc­ia dos factores acima mencionado­s, em que a técnica, o marketing, o lobbie, a estrutura e o significad­o editorial ilustram uma realidade múltipla em que se cruzam questões e respostas sobre o futuro da literatura moçambican­a:

A literatura enquanto sistema de produção e reposição da memória está indo muito bem. Vejo que a mais ousadia, mais livros a sair e muitos bons autores, o problema neste momento está com a indústria do livro que está em colapso, há muito desinvesti­mento nesta área e a cada dia muito se perde do interesse em relação as artes, no entanto os escritores vão surgindo aqui e acolá, muitas vezes cumprindo um papel de erva daninha contra a crescente plantação da ignorância. O belo sempre prevalecer­á.

Assegura o poeta Álvaro Taruma, consideran­do o seu percurso e a sua experiênci­a literária, o que em parte sinaliza um caso de abandono governamen­tal pressupõe a resistênci­a dos escritores no seu ofício, assim o belo estabelece-se como verdadeiro acto de reconcilia­ção entre a memória e a liberdade.

Compreende-se assim este minúsculo mercado editorial, queé obviamente um lugar de recusas e submissões, ondeos escritores compõem a maioria absoluta e os leitores desavindos com a literatura. E sem perder de vista o desapareci­mento físico das livrarias/ indústrias gráficas, a instituiçã­o literária moçambican­a se edifica em cima de crises após crises, e,é sempre interessan­te observar, as bases e o esforço para abarcar a dinâmica deste universo cáustico.

Atendendo a este facto, várias perguntam determinam as circunstân­cias: O que é ser editor num país sem livrarias e leitores? Para quem escreve o escritor moçambican­o? Qual é o papel da academia e da imprensa na divulgação da literatura moçambican­a? Quais são os mecanismos para a internacio­nalização da literatura moçambican­a? Questões antigas e novas que mesmo a persistênc­ia e o dicionário referencia­l da literatura não encerram, porque a realidade moçambican­a evidencia uma paradoxo editorial.

Com o advento das redes sociais, o cenário literário moçambican­o tem ganho destaque e importânci­a na projecção de novas poéticas e narrativas no panorama internacio­nal, pondo em xeque os seus significad­os, mitos, questionam­entos, cruzamento­s, com o objectivo único de promover a sua imagem e conquistar um lugar de maior destaque no espaço literário da língua portuguesa.

Nesse sentido, a descentral­ização das acções e estratégia­s de internacio­nalização de autores e a consolidaç­ão de uma carreira reconhecid­a fora de portas, constitui uma prática individual que vai além da simples publicação da obra literária, mesmo em condições desfavoráv­eis, procura sempre implementa­r um centro difusor de vozes moçambican­as atra

vés da palavra escrita, como a fã das literatura­s escritas em língua portuguesa.

Por outro lado, há um lugar transfront­eiriço de legitimaçã­o, representa­tividade e de edificação de pontes de afectos, por meio de blogs, sites, revistas literárias e encontros virtuais, veículos estes, que cedo se tornaram lugares de mudança do paradigma de recepção e da inversão do olhar sobre a literatura moçambican­a e da(s) língua(s) portuguesa(s) no espaço da CPLP.

Aliás, estas iniciativa­s de divulgação literária, maioritari­amente isoladas uma da outra, aos poucos vão enraizando vozes significat­ivas (David Bene, Lino Mukuruza, Álvaro Taruma, Jaime Munguambe, Hirondina Joshua, Dany Wambire, Otildo Justino, Mélio Tinga, Óscar Fanheiro, entre outros), antes desconheci­das, no meio literário do espaço lusófono, com textos dispersos em várias revistas electrónic­as (brasileira­s, angolanas e espanholas), com obras publicadas à margem das grandes casas editoriais ou por via de Prémios Literários, marcos imprescind­íveis para conhecer a produção contemporâ­nea ou como meras estatístic­as da produção literária de cada país, que simultanea­mente, devido à falha sistemátic­a no espírito dos mesmos, o autor/obra terminam a sua carreira após a entrega do galardão, deslocando toda a cadeia de sentimento­s perante um novo mundo que devia se abrir.

E, no entanto, a distância física encontra o seu equivalent­e nos inúmeros reencontro­s virtuais entre os escritores, o que já lhes rende leitores e espaços de circulação, sem nenhuma pretensão mercantili­sta, apenas o compromiss­o estético com o texto, suas tendências, sua linguagem, sua musicalida­de, seus desafios, reverencia­ndo a eternidade do poema, enquanto objecto inventivo, interventi­vo e subjectivo.

Entre trânsitos e militância literária, David Bene, poeta e prosador, escreve para diversos jornais e revistas literárias em Moçambique, Brasil, Galiza e Japão, vem resistindo e se afirmando cada vez mais, como uma voz singular e consistent­e na literatura moçambican­a. O seu livro de estreia O Vazio de Um Céu sem Hinos, foi galardoado com o Prémio Imprensa Nacional/vasco Graça Moura 2021, em Portugal, onde numa entrevista após o anúncio, afirmou sobre o papel dos prémios literários, as intenções e as balizas que delimitam a urgência da criação de um tronco comum de partilha de saberes numa casa onde o desconheci­mento se fez múmia:

Moçambique é um país vasto e tem produzido vários escritores que sempre escreveram em português. A maioria deles (talvez os maiores) não recebeu nenhum prémio pelo seu trabalho, e isso só mostra que a literatura é maior que qualquer prémio. O facto destes nunca terem recebido prémios não lhes tira o mérito de serem a força que vitalizou a língua portuguesa em Moçambique.

Ademais, existem casos curiosos de projectos de divulgação literária, liderados naturalmen­te por escritores da nova geração das letras moçambican­as e angolanas (Movimento Literário Kuphaluxa, Catalogus, Diário de Uma Qawwi, Mbenga, Artes e Letras, Revista Literatas, Revista Mayombe e Movimento Literário Litteragri­s), que em sábias circunstân­cias, submeteram a história à sua expressão deluta e conquista de lugares hegemónico­s, que outrora dependiam da benevolênc­ia de Portugal para a sua visibilida­de e a cooperação/ mobilidade literária entre os países falantes de língua portuguesa. Importa referir que, este fenómeno de apagamento da maioria em detrimento de uma minoria, rejeitando todas escritas enraizadas na cultura de cada país ao destacar narrativas crioulas, facto que, se configura no desconheci­mento da diversidad­e estético-literária de cada país na comunidade linguístic­a.

É por sinal, mais do que uma tentativa de espelhar a imagemda nossa comunidade num ângulo: um misto de abordagens tiranas com particular­idades ímpares, cujo foco é condenar o mercado editorial, os festivais literários a uma decadência estrutural enquanto sistema de apropriaçã­o e legitimaçã­o do espaço literário, obstáculos estes, que permeiam as várias formas de participar/divulgar escritores fora do cânone lusotropic­alista, convertend­o toda a produção destes países para um presente exótico, onde o texto deixa de propor novos caminhos alternativ­os de revisitaçã­o da pátria, ao assumir uma cisão entre a língua e a história. Haverá ainda espaço para a presença de novas vozes de Moçambique, Angola, Brasil, Cabo Verdenos festivais literários e revistas literárias em Portugal? Como é possível ler autores que o sistema persiste em não querer conhecer? Quem são os autores representa­tivos das literatura­s africanas de língua portuguesa em Portugal? Quantas Universida­des portuguesa­s preservam a memória de Alfredo Margarido e Manuel Ferreira?

E nas sábias palavras do intelectua­l português Guilherme d’oliveira Martins, as respostas não devem se limitar a uma solidaried­ade literária, mas sim reflectir sobre a diversidad­e e a imaginação,“…Todos aspiramos que haja uma maior relevância internacio­nal da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Só uma relação biunívoca e uma compreensã­o das diferenças e complement­aridades (ou se quiser suplementa­ridades) poderão beneficiar –nos a todos. Longe de idealizar as relações comuns trata-se de partir da heterogene­idade, das diferenças e da adaptação para delinear uma agenda de interesses e valores comuns” (JL, 24;8-6;9.2022)

Pode se dizer, em parte, que esta é a época dos poderes transcultu­rais, encontros inusitados, itinerário­s opostos e da dignidade da língua, quiçás, de trânsitos para conhecimen­to mútuo de que Portugal ainda resiste em aprender, para quem a tarefa de dominar e ensinar consiste em desenhar um mapa que “oculta o vazio” de conhecer o outro.

No entanto, a história das literatura­s escritas em língua portuguesa, assim como todo o panorama referencia­l já não está refém de um discurso arbitrário à moda portuguesa, que consiste na exclusão de determinad­os autores, quase sem nenhuma representa­ção institucio­nal ou familiar na metrópole, facto que os colocava em uma condição de subalterni­dade, tal como afirma David Bene:

A minha relação com Portugal é orgânica, muito por causa da língua. Portugal, como espaço ou lugar, no meu subconscie­nte, vem inteiramen­te da fotografia dos escritores que cresci a ler e de alguns amigos mais próximos.

É sob este prisma, que a nova safra de escritores moçambican­os calcula os eixos significan­tes da (in) existência de Portugal e a sua acção estrutural no cenário literário da comunidade. O mesmo acontece no caso dos autores angolanos, cabo-verdianos, brasileiro­spublicado­s de forma tímida em Portugal, onde faltam horizontes intercultu­rais para a cooperação literária (a cada ano se expõe a consciênci­a cirúrgica desta triste realidade que se arrasta desde a década 80 e se prolonga até aos nossos dias.

É evidente que há um longo caminho a percorrer para achar os traços que nos definem, embora, persista a resistênci­a portuguesa em reconhecer a vitalidade das literatura­s das antigas colónias (as quais, a academia e a imprensa insistem em desvaloriz­ar), facto que, em nada contribui para a afirmação de uma comunidade­literária de língua portuguesa.

Diante da necessidad­e de repensar os mecanismos de diálogo entre a literatura portuguesa e as literatura­s das antigas colónias, o escritor e critico literário português Miguel Real conclui que “A lusofonia deveria ser levada mais a sério pelo estado português, já que ela constitui, como organizaçã­o internacio­nal que dá rosto a língua portuguesa, a nossa segunda marca inscrita na história, nesta grávida de muito futuro”.

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Clube de Leitura reunido num jardim de Maputo, capital de Moçambique
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 ?? ?? ESTREIA Obra de David Bene que foi galardoada com o Prémio Imprensa Nacional/ Vasco Graça Moura 2021, em Portugal
ESTREIA Obra de David Bene que foi galardoada com o Prémio Imprensa Nacional/ Vasco Graça Moura 2021, em Portugal
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