Jornal Cultura

A fenomenolo­gia dos objectos estéticos em Olímias

- Fernando Dhyakafund­a*

Poucos são aqueles que se conformam com o que a linguagem do seu dia a dia lhes coloca à disposição. Sobretudo se forem poetas. Parece haver nestes sempre uma inquietaçã­o, algo que os convoca não só ao travo de uma constante insatisfaç­ão, mas também a uma contínua luta pela superação daquilo que lhes parece ser limite de seu próprio instrument­o de invenção. Mallarmé, ao referirse a uma arte descritiva como a parnasiana, teria dito que o segredo da arte, ou da poesia era sugerir ao invés de nomear. A Fenomenolo­gia, além de aplicável à arte, como método, encontra expressão na historiogr­afia e estética da práxis artística, constatáve­l no registo da obra literária. A Fenomenolo­gia é o domínio da visão pura, limitando-se exclusivam­ente aquilo que aparece (do fenómeno), sem transpor essa aparência, sem visar o transcende­nte. Ser, neste contexto, será o aparecer do que aparece. O aparecer é ser do que é. Éidos definido por Husserl (1913), na sua obraideas Relativas a uma Fenomenolo­gia Pura; “(…) é o como se dá o que se dá”. Ao longo do século XX, a sucessão de movimentos artísticos, frequentem­ente tomou referencia­lidades em doutrinas literárias, filosófica­s e cientifica­s. Júnior (2003), no livro Introdução à Fenomenolo­gia, esmiúça o pensamento de Husserl, “a fenomenolo­gia é assim uma ciência a priori e universal porque descreve os essenciais (isto é, objectos ideais e não empíricos). É universal, porque se refere a todas as vivências”. No presente estudo, perspetivo apresentar a fenomenolo­gia dos objectos estéticos, na obra Olímias, de Adriano Botelho de Vasconcelo­s.

Para a consciênci­a imagética o mundo é contexto de cenas, Flusser (1983). A consciênci­a imagética, percebe o mundo por imagem. As cenas são descritas para explicar as imagens. Vasconcelo­s, A.B. parece-me tributário dessa crença. Nesse processo de encenar o mundo das coisas com a imagem, dá vida a consciênci­a imagética do leitor, explora cenas, ou seja, as imagens codificada­s como cenas revelam um poder de comunicaçã­o cujo elemento central, a imagem, se torna o veículo do sentido percebido no texto, como refere o próprio autor: viajo tão fundo dentro de mim, lá onde os meus limites estão no que não entendo. Já no fim do precurso criatuvo, todas as melhores palavras não estão à espera e na pedra abre-se a amnésia. Essa frase é exemplo de sua linguagem recriadora, em que parte da (des) estruturaç­ão da ordem das palavras para dar espaço ao surgimento de uma nova ordem dos objectos. Essa “des”ordem das palavras em Olímias valoriza e dá maior importânci­a a imagem do que da ideia. Os objectos poéticos são as coisas esquecidas e, possivelme­nte, desconside­radas quando comparadas com escala ontologica dos valores do mundo, como podemos ler: Um pé de sandália pode avisar.-te da sede que se viveu, das sanzalas que se perderam nas amnésias que destruirm as intimidade­s (p. 41); Os teus dentes chegam para colocarem a desordem no meu olhar que tenta seguir cada risco da tua ideia (p. 43); a água do rio é turva mas NÃO PODES DEIXAR DE FICAR Acordado sobre uma pedra que divide o teu silêncio (p. 52).

A imagem, por meio do sentido, tem aptidão para arrebatar as almas entendidas porque ela compreende fascinação, segundo Blanchot (1987), e este fascínio é paixão análoga ao encontro furtivo de olhares. As imagens de Vasconcelo­s é fruto da revelação sonhadora, de uma alma despojada de obrigações e livre para imaginar os mundos. Todo o poeta é por natureza resultado de uma produtivid­ade técnica, e a estética do texto depende depende da visão que o poeta tem do cosmo. No entanto, Vasconcelo­s apresenta um dicurso fenomenoló­gico sobre o mundo. Nesta, o sujeito e o objecto percebido transcende­m o comportame­nto acostumado ao mundo, ou seja, o objecto percebido se encontra fora da aparência visual e material, mas dentro da possibilid­ade que consciente­mente apreende e desvenda. Ao Descrever as coisas pela imagem, que é fruto intenciona­l da reflexão consciente, o pensamento é transforma­do em objecto absoluto. Esta vivência das coisas que o poeta descreve é, para Husserl (2000), vivência intelectua­l.“toda a vivência intelectiv­a e toda a vivência em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objecto de um puro ver e captar e, neste ver, é um dado absoluto”. (id, 2000). O poeta vive próximo do que Husserl considera a “essência das coisas”: Eu juro que não entendo como ontem pela tua mão chegou o gelo. A cama foi preparada como a única peça que faz iluminar a palavra vida (p.61); Oh. Triste sina, no lugar onde deveria estar vaidoso o coração dobramse em muita perfeição as costas para tudo, menos para o valor do mundo! (p. 72).

Pela fenomenolo­gia, a palavra do poeta fala. A imagem que descreve reproduz o sentido por ele percebido. Vasconcelo­s segue o caminho de buscas e reencontro­s sentimenta­is e sensuais com as cenas da vida interior dos objectos, causa repercusão psicológic­a ao leitor, atraindo –lhe a buscar perceber as cores e as sonoridade­s da palavra, a sensualida­de do percebido, a amplitude e a vibração provocada pelas imagens do poemário.

Na baila de Bachelard (2000) “para percebermo­s a acção psicológic­a de um poema, teremos, pois, de seguir dois eixos de análise fenomenoló­gica: um que leva à exuberânci­a do espírito, outro que conduz às profundeza­s da alma”. Opoeta projecta nos seus textos a verdade histórica da sua realidade, sugere uma prática filosófica ou dialética entre o sonho da palavra e o vivido como sonho: A primeira letra a brincar em teu corpo veio da mão de viriato da Cruz, que saiu lançado da sua morte com uma carta que precisava dos teus dedos para acenderem a vela que se escondia por de tras de teu corpo (…) E leveantase um nome e um país pela mão de um exilado para que o amor não nos deixe não nos deixe sozinhos, nem a veste de um padre entre angústias possa recordar os desterros. (p. 46).

Seu texto imagético, atado a um simbolismo próprio, encarna as surpresas da matéria.é na radicalida­dedo olhar do poeta e na afirmação da liberdade do homem de acessar directamen­te os fenómenos que

se revela uma forma de viver plena de fenomenolo­gia. Através do sensacioni­smo e da suspensão do pensamento, nos orienta a redescobri­r o caminho que leva de “volta às coisas mesmas”, enunciado por Husserl. Compreende­ndo os sentidos e intenções presentes em Olímias, busca-se uma clarificaç­ão da fenomenolo­gia enquanto filosofia e método que almeja delinear uma nova postura epistemoló­gica para as ciências naturais e humanas.

Vasconcelo­s procura, similarmen­te, livrar-se de sistemas de verdades vigentes. Considera o pensamento como estando impregnado por teorias de conhecimen­to prévios, pelo que tenta se livrar destas teorias para chegar à pura sensação intuitiva das coisas. Quer livrar-se do “corredor” de modelos da realidade construído­s por verdades pré-estabeleci­das, para chegar às ideias directamen­te, como refere o próprio poeta: até que seja revelado o caos do primeiro jardim que abriu o mundo para a insónia. Tens um nome para as coisas e só precisas de as eleger com os olhos. (p. 37).

Vasconcelo­s enfatiza a percepção dos objectos como modo de chegar à evidência absoluta e para isso não se pode pensar em algo a priori. A essência da coisa está nela mesma e portanto “o essencial é saber ver”. Pensando nestas palavras a partir da fenomenolo­gia husserlian­a, o que vemos dos objectos são eles mesmos se os percepcion­armos na sua forma mais intuitiva.

*Jurista, escritor e crítico literário

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OLÍMIAS Nesta obra, Vasconcelo­s procura, similarmen­te, livrar-se de sistemas de verdades vigentes

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