A fenomenologia dos objectos estéticos em Olímias
Poucos são aqueles que se conformam com o que a linguagem do seu dia a dia lhes coloca à disposição. Sobretudo se forem poetas. Parece haver nestes sempre uma inquietação, algo que os convoca não só ao travo de uma constante insatisfação, mas também a uma contínua luta pela superação daquilo que lhes parece ser limite de seu próprio instrumento de invenção. Mallarmé, ao referirse a uma arte descritiva como a parnasiana, teria dito que o segredo da arte, ou da poesia era sugerir ao invés de nomear. A Fenomenologia, além de aplicável à arte, como método, encontra expressão na historiografia e estética da práxis artística, constatável no registo da obra literária. A Fenomenologia é o domínio da visão pura, limitando-se exclusivamente aquilo que aparece (do fenómeno), sem transpor essa aparência, sem visar o transcendente. Ser, neste contexto, será o aparecer do que aparece. O aparecer é ser do que é. Éidos definido por Husserl (1913), na sua obraideas Relativas a uma Fenomenologia Pura; “(…) é o como se dá o que se dá”. Ao longo do século XX, a sucessão de movimentos artísticos, frequentemente tomou referencialidades em doutrinas literárias, filosóficas e cientificas. Júnior (2003), no livro Introdução à Fenomenologia, esmiúça o pensamento de Husserl, “a fenomenologia é assim uma ciência a priori e universal porque descreve os essenciais (isto é, objectos ideais e não empíricos). É universal, porque se refere a todas as vivências”. No presente estudo, perspetivo apresentar a fenomenologia dos objectos estéticos, na obra Olímias, de Adriano Botelho de Vasconcelos.
Para a consciência imagética o mundo é contexto de cenas, Flusser (1983). A consciência imagética, percebe o mundo por imagem. As cenas são descritas para explicar as imagens. Vasconcelos, A.B. parece-me tributário dessa crença. Nesse processo de encenar o mundo das coisas com a imagem, dá vida a consciência imagética do leitor, explora cenas, ou seja, as imagens codificadas como cenas revelam um poder de comunicação cujo elemento central, a imagem, se torna o veículo do sentido percebido no texto, como refere o próprio autor: viajo tão fundo dentro de mim, lá onde os meus limites estão no que não entendo. Já no fim do precurso criatuvo, todas as melhores palavras não estão à espera e na pedra abre-se a amnésia. Essa frase é exemplo de sua linguagem recriadora, em que parte da (des) estruturação da ordem das palavras para dar espaço ao surgimento de uma nova ordem dos objectos. Essa “des”ordem das palavras em Olímias valoriza e dá maior importância a imagem do que da ideia. Os objectos poéticos são as coisas esquecidas e, possivelmente, desconsideradas quando comparadas com escala ontologica dos valores do mundo, como podemos ler: Um pé de sandália pode avisar.-te da sede que se viveu, das sanzalas que se perderam nas amnésias que destruirm as intimidades (p. 41); Os teus dentes chegam para colocarem a desordem no meu olhar que tenta seguir cada risco da tua ideia (p. 43); a água do rio é turva mas NÃO PODES DEIXAR DE FICAR Acordado sobre uma pedra que divide o teu silêncio (p. 52).
A imagem, por meio do sentido, tem aptidão para arrebatar as almas entendidas porque ela compreende fascinação, segundo Blanchot (1987), e este fascínio é paixão análoga ao encontro furtivo de olhares. As imagens de Vasconcelos é fruto da revelação sonhadora, de uma alma despojada de obrigações e livre para imaginar os mundos. Todo o poeta é por natureza resultado de uma produtividade técnica, e a estética do texto depende depende da visão que o poeta tem do cosmo. No entanto, Vasconcelos apresenta um dicurso fenomenológico sobre o mundo. Nesta, o sujeito e o objecto percebido transcendem o comportamento acostumado ao mundo, ou seja, o objecto percebido se encontra fora da aparência visual e material, mas dentro da possibilidade que conscientemente apreende e desvenda. Ao Descrever as coisas pela imagem, que é fruto intencional da reflexão consciente, o pensamento é transformado em objecto absoluto. Esta vivência das coisas que o poeta descreve é, para Husserl (2000), vivência intelectual.“toda a vivência intelectiva e toda a vivência em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objecto de um puro ver e captar e, neste ver, é um dado absoluto”. (id, 2000). O poeta vive próximo do que Husserl considera a “essência das coisas”: Eu juro que não entendo como ontem pela tua mão chegou o gelo. A cama foi preparada como a única peça que faz iluminar a palavra vida (p.61); Oh. Triste sina, no lugar onde deveria estar vaidoso o coração dobramse em muita perfeição as costas para tudo, menos para o valor do mundo! (p. 72).
Pela fenomenologia, a palavra do poeta fala. A imagem que descreve reproduz o sentido por ele percebido. Vasconcelos segue o caminho de buscas e reencontros sentimentais e sensuais com as cenas da vida interior dos objectos, causa repercusão psicológica ao leitor, atraindo –lhe a buscar perceber as cores e as sonoridades da palavra, a sensualidade do percebido, a amplitude e a vibração provocada pelas imagens do poemário.
Na baila de Bachelard (2000) “para percebermos a acção psicológica de um poema, teremos, pois, de seguir dois eixos de análise fenomenológica: um que leva à exuberância do espírito, outro que conduz às profundezas da alma”. Opoeta projecta nos seus textos a verdade histórica da sua realidade, sugere uma prática filosófica ou dialética entre o sonho da palavra e o vivido como sonho: A primeira letra a brincar em teu corpo veio da mão de viriato da Cruz, que saiu lançado da sua morte com uma carta que precisava dos teus dedos para acenderem a vela que se escondia por de tras de teu corpo (…) E leveantase um nome e um país pela mão de um exilado para que o amor não nos deixe não nos deixe sozinhos, nem a veste de um padre entre angústias possa recordar os desterros. (p. 46).
Seu texto imagético, atado a um simbolismo próprio, encarna as surpresas da matéria.é na radicalidadedo olhar do poeta e na afirmação da liberdade do homem de acessar directamente os fenómenos que
se revela uma forma de viver plena de fenomenologia. Através do sensacionismo e da suspensão do pensamento, nos orienta a redescobrir o caminho que leva de “volta às coisas mesmas”, enunciado por Husserl. Compreendendo os sentidos e intenções presentes em Olímias, busca-se uma clarificação da fenomenologia enquanto filosofia e método que almeja delinear uma nova postura epistemológica para as ciências naturais e humanas.
Vasconcelos procura, similarmente, livrar-se de sistemas de verdades vigentes. Considera o pensamento como estando impregnado por teorias de conhecimento prévios, pelo que tenta se livrar destas teorias para chegar à pura sensação intuitiva das coisas. Quer livrar-se do “corredor” de modelos da realidade construídos por verdades pré-estabelecidas, para chegar às ideias directamente, como refere o próprio poeta: até que seja revelado o caos do primeiro jardim que abriu o mundo para a insónia. Tens um nome para as coisas e só precisas de as eleger com os olhos. (p. 37).
Vasconcelos enfatiza a percepção dos objectos como modo de chegar à evidência absoluta e para isso não se pode pensar em algo a priori. A essência da coisa está nela mesma e portanto “o essencial é saber ver”. Pensando nestas palavras a partir da fenomenologia husserliana, o que vemos dos objectos são eles mesmos se os percepcionarmos na sua forma mais intuitiva.
*Jurista, escritor e crítico literário