Jornal de Angola

O escritor que ajudou a construir uma imagem do povo brasileiro

CENTENÁRIO DE JORGE AMADO Romancista conviveu desde cedo com a forte presença africana no estado da Baía

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Mais do que um romancista, o escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), cujo centenário do nascimento é celebrado hoje, foi um pensador do Brasil e do povo brasileiro.

“O Brasil sempre foi carente de uma filosofia própria e Jorge Amado criou as principais chaves para entender o Brasil e o seu povo”, diz o professor da Faculdade de Comunicaçã­o da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Moniz Sodré. Filho de um fazendeiro de cacau, Jorge Amado conviveu desde cedo com a forte presença africana no estado da Baía, no nordeste brasileiro, cenário que influencio­u todas as suas histórias.

Grande parte dos seus protagonis­tas é típica representa­nte do povo, que revela tradições e crenças até então pouco conhecidas pela classe média brasileira, em especial o culto afro-brasileiro conhecido como candomblé.

“Os cultos afro-brasileiro­s como o candomblé surgem no cenário baiano para agrupar os africanos nessa situação difícil da diáspora, do sofrimento da escravidão. É um elemento que conjuga todas as várias etnias africanas -levadas para o Brasil - numa mesma tradição, que usa como estratégia a ‘família de santo’, não biológica”, diz Sodré.

Com as inúmeras novelas de Jorge Amado - muitas das quais protagoniz­adas por negros e mulatos - as crenças e tradições dos afro-descendent­es foram evidenciad­as como um dos paradigmas da criação do povo brasileiro, em contraposi­ção com a cultura europeia, até então ensinada como a principal influência.

O próprio Governo brasileiro, ainda na década de 1920, entendia a mestiçagem como um fenómeno formador da sociedade nacional, mais como forma de “branqueame­nto” do negro, do que de valorizaçã­o da cultura negra.

Entre as principais caracterís­ticas desse paradigma afro-brasileiro, evidenciad­o na obra de Amado, Sodré destaca a importânci­a do “presente” - por oposição ao futuro promissor no paraíso, prometido pela religião católica - de relações interpesso­ais concretas - fortes laços de amizade, vizinhança e parentesco; e da alegria face ao real.

“Não digo que o candomblé é a religião do amor, como é o catolicism­o. É um culto da alegria, que não tem a ver com dar risadas, mas com aceitar o real como ele é”, sintetiza Sodré. Para o professor, toda essa crença está também inequivoca­mente ligada à política. “Jorge Amado dá continuida­de, através da literatura, à luta afirmativa de um povo e confere soberania à raça negra no Brasil”, completa o estudioso.

Membro activo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) até meados da década de 1950, Jorge Amado diziase materialis­ta e ateu. Era, no entanto, grande conhecedor da religiosid­ade da população negra na Baía e foi o responsáve­l, enquanto deputado federal, por criar a lei, ainda hoje em vigor, que garante o direito à liberdade de culto em todo o território nacional.

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AFP Autor baiano (à esquerda) criou as principais chaves para entender o Brasil e o seu povo segundo o catedrátic­o Moniz Sodré

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