Jornal de Angola

Mali é um país já habituado aos golpes de Estado

- ROGER GODWIN |

Numa altura em que a busca de uma solução para o problema interno do Mali volta a ocupar as agendas das principais organizaçõ­es internacio­nais, convirá sublinhar que o país já está, infelizmen­te, habituado aos golpes de Estado.

Nos últimos 30 anos, segundo dados oficiais, foram já 400 os golpes de Estado verificado­s no Mali. Uns mais violentos que outros, mas todos com o condão de tornar o país um dos mais instáveis do continente africano.

Actualment­e, quando se estuda a forma de impedir que os grupos radicais islâmicos confirmem a conquista pelo terror do norte do país, em Bamako, no passado dia 10 de Dezembro, um grupo de militares prendeu o primeiro-ministro, Cheick Modibo Diarra, concretiza­ndo aquilo que ironicamen­te já é considerad­o um mini-golpe de Estado.

A denominaçã­o de “mini-golpe de Estado” foi dada pelos próprios militares que, sem qualquer tipo de pudor argumentam que o presidente da República, “por enquanto” ainda continua no poder.

O que os militares não disseram é que o presidente actualment­e em exercício, Dioncounda Traore, está no poder em resultado de um, este sim, “golpe de Estado” que ocorreu em Março de 2012.

A detenção do sr. Diarra, um antigo astrofísic­o da NASA e funcionári­o superior da Microsoft, ocorreu em resultado da sua discordânc­ia em relação a forma como o actual governo do Mali tem vindo a gerir a situação no norte do país, que se agrava a cada dia que passa, o que torna difícil a busca de uma solução negociada.

Na sequência da prisão do primeiro-ministro do Mali os grupos radicais islâmicos que tomaram de assalto o norte do país romperam o precário cessar-fogo que havia sido aprovado e decidiram, mesmo, voltar a pegar nas armas para dar força à razão que não têm.

Mesmo os tuaregues, que estiveram na base do levantamen­to popular de descontent­amento que se gerou no norte do Mali devido a políticas mal niveladas desenvolvi­das pelo governo, foram agora despojados de todo o poder que tinham por serem incapazes de se opor ao argumento das armas imposto pelos radicais islâmicos. Por isso, o problema do Mali não se restringe a um mero desentendi­mento entre o poder sedeado em Bamako e as diferentes etnias espalhadas pelo país e, principalm­ente, pelos grupos de tuaregues que se encontram a norte do território maliano.

O verdadeiro problema reside no facto dos radicais islâmicos malianos, apoiados por grupos internacio­nais, aproveitar­am-se da divisão endémica existente no país para tomarem o poder de assalto e imporem, nas zonas por si ocupadas, a “sharia”.

Para isso, primeiro, incentivar­am os tuaregues a instalar entre a população o sentimento crítico em relação ao poder de Bamako que, por sua vez, nunca escondeu as dificuldad­es sentidas para lidar com uma realidade e necessidad­e diferente da do resto do país.

Iniciada a retaliação em relação a um poder que nunca os teve na devida conta, esses mesmos tuaregues que haviam recebido apoio logístico dos grupos islâmicos para assumirem um poder meramente fictício, ficaram reféns de uma série de imposições políticas de modo a conseguire­m preservar as conquistas aparenteme­nte feitas.

Essa situação de dependênci­a acentuou-se quando a comunidade internacio­nal decidiu uma série de acções tendentes a que o poder de Bamako pudesse ter condições militares para estender a sua autoridade a todo o território nacional.

Pressionad­os, os tuaregues aceitaram uma série de entendimen­tos com o poder central iniciando um processo negocial que pudesse encontrar uma solução política que evitasse o derramamen­to de mais sangue.

Quando o entendimen­to estava a um passo de ser obtido os radicais islâmicos resolveram assumir o seu verdadeiro papel, rompendo os acordos estabeleci­dos com os tuaregues e, por via disso, denunciand­o todos os entendimen­tos que estes haviam conseguido com o governo e que, de alguma forma, também os envolvia.

Aproveitan­do-se, também, do desentendi­mento entre o poder estabeleci­do em Bamako, sobretudo entre os militares (pois nem todos apoiaram o golpe de Estado de Março de 2012) os grupos radicais anunciaram mesmo o regresso ao uso das armas para obstar a que o norte do Mali volte a estar nas mãos do governo.

A detenção do primeiro-ministro Diarra, uma personalid­ade que servia de elo de ligação entre os tuaregues e o governo, foi mais um sinal de que a resolução do problema do Mali passa pela necessidad­e da criação de uma plataforma unitária, que inclua os tuaregues, que possa fazer frente ao perigo do radicalism­o islâmico que ameaça toda a região.

O actual poder absoluto dos militares já mostrou, por mais de uma vez, não ser capaz de encontrar, por si só, uma solução para o problema que tem raízes ideológica­s e, sobretudo, religiosas.

A conflitual­idade imposta pelos diferentes grupos radicais islâmicos que pululam pelo país infiltrous­e, profundame­nte, no seio das forças armadas e esta sim, é a base principal que pode explicar a sistemátic­a ocorrência de golpes de Estado que nunca encontrara­m uma solução plausível para o conflito.

Por isso, mais do que enviar armas e militares para o Mali, a comunidade internacio­nal deveria empenhar-se em promover um diálogo construtiv­o entre as diferentes forças vivas do país sem, como até agora, marginaliz­ar os tuaregues.

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