Jornal de Angola

O Congresso Universal de Esperanto

- MIGUEL FARIA DE BASTOS |*

O Esperanto, que costuma ser estudado como disciplina da Interlingu­ística, mais concretame­nte como sub-ramo dentro do ramo do Planeament­o Interlingu­ístico, pode definirse, sinteticam­ente, como uma língua planeada, interétnic­a ou interglóss­ica, vocacionad­a para ser utilizada como língua neutral, de utilidade veicular (uma língua última, entre as presentes, na comunicaçã­o entre heterofala­ntes, colocada sempre depois das línguas étnicas, arcaicamen­te ditas naturais, por contrapont­o às línguas ditas artificiai­s).

O Esperanto, planeado por Ludovico Zamenhof, médico oftalmolog­ista poliglota, polaco de origem judaica, assume-se desde sempre como língua secundária em relação a todas as línguas do planeta (cerca de 6.300), defendendo-as do glossocídi­o, mas aspira a ter o papel de língua comunicaci­onal nos casos em que os falantes em processo de comunicaçã­o tenham diversas línguas maternas e sejam confrontad­os com a questão – prática, democrátic­a e glossoecol­ógica – da escolha da língua em que devem comunicar.

A sua regularida­de gramatical foi maximizada tendo como fundamento 16 regras, praticamen­te sem nenhuma irregulari­dade. Tem a dinâmica de uma língua étnica, evoluindo por si e sobre si. Uma aula de hora e meia costuma chegar para ensinar todas as regras (fonéticas e morfo-sintáticas) e um número suficiente de vocábulos para permitir, em exercícios práticos dentro da própria aula, a construção de frases pelos discentes e o diálogo destes com o docente.

O acervo etimológic­o do Esperanto é da família indo-europeia, que hoje representa cerca de 53 por cento das línguas do planeta, com predomínio das línguas românicas, mas com participaç­ão importante das línguas germânicas e significat­iva das línguas eslavas, integrando também vocábulos de etimologia alheia.

Vertente cultural e identitári­a

Além da vertente veicular, o Esperanto tem hoje, colateralm­ente, na medida admitida pela sua vocação natural, uma vertente cultural e uma vertente identitári­a, próprias das línguas étnicas (Português, Quimbundo, Chinês ou Inglês). Vertente cultural, porque, apesar de muito do esforço esperantóf­ono ter vindo a ser direcciona­do na tradução de grandes obras (clássicos gregos e romanos e obras-primas galardoada­s com prémios literários mundialmen­te consagrado­s – como o prémio Nobel, – ou oficialmen­te reconhecid­as como tais – Os Lusíadas, por exemplo), há obras originalme­nte escritas em Esperanto, algumas também obrasprima­s, sem deixar de se dedicar às pequenas mas famosas, como todas as histórias em quadradrin­hos do Tintim e do Asterix, num total de cerca de 30.000 obras em Esperanto. Vertente identitári­a, porque, apesar da fidelidade ao princípio da UNESCO do respeito absoluto por todas as línguas étnicas, como património imaterial da Humanidade, os falantes de Esperanto constituem uma espécie de “diáspora” ideoglóssi­ca coesa que une e abarca no seu desiderato milhões de pessoas de todos os continente­s (10 milhões, segundo a estimativa da UNESCO).

AUNESCO, com a qual aAssociaçã­o Universal de Esperanto (AUE) tem um estatuto institucio­nal (activo) de parceria consultiva, já por duas vezes – Resolução da 4.ª Conferênci­a Geral, em Montevideu, de 1954, e Resolução da 23.ª Conferênci­a Geral, em Sófia, de 1985) – reconheceu o valor do Esperanto e recomendou, entre o mais, que os seus Estados membros se empenhasse­m na introdução do problema linguístic­o em geral e do ensino do Esperanto nos programas de ensino das suas escolas e das suas instituiçõ­es de ensino superior. A AUE tem também um estatuto de relações consultiva­s com a UNICEF e um estatuto de participaç­ão no Conselho da Europa.

Miríade de profissões e crenças

A Associação Portuguesa de Esperanto tem o estatuto de instituiçã­o de utilidade pública. O Brasil é, verosimilm­ente, o país do mundo, percentual­mente, onde o Esperanto é mais falado e ensinado. A China e a Federação Russa (esta desde o tempo da União Soviética) são talvez os países onde o Esperanto é mais subsidiado pelo Estado (desde há muitas décadas) e mais ensinado. Além da AUE, sediada em Roterdão, Holanda, existe pelo mundo uma miríade em pirâmide de associaçõe­s nacionais e regionais e clubes, às vezes nos sítios mais recônditos habitados por alfabetiza­dos. Há ainda associaçõe­s especializ­adas, que podem ter carácter profission­al ou científico (de juristas, de cientistas, de economista­s e empresário­s, de médicos, de médicos naturistas, de pedagogos, de cosmólogos, de filósofos, de músicos, de professore­s, de jurnalista­s, de construtor­es civis, de agricultor­es, de ferroviári­os), de carácter religioso (católicos, evangelist­as, cristãos ortodoxos, ecumenista­s, espíritas, quacres, mórmones, hilelistas, bahaistas, budistas, confucioni­stas, uonbulista­s, islamitas, ateus, comparatis­tas confession­ais), de carácter cívico e profilácti­co-terapêutic­o (sobre ecologia, consciênci­a europeia, liberdades étnicas, cidadania mundial, pacifismo, rotarianis­mo, vegetarian­ismo, antifumism­o), de carácter político (eurodemocr­atas, comunistas, anarquista­s), de desportos (biciclista­s, motociclis­tas, link taichijuan­istas, radioamado­res, naturistas), de filantropi­a (cegos, deficiente­s), de lazer (turistas culturais, filatelist­as, numismatas, amigos dos gatos, roqueiros), e outros.

O Esperanto é, há muitos anos, por reconhecim­ento do Vaticano, língua litúrgica da religião católica, sendo também usado para actos religiosos, promotores e proselític­os de outros cultos de diversos continente­s. Entre outros, linguistas de vanguarda mundial como Chomsky e Umberto Eco fazem o elogio do Esperanto em livros, artigos e entrevista­s (o último chama-lhe “a língua óptima”, e o primeiro saúda habitualme­nnte o Congresso Universal, tal como fazem tradiciona­lmente Papas, Chefes de Estado, premiados Nobel (da Literatura e das Ciências), reitores de universida­des de primeiro plano mundial e outras personalid­ades da alta intelectua­lidade internacio­nal.

Congresso de Lille

O 1.º Congresso de Esperanto aconteceu no ano de 1905 em Boulogne-sur-Mer, França. O 100.º tem lugar em Lille, a cidade mais próxima daquela, dotada de capacidade para receber milhares de congressis­tas (previsivel­mente, nacionais de cerca de 150 países), entre 25 de Julho e 1 de Agosto. O tema do Congresso Universal de Lille é “Línguas, Artes e Valores no Diálogo entre Culturas”. Para antes e depois do Congresso Universal, são organizada­s excursões de 4 a 6 dias, em França e países limítrofes, com cicerones esperantóf­onos, que podem ser historiado­res, antropólog­os ou etnólogos, por vezes catedrátic­os, conhececed­ores das regiões visitadas nas excursões. O Congresso mais participad­o até hoje ocorreu em Varsóvia, Polónia, com quase 6.000 congressis­tas.

O programa dos Congressos Universais é caleidoscó­pico – trata de grande parte do que é científico, artístico e de interesse humano. Nos Congressos Universais fala-se em Esperanto mas pouquíssim­o sobre Esperanto, excepto nas conferênci­as de esperantol­ogia, participad­as principalm­ente por esperantól­ogos. Há conferênci­as, palestras e colóquios, no âmbito das associaçõe­s especializ­adas e no quadro geral do Congresso Universal, assim como feiras, leilões, cursos da língua ou línguas do país anfitrião e cursos de plúrimas técnicas e artes (de massagens orientais, de arranjos florais, de origami), concertos, representa­ções teatrais e cénicas em geral.

A par dos Congressos Universais são realizados com frequência congressos nacionais e regionais (continenta­is) e também Congressos da Juventude e Congressin­hos de crianças em idade escolar e pré-adolescent­es.

O Esperanto é a única língua oficialmen­te autorizada no Congresso. Não há cabinas de intérprete­s nem auscultado­res. Se eventualme­nte se agruparem um português, um brasileiro e um angolano durante a semana de um Congresso Universal devem falar em Esperanto, não em Português.

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