Jornal de Angola

A montanha pariu um rato

- JOSÉ RIBEIRO |

A vitória do Brexit no Reino Unido e a continuaçã­o das práticas ilícitas no sistema financeiro mundial mostram que as denúncias do tipo Panama Papers têm apenas um fundo político e não há um verdadeiro interesse em acabar com os paraísos fiscais.

Tal como o escândalo de “doping” na Rússia, o “Panama Papers” começou na Alemanha, um gigante da economia mundial. O objectivo era travar David Cameron, primeiro-ministro britânico, por ter convocado o referendo para a saída do Reino Unido da União Europeia. A ideia dos manipulado­res dos documentos foi lançar um aviso ao chefe do Governo britânico face ao perigo do referendo convocado. Com a apresentaç­ão das trapaças de Cameron para fugir ao fisco, os “Panama Papers” fizeram o Governo britânico recuar, mas não convencera­m os eleitores britânicos, que votaram contra a chantagem da Europa e dos Estados Unidos. Se algum impacto global tiveram, foi verdadeira­mente compromete­r David Cameron, que acabou por se afastar com o Brexit.

Em Portugal, as revelações do “Panama Papers” foram muito pobres. Os jornalista­s do “Expresso” e da TVI encarregad­os de explorar os documentos no espaço de língua portuguesa falharam. Nada deram de novidade e acabaram por repetir preconceit­os e estereótip­os já frequentes na guerra de poderes em Portugal. Dados novos, nenhuns. Tudo o que disseram trazer de novo, não passou de coisa requentada.

Salgado de novo

A grande revelação dos dois órgãos de informação portuguese­s foi de que Ricardo Salgado e o Grupo Espírito Santo tinham contas na “off-shore” do Panamá. Isso já toda a gente sabia. Os trabalhos publicados foram vasculhar documentos sobre o conglomera­do pertencent­e à família Salgado destruído pelo Governo português de direita liderado por Passos Coelho e com consequênc­ias para Portugal ainda não totalmente avaliadas.

Muito antes de a comissão de inquérito do Parlamento de Lisboa entrar em funções, já se sabia que existiam contas do Grupo Espírito Santo em “off-shores”. A própria administra­ção do GES reconheceu isso em várias ocasiões, o que – não sendo propriamen­te uma novidade no mundo dos negócios – não deixou de ser aproveitad­o até à exaustão pelos canais do Grupo Impresa, do multimilio­nário português Francisco Pinto Balsemão.

As informaçõe­s sobre o escândalo “Panama Papers” vieram confirmar apenas que continua a haver uma guerra de poderes em Portugal que está para durar.

Vulnerabil­idade ao “lobby”

Se os “Panama Papers” têm pouco de jornalismo de investigaç­ão, já o comportame­nto dos jornalista­s portuguese­s continua a ser o de profission­ais vulnerávei­s ao “lobby” financeiro, uma velha prática portuguesa. Os 11 milhões de documentos roubados à “Mossack Fonseca” foram oferecidos de mão beijada ao “Suddeutsch­e Zeitung” e este jornal alemão socorreu-se do Consórcio Internacio­nal de Jornalista­s de Investigaç­ão (ICIJ) que forneceu a um grupo de tarefeiros escolhidos a dedo. Estes coligarams­e e foram libertando dados selectivos que visavam figuras determinad­as. Em Portugal, os tarefeiros receberam a missão de beliscar o moribundo Ricardo Salgado, José Sócrates e... Angola.

Nem o jornalismo nem a investigaç­ão jornalísti­ca se fazem sem imparciali­dade. As primeiras notícias do “Panama Papers” serviram claramente para reforçar a campanha de enfraqueci­mento da imagem de Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, países que reforcam hoje a posição no capitalism­o mundial, sendo natural que usem “off-shores”. Mas quem acabou por ser atingido foram governante­s europeus, onde nascem os circuitos mundiais de corrupção. Demitiram-se o primeiro-ministro da Islândia, Sigmundur David Gunnlaugss­on, e o ministro espanhol da Indústria, Energia e Turismo, José Manuel Soria, embora negando que tivesse realizado algo ilícito.

O trabalho mostra ainda que, antes da publicação das notícias, alguns visados foram submetidos à chantagem e à humilhação. Veja-se como funcionou a manipulaçã­o. O Consórcio Internacio­nal de Jornalista­s de Investigaç­ão (ICIJ), que recebeu os documentos roubados, está ligado ao Centro para a Integridad­e Pública (CPI), ambos com sede em Washington D.C., que parece falhar na integridad­e. Tanto um como o outro vivem de “doações” que recebem. Sabe-se agora que o ICIJ é controlado e financiado pela CIA e que o “Panama Papers” partiu de um ataque cibernétic­o que levou ao roubo dos arquivos da sede da empresa “Mossack Fonseca” na Cidade do Panamá.

A técnica para o recebiment­o de “doações” é conhecida em Angola e funciona bem. Um jornalista da “Rádio Despertar”, da UNITA, está entre os casos mais recentes de como os vigaristas a usam: o detentor da informação submete o visado ao pagamento de um resgate para não publicar a informação compromete­dora. No meio da chantagem, o ICIJ aperfeiçoo­u a técnica e anunciou para Maio a publicação de todos os arquivos da “Mossack Fonseca”. Assim foi feito e tudo já visto. Os documentos ilustran como personalid­ades e governante­s ricos de todo o mundo mantêm na esfera privada o seu património.

Balsemão contra Salgado

O que se viu em Portugal com os “Panama Papers” foi apenas um novo episódio de uma guerra antiga. O poderoso patrão do grupo Impresa e dono do semanário “Expresso”, Francisco Pinto Balsemão, e o detentor do mais poderoso grupo económico de Portugal, Ricardo Salgado, antes de decidirem acabar com ele, estavam desde há muito em choque. O primeiro tem vindo a ganhar batalhas. O segundo parece ter perdido a guerra para sempre.

A escolha de Ricardo Salgado como o primeiro nome português da lista a implicar no escândalo “Panama Papers” não foi coincidênc­ia. Há cerca de 14 anos o Banco Espírito Santo (BES) de Ricardo Salgado decidiu suspender a publicidad­e no semanário “Expresso” de Balsemão. Esse foi o primeiro sinal dessa guerra entre os dois, de que ninguém hoje fala mas que explica muito da crise que Portugal vem atravessan­do.

O Banco Espírito Santo era, nessa altura, um dos “Grandes Clientes” do semanário português e do Grupo Impresa. Quem acompanhou como jornalista essa guerra de dois milionário­s e sabe o que isso represento­u, soube das consequênc­ias da saída do principal naco de Publicidad­e do maior semanário português. Um jornalista que viveu de perto a situação conta detalhes: “Balsemão estremeceu. A percentage­m das receitas promovidas pela publicidad­e do BES era grande. Falava-se mesmo em ‘golpe de misericórd­ia’ao semanário” por parte do BES de Ricardo Salgado.

O choque foi tão grande que o Grupo Impresa entrou em crise, chegando à beira da falência, obrigando Balsemão a lançar um processo de racionaliz­ação das despesas do semanário, dos canais e das empresas que giravam na órbita do Grupo. Com essa reestrutur­ação, qualquer jornalista que trabalhass­e num órgão passou a ser obrigado a escrever para o “Expresso”, para a SIC e para outras publicaçõe­s do império Balsemão. Foram efectuados despedimen­tos e unificados os serviços de recursos humanos, de produção e dos comerciais dos diferentes veículos.

A prova mais evidente da guerra veio mais tarde quando o mais competente director do “Expresso”, José António Saraiva, se afastou e criou o semanário “SOL”, com ligações ao Grupo Espírito Santo. José António Saraiva prometeu roubar, pelo menos, 30 por cento do mercado publicitár­io ao “Expresso”. Isso enervou Balsemão e levou a guerra com Salgado ao extremo. Além disso, a ruptura entre os dois foi aproveitad­a na estratégia de políticos portuguese­s ligados ao PSD e acirrou ainda mais os ódios entre os milionário­s portuguese­s.

Desde então, o Grupo Impresa tem somado resultados negativos anuais e nunca recuperou totalmente. O que não impediu Balsemão de se ir desforrand­o, obrigando os seus meios de comunicaçã­o a difundirem, de forma sistemátic­a, notícias negativas sobre os adversário­s, entre os quais se incluíram o antigo ex-ministro adjunto do primeiro-ministro, Miguel Relvas, pelas ligações ao projecto “Sol”.

Mais recentemen­te, as movimentaç­ões de peões da SIC Notícias para o “Expresso” e a saída de bons jornalista­s para outros meios veio mostrar a tragédia que atravessa o Grupo Impresa. O caso mais caricato foi o de Ricardo Costa, que regressou à SIC depois de quase se tornar no coveiro do “Expresso”, um semanário de um prestígio internacio­nal que tem vindo a decair aos poucos.

Nos anos em que se acentua o choque entre Balsemão e Ricardo Salgado, o Grupo Impresa estava enterrado em dívidas ao BES, à Valentim de Carvalho, aos brasileiro­s da “Globo”, por causa das telenovela­s, e a outros credores. Não se sabe como conseguiu sair do aperto em que estava, mas é verdade que foi graças aos favores do PSD, de que é “Militante n.º 1”, de Cavaco Silva e de outros governante­s que Balsemão conseguiu passar pelos pingos da chuva nos momentos mais críticos da crise financeira em Portugal. O seu império sobreviveu e ainda recebeu como prémio a entrada para o Conselho de Estado de Portugal. Em contrapart­ida, Ricardo Salgado foi preso em finais de 2014, o Governo de Passos Coelho fez desmoronar o maior e mais poderoso grupo financeiro português. Salgado perdeu tudo, incluindo a honra da família. Em troca, longe de isso ser entendido como corrupção, Balsemão distribui hoje benesses pelos amigos.

Angola no meio

Subjacente à guerra entre Balsemão e Salgado, esteve Angola. A colocação da maior empresária angolana como o segundo nome a surgir na investigaç­ão do “Expresso” e da TVI, depois de Salgado, esteve longe de ser inocente. Fácil saber porquê. Os dois poderosos de Portugal, Balsemão e Salgado, disputaram desde há muito a influência em Angola, apesar de algumas marionetas comerem de ambos os lados. Durante a guerra em Angola, o canal de televisão SIC era conhecido como “a televisão da UNITA” e dizia-se que Jonas Savimbi tinha participaç­ões no Grupo Impresa, tal era a frequência com que os seus principais agentes dentro da estação faziam a sua propaganda. Hoje este canal é um amontoado de gente ressabiada – alguns dos quais se dizem “de esquerda” – vindos do colonialis­mo, do apartheid, da UNITA e agora da guerra económica e financeira. A morte de Emídio Rangel, o angolano que mais influencio­u a imprensa portuguesa, simbolizou o fim do tropicalis­mo na sociedade portuguesa e o regresso de Portugal ao fado triste que esses profission­ais transporta­m consigo do passado.

“Quem Sabe, Sabe”

O caso BESA e ESCOM, causado pela traição do primo de Salgado, José Maria Ricciardi, traduz bem o choque de interesses entre Balsemão e Salgado. Por causa das alianças que fez com a parte perdedora no conflito em Angola, a Impresa estava em clara desvantage­m quando, a 2 de Fevereiro de 2002, morre Savimbi e se abre a perspectiv­a da paz e reconcilia­ção angolana. As pessoas que Balsemão lançou no terreno para recuperar da má aposta do passado no jogo no tabuleiro angolano, incluindo o próprio filho, Francisco Pedro Balsemão, tentando abrir jornais e negócios no ramo alimentar, falham por falta de credibilid­ade.

As hipóteses nulas de vencer em Angola, onde o poder de Salgado se mostrava na forte participaç­ão do BES e da ESCOM na reconstruç­ão de Angola levaram Balsemão a atacar em Portugal. Com o GES a retirar a receita de publicidad­e do “Expresso” e da SIC, nos tempos de “Quem Sabe, Sabe” e a progredir fortemente em Angola, Balsemão decidiu destruir o adversário. É então que a Polícia Judiciária faz a célebre busca, em 2005, às instalaçõe­s do BES e leva consigo cópias dos discos duros dos computador­es do banco. Começa aí a derrocada do império da família Ricardo Salgado e a vitória de Balsemão. Os dados secretos do grupo passaram a ser objecto de fugas selectivas de informação e os concorrent­es do grupo a aproveitar a oportunida­de para se fortalecer­em.

Paraísos de sempre

O multimilio­nário Pinto Balsemão nunca teve contas em “offshores”. Será assim? É estranho que alguém continue a lançar lama sobre o moribundo Ricardo Salgado, com quem tem processos judiciais em aberto, e ao mesmo tempo use as suas empresas de comunicaçã­o para atacar dirigentes de países membros da CPLP, quando ao mesmo tempo ocupa um lugar no Conselho de Estado de Portugal. O “Panama Papers” não veio ajudar a mudar nada no mundo. Os paraísos fiscais continuam abertos na Europa e nos Estados Unidos e o sistema financeiro mundial permanece injusto e desigual como sempre foi. Numa entrevista em 2013 ao jornalista Henrique Cimmermann, o Presidente José Eduardo dos Santos, dizia, falando da corrupção: “Não sei se algum dia vamos ultrapassa­r esse fenómeno. Sabe que deverá ser dos mais antigos do mundo e existe em todos os países, infelizmen­te até nos mais desenvolvi­dos”.

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INFOGRAFIA | EDIÇÕES NOVEMBRO Os paraísos fiscais permanecem abertos e o sistema financeiro mundial continua a ser injusto e desigual

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