A montanha pariu um rato
A vitória do Brexit no Reino Unido e a continuação das práticas ilícitas no sistema financeiro mundial mostram que as denúncias do tipo Panama Papers têm apenas um fundo político e não há um verdadeiro interesse em acabar com os paraísos fiscais.
Tal como o escândalo de “doping” na Rússia, o “Panama Papers” começou na Alemanha, um gigante da economia mundial. O objectivo era travar David Cameron, primeiro-ministro britânico, por ter convocado o referendo para a saída do Reino Unido da União Europeia. A ideia dos manipuladores dos documentos foi lançar um aviso ao chefe do Governo britânico face ao perigo do referendo convocado. Com a apresentação das trapaças de Cameron para fugir ao fisco, os “Panama Papers” fizeram o Governo britânico recuar, mas não convenceram os eleitores britânicos, que votaram contra a chantagem da Europa e dos Estados Unidos. Se algum impacto global tiveram, foi verdadeiramente comprometer David Cameron, que acabou por se afastar com o Brexit.
Em Portugal, as revelações do “Panama Papers” foram muito pobres. Os jornalistas do “Expresso” e da TVI encarregados de explorar os documentos no espaço de língua portuguesa falharam. Nada deram de novidade e acabaram por repetir preconceitos e estereótipos já frequentes na guerra de poderes em Portugal. Dados novos, nenhuns. Tudo o que disseram trazer de novo, não passou de coisa requentada.
Salgado de novo
A grande revelação dos dois órgãos de informação portugueses foi de que Ricardo Salgado e o Grupo Espírito Santo tinham contas na “off-shore” do Panamá. Isso já toda a gente sabia. Os trabalhos publicados foram vasculhar documentos sobre o conglomerado pertencente à família Salgado destruído pelo Governo português de direita liderado por Passos Coelho e com consequências para Portugal ainda não totalmente avaliadas.
Muito antes de a comissão de inquérito do Parlamento de Lisboa entrar em funções, já se sabia que existiam contas do Grupo Espírito Santo em “off-shores”. A própria administração do GES reconheceu isso em várias ocasiões, o que – não sendo propriamente uma novidade no mundo dos negócios – não deixou de ser aproveitado até à exaustão pelos canais do Grupo Impresa, do multimilionário português Francisco Pinto Balsemão.
As informações sobre o escândalo “Panama Papers” vieram confirmar apenas que continua a haver uma guerra de poderes em Portugal que está para durar.
Vulnerabilidade ao “lobby”
Se os “Panama Papers” têm pouco de jornalismo de investigação, já o comportamento dos jornalistas portugueses continua a ser o de profissionais vulneráveis ao “lobby” financeiro, uma velha prática portuguesa. Os 11 milhões de documentos roubados à “Mossack Fonseca” foram oferecidos de mão beijada ao “Suddeutsche Zeitung” e este jornal alemão socorreu-se do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) que forneceu a um grupo de tarefeiros escolhidos a dedo. Estes coligaramse e foram libertando dados selectivos que visavam figuras determinadas. Em Portugal, os tarefeiros receberam a missão de beliscar o moribundo Ricardo Salgado, José Sócrates e... Angola.
Nem o jornalismo nem a investigação jornalística se fazem sem imparcialidade. As primeiras notícias do “Panama Papers” serviram claramente para reforçar a campanha de enfraquecimento da imagem de Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, países que reforcam hoje a posição no capitalismo mundial, sendo natural que usem “off-shores”. Mas quem acabou por ser atingido foram governantes europeus, onde nascem os circuitos mundiais de corrupção. Demitiram-se o primeiro-ministro da Islândia, Sigmundur David Gunnlaugsson, e o ministro espanhol da Indústria, Energia e Turismo, José Manuel Soria, embora negando que tivesse realizado algo ilícito.
O trabalho mostra ainda que, antes da publicação das notícias, alguns visados foram submetidos à chantagem e à humilhação. Veja-se como funcionou a manipulação. O Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), que recebeu os documentos roubados, está ligado ao Centro para a Integridade Pública (CPI), ambos com sede em Washington D.C., que parece falhar na integridade. Tanto um como o outro vivem de “doações” que recebem. Sabe-se agora que o ICIJ é controlado e financiado pela CIA e que o “Panama Papers” partiu de um ataque cibernético que levou ao roubo dos arquivos da sede da empresa “Mossack Fonseca” na Cidade do Panamá.
A técnica para o recebimento de “doações” é conhecida em Angola e funciona bem. Um jornalista da “Rádio Despertar”, da UNITA, está entre os casos mais recentes de como os vigaristas a usam: o detentor da informação submete o visado ao pagamento de um resgate para não publicar a informação comprometedora. No meio da chantagem, o ICIJ aperfeiçoou a técnica e anunciou para Maio a publicação de todos os arquivos da “Mossack Fonseca”. Assim foi feito e tudo já visto. Os documentos ilustran como personalidades e governantes ricos de todo o mundo mantêm na esfera privada o seu património.
Balsemão contra Salgado
O que se viu em Portugal com os “Panama Papers” foi apenas um novo episódio de uma guerra antiga. O poderoso patrão do grupo Impresa e dono do semanário “Expresso”, Francisco Pinto Balsemão, e o detentor do mais poderoso grupo económico de Portugal, Ricardo Salgado, antes de decidirem acabar com ele, estavam desde há muito em choque. O primeiro tem vindo a ganhar batalhas. O segundo parece ter perdido a guerra para sempre.
A escolha de Ricardo Salgado como o primeiro nome português da lista a implicar no escândalo “Panama Papers” não foi coincidência. Há cerca de 14 anos o Banco Espírito Santo (BES) de Ricardo Salgado decidiu suspender a publicidade no semanário “Expresso” de Balsemão. Esse foi o primeiro sinal dessa guerra entre os dois, de que ninguém hoje fala mas que explica muito da crise que Portugal vem atravessando.
O Banco Espírito Santo era, nessa altura, um dos “Grandes Clientes” do semanário português e do Grupo Impresa. Quem acompanhou como jornalista essa guerra de dois milionários e sabe o que isso representou, soube das consequências da saída do principal naco de Publicidade do maior semanário português. Um jornalista que viveu de perto a situação conta detalhes: “Balsemão estremeceu. A percentagem das receitas promovidas pela publicidade do BES era grande. Falava-se mesmo em ‘golpe de misericórdia’ao semanário” por parte do BES de Ricardo Salgado.
O choque foi tão grande que o Grupo Impresa entrou em crise, chegando à beira da falência, obrigando Balsemão a lançar um processo de racionalização das despesas do semanário, dos canais e das empresas que giravam na órbita do Grupo. Com essa reestruturação, qualquer jornalista que trabalhasse num órgão passou a ser obrigado a escrever para o “Expresso”, para a SIC e para outras publicações do império Balsemão. Foram efectuados despedimentos e unificados os serviços de recursos humanos, de produção e dos comerciais dos diferentes veículos.
A prova mais evidente da guerra veio mais tarde quando o mais competente director do “Expresso”, José António Saraiva, se afastou e criou o semanário “SOL”, com ligações ao Grupo Espírito Santo. José António Saraiva prometeu roubar, pelo menos, 30 por cento do mercado publicitário ao “Expresso”. Isso enervou Balsemão e levou a guerra com Salgado ao extremo. Além disso, a ruptura entre os dois foi aproveitada na estratégia de políticos portugueses ligados ao PSD e acirrou ainda mais os ódios entre os milionários portugueses.
Desde então, o Grupo Impresa tem somado resultados negativos anuais e nunca recuperou totalmente. O que não impediu Balsemão de se ir desforrando, obrigando os seus meios de comunicação a difundirem, de forma sistemática, notícias negativas sobre os adversários, entre os quais se incluíram o antigo ex-ministro adjunto do primeiro-ministro, Miguel Relvas, pelas ligações ao projecto “Sol”.
Mais recentemente, as movimentações de peões da SIC Notícias para o “Expresso” e a saída de bons jornalistas para outros meios veio mostrar a tragédia que atravessa o Grupo Impresa. O caso mais caricato foi o de Ricardo Costa, que regressou à SIC depois de quase se tornar no coveiro do “Expresso”, um semanário de um prestígio internacional que tem vindo a decair aos poucos.
Nos anos em que se acentua o choque entre Balsemão e Ricardo Salgado, o Grupo Impresa estava enterrado em dívidas ao BES, à Valentim de Carvalho, aos brasileiros da “Globo”, por causa das telenovelas, e a outros credores. Não se sabe como conseguiu sair do aperto em que estava, mas é verdade que foi graças aos favores do PSD, de que é “Militante n.º 1”, de Cavaco Silva e de outros governantes que Balsemão conseguiu passar pelos pingos da chuva nos momentos mais críticos da crise financeira em Portugal. O seu império sobreviveu e ainda recebeu como prémio a entrada para o Conselho de Estado de Portugal. Em contrapartida, Ricardo Salgado foi preso em finais de 2014, o Governo de Passos Coelho fez desmoronar o maior e mais poderoso grupo financeiro português. Salgado perdeu tudo, incluindo a honra da família. Em troca, longe de isso ser entendido como corrupção, Balsemão distribui hoje benesses pelos amigos.
Angola no meio
Subjacente à guerra entre Balsemão e Salgado, esteve Angola. A colocação da maior empresária angolana como o segundo nome a surgir na investigação do “Expresso” e da TVI, depois de Salgado, esteve longe de ser inocente. Fácil saber porquê. Os dois poderosos de Portugal, Balsemão e Salgado, disputaram desde há muito a influência em Angola, apesar de algumas marionetas comerem de ambos os lados. Durante a guerra em Angola, o canal de televisão SIC era conhecido como “a televisão da UNITA” e dizia-se que Jonas Savimbi tinha participações no Grupo Impresa, tal era a frequência com que os seus principais agentes dentro da estação faziam a sua propaganda. Hoje este canal é um amontoado de gente ressabiada – alguns dos quais se dizem “de esquerda” – vindos do colonialismo, do apartheid, da UNITA e agora da guerra económica e financeira. A morte de Emídio Rangel, o angolano que mais influenciou a imprensa portuguesa, simbolizou o fim do tropicalismo na sociedade portuguesa e o regresso de Portugal ao fado triste que esses profissionais transportam consigo do passado.
“Quem Sabe, Sabe”
O caso BESA e ESCOM, causado pela traição do primo de Salgado, José Maria Ricciardi, traduz bem o choque de interesses entre Balsemão e Salgado. Por causa das alianças que fez com a parte perdedora no conflito em Angola, a Impresa estava em clara desvantagem quando, a 2 de Fevereiro de 2002, morre Savimbi e se abre a perspectiva da paz e reconciliação angolana. As pessoas que Balsemão lançou no terreno para recuperar da má aposta do passado no jogo no tabuleiro angolano, incluindo o próprio filho, Francisco Pedro Balsemão, tentando abrir jornais e negócios no ramo alimentar, falham por falta de credibilidade.
As hipóteses nulas de vencer em Angola, onde o poder de Salgado se mostrava na forte participação do BES e da ESCOM na reconstrução de Angola levaram Balsemão a atacar em Portugal. Com o GES a retirar a receita de publicidade do “Expresso” e da SIC, nos tempos de “Quem Sabe, Sabe” e a progredir fortemente em Angola, Balsemão decidiu destruir o adversário. É então que a Polícia Judiciária faz a célebre busca, em 2005, às instalações do BES e leva consigo cópias dos discos duros dos computadores do banco. Começa aí a derrocada do império da família Ricardo Salgado e a vitória de Balsemão. Os dados secretos do grupo passaram a ser objecto de fugas selectivas de informação e os concorrentes do grupo a aproveitar a oportunidade para se fortalecerem.
Paraísos de sempre
O multimilionário Pinto Balsemão nunca teve contas em “offshores”. Será assim? É estranho que alguém continue a lançar lama sobre o moribundo Ricardo Salgado, com quem tem processos judiciais em aberto, e ao mesmo tempo use as suas empresas de comunicação para atacar dirigentes de países membros da CPLP, quando ao mesmo tempo ocupa um lugar no Conselho de Estado de Portugal. O “Panama Papers” não veio ajudar a mudar nada no mundo. Os paraísos fiscais continuam abertos na Europa e nos Estados Unidos e o sistema financeiro mundial permanece injusto e desigual como sempre foi. Numa entrevista em 2013 ao jornalista Henrique Cimmermann, o Presidente José Eduardo dos Santos, dizia, falando da corrupção: “Não sei se algum dia vamos ultrapassar esse fenómeno. Sabe que deverá ser dos mais antigos do mundo e existe em todos os países, infelizmente até nos mais desenvolvidos”.