Intromissões e privacidade
Desde os séculos XVII e XVIII que a noção de privacidade começa a merecer uma atenção específica no ocidente, os edifícios com quartos privados (os avós dos motéis actuais), os diários pessoais, etc. A privacidade passa por várias peripécias de extremos, desde a inexistência “forçada,”era o princípio das sofisticadas escutas e imagens sem autorização do visado, passando pelo senso colectivo da necessidade e legitimidade da privacidade. Desde já e noutro sentido, fazemos recurso à conceptualização da comunicóloga argentina Paula Sibilia quando refere a “intimidade como espectáculo,” fenómenos de mídia e comportamento – redes sociais (Facebook, Orkut), blogs na net, reality
shows (Big Brothers e similares), biografias e revistas de fofocas que certas senhoras daqui, retiram do avião no fim da viagem para oferecerem às amigas em terra. Segundo a autora que citei as pessoas abdicam da sua privacidade para obterem benefícios. E costuma até a ser caricato ler-se nas capas: VEJA A ARTISTA …na sua intimidade. Aqui a privacidade é um negócio relacionado com o direito de imagem de gente famosa que recebe fortunas para se expor ao público-alvo que coincide com determinadas formações mentais e ideológicas. Por isso, nos contratos de grandes craques de futebol, os direitos de imagem são tratados à parte do contrato de serviço com a bola. É paradoxal e perverso revelar a privacidade dessas estrelas pois a partir de que é revelado deixa de ser privacidade mas é isso que numa visão freudiana dá gozo aos consumidores de tais produtos… como se estivessem sozinhos a espreitar, pelo buraco da fechadura, a vida dos seus ídolos…
Só com o art. 12 da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, das Nações Unidas, se estabeleceu o direito à vida privada como um dos direitos humanos: 1.Ninguém será objecto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou 2.Toda a pessoa tem direito à protecção da lei contra essas ingerências ou esses ataques.”
O professor brasileiro Túlio Viana da Universidade Federal de Minas Gerais, disseca o direito à privacidade num conjunto de três outros direitos, a saber: 1. Direito de não ser monitorado (não ser visto, ouvido, etc.). 2. Direito de não ser registrado (imagens ou conversas gravadas) e 3. Direito de não ser reconhecido (direito de não ter registos pessoais publicados) transcendendo assim, nas sociedades informacionais, os limites de mero de interesse privado para se tornar um dos fundamentos do Estado democrático de direito.
Esta matéria tem ligações com os piratas de imagem, os paparazzi, desde os que conseguiram fotografias de uma grande senhora nua até aos que perseguiam a princesa Diana… enfim.
Outro conceito é o de Eric Hughes, “privacidade é o poder de revelar-se selectivamente ao mundo.”
Mas o conceito que para aqui me importa (mais ou menos coincidente com o conceito africano) é o de Rainer Kuhler. Para ele, privacidade é o direito de ser deixado em paz.
Estou sentado a escrever no computador e com o telefone ao lado. De vez em quando vem uma mensagem a saber se quero música. Quem o faz não precisa de descobrir o meu endereço electrónico. Se uma pessoa pergunta a outra, toneladas de vezes, se quer música e a outra pessoa nem tem oportunidade de dizer não quero é óbvio que é uma espécie de irremediável sequestro. Ainda se perguntassem e pedissem resposta, tudo ficaria resolvido de uma vez. Chamei um afilhado meu, engenheiro informático e ele disse-me que tudo funciona automaticamente e mesmo que eu aceite uma música no pressuposto de não me incomodarem mais, eles vão continuar a não me deixar em paz.Coloquei um jovem surdo-mudo, sabendo ler e escrever bem, num supermercado. Outro dia eu estava com o telefone na mão e ele a ver uma mensagem da imposição da música, gargalhou, mostrou-me o seu telefone e apontou o polegar para a cabeça. Na verdade só chanfús convidam um surdo-mudo para a música. Mas a parte mais chata é que eu nunca mandei uma mensagem, para mim é incómodo.
Abro o computador e a mensagem repete-se. Agora não é de música mas quatro pessoas que, mais seis pessoas que, repetidamente querem paleio comigo no facebook que não uso. Nem respondo. Até tenho medo pois ainda tem aqueles que pedem dinheiro emprestado e os que querem emprestar milhões mas o pio é um tal de Clube (não digo o nome para o não publicitar) que obteve o meu endereço e por dia me manda uma média entre sete a dez mensagens para me vender, cuecas, perfumes, sapatos e todo o género infinito de bugigangas. Escrevi em retorno por cima de uma das mensagens pedindo por favor que não me enviassem mais propostas. Qual quê! Continuam. Deve ser uma caixa de correio intermediária de vendas.
A paz é uma palavra tão boa e, por causa dela estamos nesta. Então, fiquem com a música os sabonetes mas deixem-me em paz.